Capítulo 39

2003 Words
Maria Clara Fiquei sentada na escada da delegacia, as mãos apertadas uma na outra, tentando disfarçar o tremor dos dedos. As pessoas passavam apressadas, entrando e saindo, e eu ali, parada, sem conseguir acompanhar o ritmo de nada. Levantei os olhos pro Humberto, que mexia no celular de cabeça baixa, encostado no corrimão da escada. — Que horas eles vão soltar o Iago? — perguntei, baixo. Ele levantou o olhar, sério. — Não sei. — respondeu, guardando o celular no bolso. Assenti e desci o último degrau indo até a recepção. Encostei na parede, olhando o movimento, com o coração apertado. — Vamos embora, Maria Clara. — ele disse, vindo na minha direção. — Agora. — Eu vou esperar. — respondi. — Quero ver ele sair. Ele coçou a nuca, irritado. — Ele não vai sair agora. — Então eu espero ele sair. — Maria Clara — ele veio mais perto, a voz subindo um pouco — qual parte você não entendeu? Ele não vai sair. Vamos embora. — Eu não vou! — falei rápido. — Quero saber o que vai acontecer com o Iago! — Que Iago, p***a? — ele gritou, e todo mundo virou pra olhar. — Tá falando do cara que te enganou? Que te fez de trouxa? O mesmo que esfregou outra na tua cara e tu ainda teve coragem de defender ele pro delegado, como se o cara fosse um santo? Ele me olhava com raiva, os olhos vermelhos e a respiração forte. — Colocando teu pai como mentiroso. — continuou — O mesmo pai que passou anos cuidando de uma filha doente, pra depois ser traído por ela. — balançou a cabeça negando — Lá dentro eu tive que me segurar pra não dizer tudo o que tu tava merecendo ouvir. Enquanto eu escutava tu falando todas aquelas mentiras. Só conseguia olhar pra ele sem acreditar em tudo o que estava saindo da boca dele. — Eu não menti, Humberto. — falei firme. — Quem mentiu foram vocês. — O quê? — ele deu um passo pra frente e apertou meu braço com força. — Eu nunca disse que o Iago me sequestrou, nem que me torturou, muito menos que me violentou. — falei — Se eu errei, foi por ficar calada no início e deixar pensarem o que queriam. Mas eu nunca falei nada aquilo que o delegado leu lá em cima. — Porque você é burra! — ele gritou. — Se fosse inteligente teria confirmado tudo. O som da voz dele ecoou alto, engolindo o burburinho da recepção. Todo mundo virou. Fiquei estática, o coração batendo acelerado. Era a primeira vez que eu via ele gritando. Sem aquela calma que ele sempre tinha. O rosto dele foi ficando vermelho, quase roxo e o silêncio tomou conta por segundos até uma mulher se aproximar. — Tá acontecendo alguma coisa aqui? — perguntou, olhando direto pra gente e o Humberto soltou meu braço na hora. Passei a mão no braço, sentindo o lugar quente e marcado. Ele tentou interferir: — Ela tá bem. — ele respondeu antes que eu abrisse a boca. — A gente já tava indo embora. Mas a mulher o ignorou completamente. — Vem, moça. Vamos tomar um copo d’água. — falou, olhando pra mim com calma. — Ela não quer água nenhuma. — rebateu, ríspido. Olhei pra ela e depois pra ele. — Eu quero sim. — falei, olhando nos olhos dele. — Vou com ela. Respirei fundo e completei, sem tremer: — Pode ir, Humberto. Eu peço um carro e vou sozinha. — Eu prometi pro teu pai que te levaria pra casa. — Eu me entendo com ele. Mas agora você pode ir — respondi. — Teu pai não gosta que você entre em carro de estranhos. — Eu prefiro ir com um estranho do que com você. Ficamos nos olhando por alguns segundos que pareceram eternos. Até que depois ele virou o rosto e foi embora. A mulher