Fernanda
Entrei na sala e a porta fechou atrás de mim, me sentei na cadeira em frente à mesa dele e deixei as mãos no colo, tentando disfarçar o tremor que insistia em me denunciar.
O ar-condicionado parecia mais forte do que o normal ou era eu que tava gelada por dentro mesmo.
Olhei ao redor.
Os quadros alinhados, as pastas empilhadas, as fotos de nós três e o nome dourado estampado nas lombadas: Doutor Eduardo Galdeia.
Tudo ali tinha cheiro de poder e hipocrisia.
Tudo limpo, polido.
Tudo perfeito demais.
Quem olhasse as fotos espalhadas pela sala garantiria que a nossa família era perfeita.
Mas a realidade sempre foi outra bem diferente dessa.
A porta abriu atrás de mim e eu nem precisei me virar.
O som do sapato no chão encerado, o ritmo do passo… eu reconheceria em qualquer lugar.
Era ele.
— Eu quase não acreditei quando a Márcia disse que você tava aqui. — ele falou com calma, passando por mim.
Levantei o olhar vendo o mesmo rosto, o mesmo controle ensaiado de sempre.
A máscara perfeita.
Só quem convive com ele mais de vinte e cinco anos sabe o que existe atrás dela.
— Eu vim porque a gente precisa conversar. — respondi. A voz saiu segura eu não era mais aquela menina fraca de vinte anos atrás.
Ele ajeitou o paletó e sentou atrás da mesa, como se fosse um juiz prestes a dar sentença.
Os dedos se entrelaçaram e os seus olhos me estudavam.
— Você tirou a aliança. — ele reparou?
Olhei pro meu próprio dedo notando a marca da aliança que nunca havia sido retirada antes.
— Tirei.
— Isso quer dizer o quê?
— Que acabou, Eduardo. — falei devagar. — E eu não tô aqui pra falar da gente.
Ele inclinou o corpo pra frente, aquele olhar treinado pra me convencer.
— Fernanda, eu sei que eu errei. — começou, falando baixo. — Eu tava nervoso aquele dia, alterado... Eu nunca devia ter feito aquilo. Foi um momento. Eu perdi o controle.
Fechei os olhos por um segundo, respirando fundo. Porque a vontade que eu tinha era de jogar na cara dele que NÃO.. não tinha sido apenas um minuto e que aquilo já tinha acontecido várias vezes antes.
Inclusive dentro do hospital, enquanto a filha dele fazia uma sessão de quimioterapia.
Mas não quis entrar nesse assunto porque ele sempre vinha com a mesma desculpa de sempre.
— Eu tô destruido Fernanda... sem você, sem a Maria Clara... sem a minha família. — ele continuou a encenação e eu não sentia nada. — Você não pode acabar com tudo assim do nada. Depois de todos esses anos juntos. Mais de vinte e cinco. Você sabe o quanto eu te amo.
— Não sei, Eduardo. — cortei. — Eu sei o quanto você PRECISA ter alguém pra manipular e controlar.
Ele ficou calado e os dedos pararam de bater na mesa.
— A gente já se machucou demais. — continuei, encarando ele. — E eu não vou mais permitir. Chega.
— Eu perdi a cabeça, Fernanda. — ele insistiu, mais alto. — Mas eu nunca faria m*l a vocês. Eu só quero proteger vocês duas.
Rio baixo, sem humor nenhum, balançando a cabeça.
— Proteger quebrando meu tornozelo? Agredindo a sua filha até ela desmaiar? Ou melhor, prendendo uma pessoa por pura birra? É essa tua ideia de proteção?
Seus olhos escureceram.
— Eu vim aqui por isso. — falei, me inclinando pra frente. — Pela nossa filha. Você sabe muito bem o que tá fazendo com aquele garoto.
Ele respirou fundo.
— Eu não posso interferir.
— Pode, sim. — rebati. — você já está interferindo.
Ele se defendeu, impaciente:
— Ele é bandido, Fernanda. Tem que tá atrás das grades mesmo.
— Pode ser um bandido, sim. — levantei o queixo. — Mas ele não fez metade das coisas que tão acusando ele. Quer prender ele? Então façam o trabalho de vocês e investiguem. Prendam ele pelo crime que ele praticou e não pelo o que você inventou.
