Capítulo 43

2704 Words
Fernanda Entrei na sala e a porta fechou atrás de mim, me sentei na cadeira em frente à mesa dele e deixei as mãos no colo, tentando disfarçar o tremor que insistia em me denunciar. O ar-condicionado parecia mais forte do que o normal ou era eu que tava gelada por dentro mesmo. Olhei ao redor. Os quadros alinhados, as pastas empilhadas, as fotos de nós três e o nome dourado estampado nas lombadas: Doutor Eduardo Galdeia. Tudo ali tinha cheiro de poder e hipocrisia. Tudo limpo, polido. Tudo perfeito demais. Quem olhasse as fotos espalhadas pela sala garantiria que a nossa família era perfeita. Mas a realidade sempre foi outra bem diferente dessa. A porta abriu atrás de mim e eu nem precisei me virar. O som do sapato no chão encerado, o ritmo do passo… eu reconheceria em qualquer lugar. Era ele. — Eu quase não acreditei quando a Márcia disse que você tava aqui. — ele falou com calma, passando por mim. Levantei o olhar vendo o mesmo rosto, o mesmo controle ensaiado de sempre. A máscara perfeita. Só quem convive com ele mais de vinte e cinco anos sabe o que existe atrás dela. — Eu vim porque a gente precisa conversar. — respondi. A voz saiu segura eu não era mais aquela menina fraca de vinte anos atrás. Ele ajeitou o paletó e sentou atrás da mesa, como se fosse um juiz prestes a dar sentença. Os dedos se entrelaçaram e os seus olhos me estudavam. — Você tirou a aliança. — ele reparou? Olhei pro meu próprio dedo notando a marca da aliança que nunca havia sido retirada antes. — Tirei. — Isso quer dizer o quê? — Que acabou, Eduardo. — falei devagar. — E eu não tô aqui pra falar da gente. Ele inclinou o corpo pra frente, aquele olhar treinado pra me convencer. — Fernanda, eu sei que eu errei. — começou, falando baixo. — Eu tava nervoso aquele dia, alterado... Eu nunca devia ter feito aquilo. Foi um momento. Eu perdi o controle. Fechei os olhos por um segundo, respirando fundo. Porque a vontade que eu tinha era de jogar na cara dele que NÃO.. não tinha sido apenas um minuto e que aquilo já tinha acontecido várias vezes antes. Inclusive dentro do hospital, enquanto a filha dele fazia uma sessão de quimioterapia. Mas não quis entrar nesse assunto porque ele sempre vinha com a mesma desculpa de sempre. — Eu tô destruido Fernanda... sem você, sem a Maria Clara... sem a minha família. — ele continuou a encenação e eu não sentia nada. — Você não pode acabar com tudo assim do nada. Depois de todos esses anos juntos. Mais de vinte e cinco. Você sabe o quanto eu te amo. — Não sei, Eduardo. — cortei. — Eu sei o quanto você PRECISA ter alguém pra manipular e controlar. Ele ficou calado e os dedos pararam de bater na mesa. — A gente já se machucou demais. — continuei, encarando ele. — E eu não vou mais permitir. Chega. — Eu perdi a cabeça, Fernanda. — ele insistiu, mais alto. — Mas eu nunca faria m*l a vocês. Eu só quero proteger vocês duas. Rio baixo, sem humor nenhum, balançando a cabeça. — Proteger quebrando meu tornozelo? Agredindo a sua filha até ela desmaiar? Ou melhor, prendendo uma pessoa por pura birra? É essa tua ideia de proteção? Seus olhos escureceram. — Eu vim aqui por isso. — falei, me inclinando pra frente. — Pela nossa filha. Você sabe muito bem o que tá fazendo com aquele garoto. Ele respirou fundo. — Eu não posso interferir. — Pode, sim. — rebati. — você já está interferindo. Ele se defendeu, impaciente: — Ele é bandido, Fernanda. Tem que tá atrás das grades mesmo. — Pode ser um bandido, sim. — levantei o queixo. — Mas ele não fez metade