sorriu de leve e me guiou até o bebedouro, onde encheu um copo d'água e me entregou. — Tá melhor? — perguntou, gentil. Tomei um gole rápido. — Tô sim. — menti. — Desculpa se eu me meti — disse, ajeitando o cabelo atrás da orelha. — Mas de longe deu pra ver que ele tava alterado. Eu não consegui ficar calada. Abaixei o olhar, girando o copo entre os dedos. — Não tem que pedir desculpa, não. — falei com um sorriso leve. — Foi Deus que mandou você. Ela riu de leve, e eu também. — Bom.. agora que você está melhor eu posso ir embora. Tô desde cedo aqui resolvendo a situação do meu filho. — Sinto muito. — respondi, com sinceridade. — Espero que tudo se resolva. — Obrigada — disse, respirando fundo. — Se Deus quiser a gente vai conseguir tirar o Iago daqui. Meu corpo congelou. — Iago? — repeti, sem acreditar. Ela assentiu. — Sim. — e me olhou curiosa. — Você conhece ele? Senti o ar me faltar por um instante e o coração pareceu errar o compasso. — Conheço. — respondi devagar. — Ele tá aqui por minha causa. Ela me observou por um tempo, e o silêncio entre nós duas se estendeu. — Qual o seu nome? — me perguntou. — Maria Clara. Ela repetiu, quase num sussurro. — Maria Clara... E eu abaixei a cabeça, me sentindo envergonhada. — Eu imagino que a senhora deve tá querendo me xingar. — falei, sem jeito. — Afinal a culpa do seu filho estar aqui é minha. Mas eu queria que soubesse que estou disposta a fazer o que for necessário pra ajudar a tirar ele daqui. — Eu não vou te xingar. — respondeu, calma. — Eu só queria entender tudo isso. Ela respirou fundo. — Preciso saber se tudo o que tão dizendo é verdade. — disse, com os olhos cheios d'água. — Se realmente o Iago te sequestrou, te torturou... te violentou? — Porque, olha... posso estar enganada, mas dentro de mim eu tenho certeza que ele não te violentou. Porque eu não criei um estuprador e se ele fosse isso eu mesma já teria o entregado pra polícia. Abri a boca pra responder, mas ela continuou. — Ele não me machucou. — falei. — Isso nunca saiu da minha boca. Ele me levou pro morro, sim, mas não foi um sequestro. Ele queria conversar e no fim me deu a escolha de ir embora. Só que eu fiquei porque quis. — Tudo que aconteceu naquele dia foi porque eu quis. O Iago não me forçou em nada. Ela sorriu e respirou aliviada. — Eu sabia que o meu filho não faria isso. Fiquei em silêncio. — Eu conheço o Iago. — ela disse, com os olhos cheios d’água. — Ele pode ter todos os defeitos, que ele tem e eu sei, mas ele não é esse monstro que tão falando. É um menino bom, só que muito machucado. Passei a mão no cabelo, sem saber o que dizer. — Ele se fechou pro mundo sabe. — ela continuou. — E o pior é que ele se fechou pra mim também. Desde pequeno ele carrega uma culpa que não é dele. Viu o pai sendo preso, me viu sendo presa também e acabou em um abrigo. Sendo separado da irmã pequena. Depois disso, ele nunca mais foi o mesmo. A voz dela ficou fraca. — Ele não é nenhum anjinho. — ela disse. — Mas ele não é isso que tão pintando. E se ele te magoou de algum jeito, eu te peço desculpa de coração. Meus olhos encheram d’água. — Ele me magoou muito... — confessei, e minha voz saiu quase num sussurro. — Mas foi pela mentira, e não por outro motivo. E eu espero que ele saia daqui e consiga seguir a vida dele. — E que... se um dia ele for preso, que seja por uma coisa que ele realmente tenha feito — levantei os olhos pra ela, o peito apertando. — e não por uma mentira. Eu só pensava que, por mais que o Iago tivesse mentido