Ele baixou os olhos e não respondeu..
— Você sempre precisou ter o controle de tudo pra se sentir vivo. — continuei. — E agora que tá vendo que ela tá escolhendo outro caminho, que não é o seu, você quer punir ela.
— Você tá no morro com ela? — perguntou, mudando de assunto.
— Tô. — respondi, firme.
Ele riu com desdém.
— Parabéns. Vai morar no meio de bandido agora? É isso que virou? Daqui a pouco tá vendendo droga.
Cruzei os braços.
— É melhor viver no meio de bandido do que ao lado de um homem que eu não reconheço mais.
— Eu te pedi perdão. — disse, num tom quase ofendido. — Eu errei, mas você também errou.
— A diferença é que eu aprendi com os meus erros. — falei. — E você segue repetindo os teus.
Me levantei, peguei a bolsa.
— O que você quer? — pergunta.
— Acaba com isso! Deixa o Iago sair da cadeia.
— Só o que me faltava a minha mulher defendendo bandido — negou rindo e se levantou da cadeira. — Se eu aceitar?
— Eu volto pra casa.
— E a Maria Clara?
— Ela ja passou tempo demais fazendo o que a gente quer. Dessa vez ela que vai decidir o futuro dela.
— Você tá me pedindo algo impossível.
— Tá bem.. a Helena vai te procurar pra conversar sobre o nosso divórcio. Ela é minha advogada agora. Passar bem, Eduardo.
Virei as costas e fui andando até a porta.
— Fernanda, não faz isso. — ele correu e segurou o meu braço. Antes que eu chegasse até a porta. — Vamos conversar direito.
— Já conversamos. — dei um meio sorriso. — A conversa agora é entre você e a Helena. Licença.
Ele se aproximou mais e soltou meu braço.
— Tira o Iago da cadeia, Eduardo. É a nossa última chance.
Ajustei a bolsa no ombro, dei dois passos pra trás e sai de lá.
Eu tinha prometido que nunca mais ia perdoar ele.
E eu realmente não o perdoei.
Mas quando a vida colocou a felicidade da Maria Clara do outro lado da balança... eu não pensei duas vezes.
Entre a minha dor e a paz dela, eu escolhi a paz dela.
Mesmo que isso me custasse tudo.
Iago
Uma semana depois...
Tava no hospital ainda.
Com a p***a do soro pendurado no braço, corpo todo fodido, e a cabeça tentando entender como que eu ainda tava respirando.
Achei que eu fosse morrer.
O quarto era branco, frio pra c*****o e mudo.
Parecia que o tempo tinha desistido de andar aqui dentro. O fato de não ter ninguém pra conversar incomodava mais que a dor.
A enfermeira entrou, mexeu no soro, falou um “bom dia” de mentira e saiu.
Um minuto depois, a porta abriu de novo.
Não era a enfermeira, mas era o Flávio.
Meu advogado.
Ele entrou com um terno escuro e um envelope na mão. De longe, dava pra ver que vinha notícia boa pelo sorriso que ele tinha no rosto.
— Tá acordado? — perguntou, parando do meu lado.
— Tentando. — murmurei, rouco. — A única coisa que eu faço nessa p***a.
Ele puxou a cadeira e sentou.
— Vim te dar uma boa notícia.
— Boa? — arqueei a sobrancelha. — Solta aí.
Ele abriu o envelope e tirou umas folhas grampeadas.
Reconheci o selo do tribunal no papel.
— Saiu teu alvará, Iago. — falou reto. — O juiz mandou te soltar.
Caralho! Só pode ser zoeira.
Nem piscava.
O barulho do monitor parecia mais alto do que antes.
Tinha perdido a fé na moral.
— Cê tá de caô. — falei, encarando o papel.
— Não. Tá tudo assinado. Teu processo segue, mas tu vai responder na rua.
Fiquei em silêncio e o coração disparou.
— E como foi essa p***a? — perguntei, ainda sem acreditar.
— O depoimento da Maria Clara. — ele explicou. — O juiz leu, comparou com as provas e entendeu que não havia provas suficiente pra manter a sua prisão. Então decidiu te soltar.