das coisas que tão acusando ele. Quer prender ele? Então façam o trabalho de vocês e investiguem. Prendam ele pelo crime que ele praticou e não pelo o que você inventou. Ele baixou os olhos e não respondeu.. — Você sempre precisou ter o controle de tudo pra se sentir vivo. — continuei. — E agora que tá vendo que ela tá escolhendo outro caminho, que não é o seu, você quer punir ela. — Você tá no morro com ela? — perguntou, mudando de assunto. — Tô. — respondi, firme. Ele riu com desdém. — Parabéns. Vai morar no meio de bandido agora? É isso que virou? Daqui a pouco tá vendendo droga. Cruzei os braços. — É melhor viver no meio de bandido do que ao lado de um homem que eu não reconheço mais. — Eu te pedi perdão. — disse, num tom quase ofendido. — Eu errei, mas você também errou. — A diferença é que eu aprendi com os meus erros. — falei. — E você segue repetindo os teus. Me levantei, peguei a bolsa. — O que você quer? — pergunta. — Acaba com isso! Deixa o Iago sair da cadeia. — Só o que me faltava a minha mulher defendendo bandido — negou rindo e se levantou da cadeira. — Se eu aceitar? — Eu volto pra casa. — E a Maria Clara? — Ela ja passou tempo demais fazendo o que a gente quer. Dessa vez ela que vai decidir o futuro dela. — Você tá me pedindo algo impossível. — Tá bem.. a Helena vai te procurar pra conversar sobre o nosso divórcio. Ela é minha advogada agora. Passar bem, Eduardo. Virei as costas e fui andando até a porta. — Fernanda, não faz isso. — ele correu e segurou o meu braço. Antes que eu chegasse até a porta. — Vamos conversar direito. — Já conversamos. — dei um meio sorriso. — A conversa agora é entre você e a Helena. Licença. Ele se aproximou mais e soltou meu braço. — Tira o Iago da cadeia, Eduardo. É a nossa última chance. Ajustei a bolsa no ombro, dei dois passos pra trás e sai de lá. Eu tinha prometido que nunca mais ia perdoar ele. E eu realmente não o perdoei. Mas quando a vida colocou a felicidade da Maria Clara do outro lado da balança... eu não pensei duas vezes. Entre a minha dor e a paz dela, eu escolhi a paz dela. Mesmo que isso me custasse tudo. Iago Uma semana depois... Tava no hospital ainda. Com a p***a do soro pendurado no braço, corpo todo fodido, e a cabeça tentando entender como que eu ainda tava respirando. Achei que eu fosse morrer. O quarto era branco, frio pra c*****o e mudo. Parecia que o tempo tinha desistido de andar aqui dentro. O fato de não ter ninguém pra conversar incomodava mais que a dor. A enfermeira entrou, mexeu no soro, falou um “bom dia” de mentira e saiu. Um minuto depois, a porta abriu de novo. Não era a enfermeira, mas era o Flávio. Meu advogado. Ele entrou com um terno escuro e um envelope na mão. De longe, dava pra ver que vinha notícia boa pelo sorriso que ele tinha no rosto. — Tá acordado? — perguntou, parando do meu lado. — Tentando. — murmurei, rouco. — A única coisa que eu faço nessa p***a. Ele puxou a cadeira e sentou. — Vim te dar uma boa notícia. — Boa? — arqueei a sobrancelha. — Solta aí. Ele abriu o envelope e tirou umas folhas grampeadas. Reconheci o selo do tribunal no papel. — Saiu teu alvará, Iago. — falou reto. — O juiz mandou te soltar. Caralho! Só pode ser zoeira. Nem piscava. O barulho do monitor parecia mais alto do que antes. Tinha perdido a fé na moral. — Cê tá de caô. — falei, encarando o papel. — Não. Tá tudo assinado. Teu processo segue, mas tu vai responder na rua. Fiquei em silêncio e o coração disparou. — E como foi essa p***a? — perguntei, ainda sem acreditar. — O depoimento