Iago
Assim que eu entro, o Arturo já berra um ih-ih-ih! agudo. Na moral, esse macaquinho parece que fala, parceiro. Ele abre os braços, sobe em mim como se tivesse molas nos pés e a cauda enrolando no meu braço pra não cair.
— E aí, filhão? — ele vai escalando ligeiro meu braço, as mãozinhas agarrando minha camisa até sentar no meu ombro, batendo palma todo serelepe.
Ele mete a cara na minha, cheira meu rosto, puxa uma mecha do meu cabelo e morde de leve brincando. Depois sorri mostrando os dentes.
Eu rio de canto, negando com a cabeça.
Por isso eu prefiro bicho do que gente pelo menos daqui não vai rolar traição pro meu lado.
Olho no relógio. Três da tarde já. Atrasei pra c*****o por ter parado na Rafaela.
— Mãe! — berro alto, entrando direto na cozinha. As panelas tão todas prontas, cheiro de rango no ar, mas nem sinal dela.
Volto pra sala, subo as escadas pulando os degraus dois a dois. Bato duas vezes na porta e entro.
— Tá dormindo uma hora dessas? — falo, vendo ela sentada na cama, cheia de papel espalhado, olho cravado nos documentos.
Me jogo na beira da cama, uma perna dobrada, encarando. Ela nem me responde, nem me olha direito. Continua floreando os papéis como se eu fosse só vento.
— Ei, tô falando contigo?
— Tava bom lá? — solta sem me olhar.
Dou um sorriso de canto, n**o com a cabeça. Desço o Arturo pro colchão; ele senta do meu lado, e eu passo a mão na cabeça dele por alguns segundos, antes dele começar as bagunças dele.
— Tava resolvendo um problema. Por isso demorei. Foi mal
Ela larga os papéis, me encara como se tivesse um raio-x na cara. Olhar que dá medo, papo reto.
— Sei bem o tipo de "problema" que tu tava resolvendo.
— Tava com o Peixoto, vendo uns bico novo. Se quiser pode perguntar pro Renanzim — falo sério.
— Esse Peixoto usa calcinha e unha de acrigel? — ela rebate, apontando pro meu pescoço.
Franzo o cenho, levanto e vou até o espelho.
Caralho… as mina meteram varios chupão, uns arranhão feião. Nem tinha visto. Odeio esse bagulho.
— Ah… isso aqui já tava. — minto na cara dura, voltando pra sentar na cama. — Tu queria o quê comigo?
Ela respira fundo.
— Queria almoçar contigo, Iago. Tu quase não vem aqui. Eu te vejo mais na rua.
Apoio os cotovelos nos joelhos e passo a mão pelo cabelo.
— Ah, para, mãe. Eu vivo por aqui. Só que eu tenho coisa pra c*****o pra resolver, não dá pra tá colando aqui toda hora que tu quer.
— Tua resposta é sempre a mesma. Falar contigo é a mesma coisa que falar com o teu pai. — fala juntando os papéis em uma pasta e separando apenas um. — Eu desisto, nem sei por que comecei esse assunto.
Levanto a cabeça e olho de lado pra ela. Dona Manuela e seus dramas.
— Eu prometo que vou vim mais vezes, beleza? — solto só pra aliviar.
Ela sorri de leve e eu balanço a cabeça.
Me levanto e ajeito a camisa.
— Será que tem um rango aí? Tô morto de fome.
Descemos juntos, Arturo subindo na minha cabeça e ela do meu lado. Entramos na cozinha que ainda tá cheirando tempero. Me sento, e ela me serve o prato, ficando sentada na minha frente.
— Vai me falar quem é a p**a da vez? — pergunta, cortante.
— Não tem p**a. — respondo, enfiando a primeira garfada na boca.
— Então é a mesma de sempre. — rola os olhos.
Engulo, fico sério, mas por dentro acho graça.
Só não rio.
— Cadê tua filha? — pergunto pra ela que me olha seria.
— Na faculdade. Hoje ela saiu mais cedo, tinha trabalho na casa de um amigo. — responde simples.
— Trabalho todo dia na casa de amigo? Sai de manhã, volta dez da noite… tu não acha estranho, não?
— Faculdade de medicina é assim mesmo, Iago. Tua tia também vivia assim.
— Sei não. Essa menina tá aprontando algum bagulho.
— Para de pegar no pé da garota. Tudo bem ela ser voadinha, mas estudiosa ela é, isso a gente não pode negar. Responsável e nunca me deu nenhuma dor de cabeça.
Ela fala com os olhos transbordando orgulho.
— Aliás, vi um curso excelente de engenharia. Pensei logo em você, porque você é fera em cálculo...
— Mãe, eu não curto esses bagulho de faculdade. Meus objetivos são outros. — falo sem paciência.
— Então faz um curso técnico, simples… qualquer coisa. — insiste. — Eu só queria te ver fazendo algo que não envolvesse a possibilidade de ganhar um tiro na cabeça ou de ser preso que nem teu pai.
Engulo seco, empurro a última garfada pra dentro e levanto indo até a pia pra poder lavar o meu prato.
— Deixa que eu lavo. — ela levanta, vindo atrás.
— Relaxa. Eu lavo. — respondo, já passando a esponja.