Buguei quando ouvi o nome da Maria.
Como sempre acontece quando falam dela.
É automático.
A mente viaja nela e eu piro.
Não consigo esquecer a cena dela na delegacia.
Cercada daquele p*u no cu do PM, ele chamando e ela indo atrás dele.
Se fuder!
Só de lembrar me sobe um ódio que arde.
Se eu tivesse armado naquele dia, aquele filho da p**a não tava nem vivo mais.
Por isso que todas as vezes que minha coroa falou dela, eu nem rendi assunto.
O ciúme tava me corroendo e eu só imaginava essa p***a. Até sonhei que os dois tava fudendo e ela me chamava pra participar.
Mó tiração.
Mas nós vai bater um papo, pessoalmente.
Só nos dois e olho no olho.
Sem ninguém no meio.
Porque é assim que tem que ser.
— Vai responder em liberdade, mas nada de sair do Rio, entendeu? — ele reforçou, e eu voltei a atenção pro que ele falava.
Assenti.
— Já tá ótimo. Só de não tá dentro daquele inferno.
Ele sorriu e continuou.
— Tua alta sai agora de tarde. Eu vou avisar tua mãe, a Manuela…
— Calma aí. — interrompi. — Será que rola do senhor não avisar ninguém, não?
Ele me olhou tipo “tu vai aprontar”.
— Quero chegar de surpresa, tá ligado? — falei, rindo fraco. — Ver a cara deles, pegar geral de surpresa.
Flávio riu também.
— Tu é doido, moleque. Mas beleza, não aviso ninguém e te levo lá.
— Valeu aí, doutor. — dei um sorriso. — c*****o! Tô
doido pra brotar em casa.
Ele balançou a cabeça.
— Eles vão levar um susto.
(..)
Mais tarde, a médica veio e fez o trâmite todo.
Assinei o papel, botei a roupa que tava na sacola e saí do hospital.
O sol de fim de tarde bateu no meu rosto e eu juro que senti gosto de liberdade.
Doutor Flávio me ajudou a entrar no carro e enquanto ele dirigia o vento batia na minha cara, me lembrando de que eu estava vivo.
— Todo mundo acha que tu ainda tá no hospital — ele falou, com um sorriso no rosto. — Vão levar um grande susto.
— Melhor. Quero ver a reação deles.
Ele assentiu e eu não via a hora de encontrar geral.
Quando viramos na rua da casa dos meus pais, já deu pra ouvir o som alto que vinha de dentro da casa deles.
O portão aberto, o povo na resenha.
Flavio freou e eu desci andando com dificuldade.
Um dos menores me viu primeiro.
— c*****o! — gritou. — É O IAGO, p***a!
A gritaria veio igual onda.
— O HOMEM TÁ DE VOLTA!
— c*****o O m*l TA NA RUA, p***a! IAGUIN TÁ SOLTO!
Geral começou a ri, batendo palma, vindo pra cima.
— Calma, p***a! — falei, rindo. — Devagar, c*****o, cês vão abrir meus pontos!
Os moleques davam tapa nas minhas costas, um segurava meu braço, outro falava “c*****o, lek, tu ressuscitou!”.
— Sou Jesus Cristo pra ressuscitar não, viado! — soltei morrendo de rir e com a mão na barriga.
Foi quando meu pai apareceu na porta de vidro, pano na mão, cara fechada.
— Que p***a é essa aí, mané?
Quando me viu, parou de falar.
A expressão mudou e o pano caiu da mão.
— c*****o… moleque... — ele soltou um berro, vindo pra frente. — c*****o, p***a…
Andou rápido, e quando chegou perto, me abraçou com força, quase me desmontando.
— p***a, tu tá solto! — disse, rindo e quase chorando ao mesmo tempo. — c*****o, Iago.
— Calma, pai. — ri. — Quer me mandar de volta pro hospital, caraí.
Ele me soltou e me olhou nos olhos.
— Tu é f**a, moleque. — balançou a cabeça. — Tu é meu filho, p***a. c*****o!
Sorri vendo geral gritando meu nome e no meio daquela barulheira toda, minha coroa veio correndo lá de dentro, o olho já marejado, rosto vermelho de choro e sorriso junto.