da Maria Clara. — ele explicou. — O juiz leu, comparou com as provas e entendeu que não havia provas suficiente pra manter a sua prisão. Então decidiu te soltar. Buguei quando ouvi o nome da Maria. Como sempre acontece quando falam dela. É automático. A mente viaja nela e eu piro. Não consigo esquecer a cena dela na delegacia. Cercada daquele p*u no cu do PM, ele chamando e ela indo atrás dele. Se fuder! Só de lembrar me sobe um ódio que arde. Se eu tivesse armado naquele dia, aquele filho da p**a não tava nem vivo mais. Por isso que todas as vezes que minha coroa falou dela, eu nem rendi assunto. O ciúme tava me corroendo e eu só imaginava essa p***a. Até sonhei que os dois tava fudendo e ela me chamava pra participar. Mó tiração. Mas nós vai bater um papo, pessoalmente. Só nos dois e olho no olho. Sem ninguém no meio. Porque é assim que tem que ser. — Vai responder em liberdade, mas nada de sair do Rio, entendeu? — ele reforçou, e eu voltei a atenção pro que ele falava. Assenti. — Já tá ótimo. Só de não tá dentro daquele inferno. Ele sorriu e continuou. — Tua alta sai agora de tarde. Eu vou avisar tua mãe, a Manuela… — Calma aí. — interrompi. — Será que rola do senhor não avisar ninguém, não? Ele me olhou tipo “tu vai aprontar”. — Quero chegar de surpresa, tá ligado? — falei, rindo fraco. — Ver a cara deles, pegar geral de surpresa. Flávio riu também. — Tu é doido, moleque. Mas beleza, não aviso ninguém e te levo lá. — Valeu aí, doutor. — dei um sorriso. — c*****o! Tô doido pra brotar em casa. Ele balançou a cabeça. — Eles vão levar um susto. (..) Mais tarde, a médica veio e fez o trâmite todo. Assinei o papel, botei a roupa que tava na sacola e saí do hospital. O sol de fim de tarde bateu no meu rosto e eu juro que senti gosto de liberdade. Doutor Flávio me ajudou a entrar no carro e enquanto ele dirigia o vento batia na minha cara, me lembrando de que eu estava vivo. — Todo mundo acha que tu ainda tá no hospital — ele falou, com um sorriso no rosto. — Vão levar um grande susto. — Melhor. Quero ver a reação deles. Ele assentiu e eu não via a hora de encontrar geral. Quando viramos na rua da casa dos meus pais, já deu pra ouvir o som alto que vinha de dentro da casa deles. O portão aberto, o povo na resenha. Flavio freou e eu desci andando com dificuldade. Um dos menores me viu primeiro. — c*****o! — gritou. — É O IAGO, p***a! A gritaria veio igual onda. — O HOMEM TÁ DE VOLTA! — c*****o O m*l TA NA RUA, p***a! IAGUIN TÁ SOLTO! Geral começou a ri, batendo palma, vindo pra cima. — Calma, p***a! — falei, rindo. — Devagar, c*****o, cês vão abrir meus pontos! Os moleques davam tapa nas minhas costas, um segurava meu braço, outro falava “c*****o, lek, tu ressuscitou!”. — Sou Jesus Cristo pra ressuscitar não, viado! — soltei morrendo de rir e com a mão na barriga. Foi quando meu pai apareceu na porta de vidro, pano na mão, cara fechada. — Que p***a é essa aí, mané? Quando me viu, parou de falar. A expressão mudou e o pano caiu da mão. — c*****o… moleque... — ele soltou um berro, vindo pra frente. — c*****o, p***a… Andou rápido, e quando chegou perto, me abraçou com força, quase me desmontando. — p***a, tu tá solto! — disse, rindo e quase chorando ao mesmo tempo. — c*****o, Iago. — Calma, pai. — ri. — Quer me mandar de volta pro hospital, caraí. Ele me soltou e me olhou nos olhos. — Tu é f**a, moleque. — balançou a cabeça. — Tu é meu filho, p***a. c*****o! Sorri vendo geral gritando meu nome e no meio daquela barulheira toda, minha coroa veio correndo lá de dentro, o