pra mim, eu ainda queria que ele ficasse bem. Mesmo que fosse longe de mim. Mesmo que nunca mais a gente se olhasse na cara. Eu não desejava o m*l dele. Ela segurou a minha mão e apertou. — Obrigada por me dizer isso. — falou, emocionada. — Você teria coragem de testemunhar por ele? Assenti. — Já dei meu depoimento. Disse que ele é inocente de tudo que tão falando a respeito a mim. Tudo que eu quero agora... é ajudar a tirar o Iago daqui e seguir a minha vida. — Obrigada... de verdade. — ela disse, e a voz dela veio embargada, mas doce. — Você não imagina o quanto isso vai ajudar. Assenti de leve, sentindo o rosto quente. — Eu até pensei que ele já fosse sair hoje, mas... — ajeitei o cabelo atrás da orelha, meio sem jeito — tá demorando. Ela respirou fundo, como quem se obrigava a manter a calma. — Amanhã ele tem audiência de custódia. — disse. — E com o que você falou no depoimento... ele deve ser liberado. Eu nem sei como te agradecer. Senti meu peito aquecer um pouco com aquilo. — Não precisa agradecer. — respondi, tentando sorrir, mesmo que ainda tivesse um peso enorme dentro de mim. — Me passa teu número? — ela pediu, mexendo na bolsa. — Pra gente se falar... caso eu tenha alguma novidade. Peguei o celular rápido, antes que a coragem resolvesse ir embora. — Claro. — respondi. — Pode passar pro advogado também, se ele precisar de mim. Tô disponível pra ir amanhã também, se for preciso. Ela me olhou e sorriu. — Eu agradeço de coração, Maria Clara. — disse. — E se tu precisar de mim pra qualquer coisa, pode me ligar também. Assenti, e ela me puxou pra um abraço. Um abraço sincero, que me pegou de surpresa. Fechei os olhos me aninhando naquele abraço. — Obrigada... — ela repetiu, baixinho, e eu sorri, ainda com o rosto colado no ombro dela. Quando ela se afastou, olhou o relógio. — Eu já tava indo embora. — disse. — Se quiser, te deixo em casa. Melhor do que ir sozinha a essa hora. Pensei em recusar. Mas tinha algo nela que me passava confiança, uma coisa que eu não sabia identificar, e aceitei. — Aceito, sim. Obrigada. Fomos andando juntas até o estacionamento. O ar da noite tava morno, e o som distante dos carros cortava o silêncio que se formava entre uma conversa e outra. Ela abriu a porta pra mim, num gesto automático de cuidado, e eu entrei. O caminho todo foi tranquilo. Falamos sobre coisas simples, vida, família e fé. E, por incrível que pareça, eu senti que podia confiar nela. Quando o carro parou em frente ao condomínio, desapertei o cinto e me virei pra ela. — Obrigada por tudo, Manuela. — falei, com um sorriso pequeno. — De verdade. Ela retribuiu o sorriso, e tinha algo de bonito nele, uma sabedoria que vinha de dentro. — Vai com Deus, Maria Clara. — disse. — e obrigada pelo que tá fazendo pelo Iago... por ter falado a verdade. Assenti, sentindo o nó voltar pra garganta. Porque eu sabia que ter falado a verdade me custaria muito. Mas eu não me arrependia. Desci do carro e fechei a porta devagar, sem pressa e dei tchau pra ela com os dedos da mão direita. O carro foi saindo enquanto eu olhava o carro se afastar até virar a esquina e sumir. O vento leve bateu no meu rosto, bagunçando o meu cabelo e eu puxei o ar fundo. Entrei com o coração apertado, dividido entre o alívio e o medo. Feliz por ter feito a coisa certa, mas assustada com o que ainda poderia vir pela frente. Era estranho... Porque, mesmo com o medo, eu sentia um pedacinho de paz crescendo dentro de mim
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