— Iago! — gritou, já me agarrando. — Meu Deus, meu filho!
— Calma, mãe. — falei, rindo, abraçando ela forte. — Tô aqui. Acabou.
— Nem me avisou que ia sair! — disse, batendo leve no meu peito. — Eu vou te matar!
— Quis fazer surpresa,pô. — brinquei.
— Achei que cês tavam tudo na bad por minha causa.
Minha mãe me abraçou de lado e sorriu.
— Tava geral na bad mesmo, meu filho. Só que a Mel chegou hoje. A gente queria fazer uma surpresa pra ela.
— A Mel...? — repeti, franzindo o cenho. — Ela tá aqui?
Assim que falei olhei pra porta e ela tava lá.
Com um sorrisão na cara, cabelo solto e toda maluquinha. E do lado, a Any.
— Chegamos juntos. — falou, rindo. — E nem foi combinado.
— p**a que pariu... — soltei, abrindo um sorriso. — Quem é vivo sempre aparece.
— Tava na hora, né não? — disse, vindo pra perto.
Abriu os braços e me abraçou de frente.
O perfume dela subiu rápido, bateu direto no nariz.
— Saudade da p***a, viu? — falei, prendendo ela nos braços.
— Eu também, Iago. — respondeu, olhando pra mim.
Any também veio logo depois, soltando um “e eu, fico sem abraço, é?”
— Vem cá, p***a. — ri, abrindo os braços e puxando as duas de uma vez.
— Pede benção pra tua tia, menino — falou sorrindo e balancei a cabeça rindo.
Ficamos os três, abraçados, rindo das coisas.
Meu ferimento tava doendo, ficar em pé é f**a. Mas se eu reclamasse iriam me botar pra deitar e tava bom pra c*****o ficar resenhando com eles.
— E aí, cês tão de boa? — perguntei, ainda rindo.
— Tamo. — Mel respondeu, ajeitando o cabelo. — Melhor agora.
— Voltou pra quebrada de vez, foi? — falei.
Ela soltou um sorrisinho e deu de ombros se afastando.
— Quem sabe, né? Depende do que tiver pra mim por aqui. — soltei uma gargalhada e ela piscou.
— Tu continua a mesma p***a de sempre. — ri, balançando a cabeça.
Ela riu também e encostou de leve no meu ombro e passou o braço na minha cintura.
Any se afastou, rindo, falando que ia buscar mais breja.
Depois de um tempo, falei que ia deitar.
O local da cirurgia doía pra c*****o.
Os moleque logo se ofereceram pra me ajudar, mas a Mel se adiantou.
— Eu vou com ele. — disse, passando o braço e abraçando a minha cintura.
— Relaxa, tô de boa. — avisei. — Só vou jogar o corpo no sofá e tomar um remédio.
— Quer que te leve pra cama lá em cima? — Mel perguntou enquanto andávamos devagar.
— Tá maluca, pô? — ri. — aguento mais ver cama não.
Ela gargalhou e foi me guiando, me zoando, dizendo umas besteiras no meio do caminho.
E eu ia rindo.. até que, chegamos perto da porta e a Maria Clara apareceu na hora.
Cabelo preso, blusa simples...
Mas o olhar dela, porra...
Queimava a minha pele mais do que ferro quente.
Fiquei parado, igual um o****o.
Olhando ela e ela também.
Um encarando o outro, tipo dois malucos tentando adivinhar quem ia falar primeiro.
O som sumiu pra mim.
Tudo desapareceu.
Menos a sensação estranha do meu coração batendo forte, descompassado, por ela.
Ela deu um passo pra frente e sorriu com as bochechas vermelhas.
E aquilo fode a p***a da minha cabeça.
— Oi, Iago. — disse, baixinho.
A voz dela me faz senti tudo de novo.
Até o que eu jurei que já tinha enterrado.
Demorei pra responder.
Tava tentando achar as palavras no meio do caos que ela me causa.
— Oi, Maria. — saiu meio rouco, meio estranho, mas saiu.
Enquanto os olhos dela tavam indo e voltando nos meus. Eu só me perguntava se ela também tava sentindo.
Porque eu tava sentindo pra c*****o.