Ela solta, como quem queria mudar de assunto:
— O Rogério me ligou hoje. Disse que entrou com outro habeas corpus pro teu pai, contestando tudo aquilo que o promotor alegou.
— Bom. — falo baixo, lavando o prato.
— Se Deus quiser, logo ele tá de volta. — ela fala suspirando e eu prefiro não me encher de espectativa novamente.
Porque cada vez que esse bagulho dá errado eu entro naquele espiral de denovo.
Coloco o prato no escorredor da pia e suspiro. A fé dela é grande… eu que já não boto mais fé em nada. Sou oco por dentro.
Manuela
09 de Junho de 2025
Sete dias se arrastaram, lentos, cada um parecendo um ano inteiro. E então chegou a segunda-feira que a gente tanto esperou.
Eu juro que só acreditei que dessa vez era real quando o advogado chegou aqui na porta do presídio junto com a gente, até então eu tava achando que era uma pegadinha de novo. Que mais uma vez a gente iria se encher de expectativa e depois se frustrar.
Mas dessa vez foi real.. depois de tanto tempo esperando por esse momento. Ele chegou.
O portão abre devagar, rangendo, e de repente lá está ele… o meu marido. Blusa branca, calça bege, chinelo, mais velho um pouco, barba grande, algumas marcas no rosto… mas, meu Deus, ele tá mais lindo do que nunca. Sinto minhas pernas fraquejarem na hora que eu o vejo e então corro, voando pros braços dele, me jogando com tudo e grudando nossas bocas num beijo desesperado, cheio de saudade e alívio.
— c*****o, tô livre! — ele fala com a voz embargada, me colocando no chão e segurando meu rosto entre as mãos grandes.
O sorriso dele brilha, e as rugas no canto do olho só o deixam ainda mais bonito.
Eu balanço a cabeça sorrindo, sem conseguir controlar a emoção. As lágrimas já começam a escorrer pelo meu rosto.
— Cadê o Iago? — ele pergunta, olhando rápido ao redor, e quando bate o olho no carro… trava.
Eu me viro, e lá está o nosso filho. Encostado no carro, mãos enfiadas nos bolsos, postura dura, olhar sério. Quase uma estátua. O silêncio entre eles pesa, como se o tempo tivesse parado. Os dois se encaram por segundos que parecem minutos, até que o Iago dá um passo, depois outro, e vai até o pai.
Eles se abraçam de lado, meio duros no começo, mas depois o aperto muda, se transforma num abraço de verdade. Sincero. Cheio de emoção. Vejo os olhos dos dois marejando e as lágrimas nos meus olhos só aumentam.
— Tu cresceu pra c*****o… — o Terror diz, apertando o ombro do filho e depois segurando o rosto dele. — Lembro de tu pivetinho, barrigudinho… agora tá do meu tamanho, bonito, atlético.
— Vinte anos, pô… — o Iago responde sem jeito, mas com um sorriso discreto de canto de boca.
— Que bom ver que tu tá bem, meu filho. — ele fala, com a voz cheia de emoção e com o olhar carregado de orgulho.
— Agora a gente vai comemorar tua volta pai. — Iago retruca, e os dois encostam a cabeça um no outro, sorrindo, como se aquele gesto fosse suficiente pra dizer tudo que não foi dito entre eles durante todos esses anos.
O Terror abre os braços, me chamando com um olhar e eu vou. Me enfio no meio dos dois e me agarro nele, respirando fundo o cheiro dele que tanto me faltou. Meu corpo treme de saudade.
Dentro do carro, ele se joga no banco como se estivesse descansando depois de tanto tempo dormindo em um colchão duro. Acende um baseado, traga fundo e solta a fumaça devagar, olhando pra mim.
— Cadê a Alicia? — pergunta, e no mesmo instante meus olhos vão pro retrovisor. O Iago desvia o olhar, preferindo encarar a janela.
— Tá fazendo trabalho da faculdade… — respondo, tentando suavizar.
Ele me encara, a fumaça espalhando pelo carro.
— Mas ela não quis vir ver o pai? Não sabia que eu tava pra ser solto, não?
— Sabia sim, amor… mas eu já te falei como ela é, né? — digo, apertando os dedos no volante.
Ele balança a cabeça, concordando em silêncio, e fica uns segundos calado. Depois, como se quisesse quebrar o clima estranho que ficou, ele se vira pro Iago puxando assunto.
— E, meu Flamengo? quem tá na frente do Brasileirão? — pergunta, puxando conversa de futebol.
O Iago responde. E aquele clima r**m que a falta da Alicia deixou começa a se dissolver, aos poucos.
Olho para os dois conversando enquanto dirijo e sinto meu coração cheio de gratidão. Lembro que nesses vinte anos eu e os meninos fomos poucas vezes visitar ele. Ele nunca quis, sempre dizia que era humilhação demais pra gente. Realmente era mesmo, mas eu não me importava — e nem as crianças. Só que ele ameaçou até proibir nossas visitas, então eu fiz o que ele queria. A última vez que ele viu o Iago e a Alicia foi no aniversário de quinze anos deles. Depois disso, ele brecou as visitas.
Eu mesma já estava há mais de nove meses sem olhar pra esse homem, apenas nos comunicando por telefone. E graças a Deus agora… ele tá aqui. Do meu lado.