olho já marejado, rosto vermelho de choro e sorriso junto. — Iago! — gritou, já me agarrando. — Meu Deus, meu filho! — Calma, mãe. — falei, rindo, abraçando ela forte. — Tô aqui. Acabou. — Nem me avisou que ia sair! — disse, batendo leve no meu peito. — Eu vou te matar! — Quis fazer surpresa,pô. — brinquei. — Achei que cês tavam tudo na bad por minha causa. Minha mãe me abraçou de lado e sorriu. — Tava geral na bad mesmo, meu filho. Só que a Mel chegou hoje. A gente queria fazer uma surpresa pra ela. — A Mel...? — repeti, franzindo o cenho. — Ela tá aqui? Assim que falei olhei pra porta e ela tava lá. Com um sorrisão na cara, cabelo solto e toda maluquinha. E do lado, a Any. — Chegamos juntos. — falou, rindo. — E nem foi combinado. — p**a que pariu... — soltei, abrindo um sorriso. — Quem é vivo sempre aparece. — Tava na hora, né não? — disse, vindo pra perto. Abriu os braços e me abraçou de frente. O perfume dela subiu rápido, bateu direto no nariz. — Saudade da p***a, viu? — falei, prendendo ela nos braços. — Eu também, Iago. — respondeu, olhando pra mim. Any também veio logo depois, soltando um “e eu, fico sem abraço, é?” — Vem cá, p***a. — ri, abrindo os braços e puxando as duas de uma vez. — Pede benção pra tua tia, menino — falou sorrindo e balancei a cabeça rindo. Ficamos os três, abraçados, rindo das coisas. Meu ferimento tava doendo, ficar em pé é f**a. Mas se eu reclamasse iriam me botar pra deitar e tava bom pra c*****o ficar resenhando com eles. — E aí, cês tão de boa? — perguntei, ainda rindo. — Tamo. — Mel respondeu, ajeitando o cabelo. — Melhor agora. — Voltou pra quebrada de vez, foi? — falei. Ela soltou um sorrisinho e deu de ombros se afastando. — Quem sabe, né? Depende do que tiver pra mim por aqui. — soltei uma gargalhada e ela piscou. — Tu continua a mesma p***a de sempre. — ri, balançando a cabeça. Ela riu também e encostou de leve no meu ombro e passou o braço na minha cintura. Any se afastou, rindo, falando que ia buscar mais breja. Depois de um tempo, falei que ia deitar. O local da cirurgia doía pra c*****o. Os moleque logo se ofereceram pra me ajudar, mas a Mel se adiantou. — Eu vou com ele. — disse, passando o braço e abraçando a minha cintura. — Relaxa, tô de boa. — avisei. — Só vou jogar o corpo no sofá e tomar um remédio. — Quer que te leve pra cama lá em cima? — Mel perguntou enquanto andávamos devagar. — Tá maluca, pô? — ri. — aguento mais ver cama não. Ela gargalhou e foi me guiando, me zoando, dizendo umas besteiras no meio do caminho. E eu ia rindo.. até que, chegamos perto da porta e a Maria Clara apareceu na hora. Cabelo preso, blusa simples... Mas o olhar dela, porra... Queimava a minha pele mais do que ferro quente. Fiquei parado, igual um o****o. Olhando ela e ela também. Um encarando o outro, tipo dois malucos tentando adivinhar quem ia falar primeiro. O som sumiu pra mim. Tudo desapareceu. Menos a sensação estranha do meu coração batendo forte, descompassado, por ela. Ela deu um passo pra frente e sorriu com as bochechas vermelhas. E aquilo fode a p***a da minha cabeça. — Oi, Iago. — disse, baixinho. A voz dela me faz senti tudo de novo. Até o que eu jurei que já tinha enterrado. Demorei pra responder. Tava tentando achar as palavras no meio do caos que ela me causa. — Oi, Maria. — saiu meio rouco, meio estranho, mas saiu. Enquanto os olhos dela tavam indo e voltando nos meus. Eu só me perguntava se ela também tava sentindo. Porque eu tava sentindo pra c*****o.
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