Iago
Caí cedo da cama hoje, sem tempo pra enrolar. Cheguei no galpão e fui direto, verificar como tava o trabalho. O bagulho é que se a produção trava, a pista inteira empaca. Então eu precisava ver como tava o setor, tinha chegado material novo, e as bocas do morro deviam ser abastecidas.
Logo que entro, o cheiro do químico me bate na cara, aquele pó no ar gruda na garganta. Os moleques tudo no corre, um prensando, outro embalando, a fita estalando quando puxa, a mão colando o adesivo vermelho com o desenho de uma caveira e o nome do comando. Pânico & Terror era o nome escrito em baixo do desenho.
Ando entre as mesas, com as mãos no bolso, fiscalizando. Tijolo aberto, balança apitando, menor derrubando farelo no chão e levando a bronca do gerente. Tudo sendo conferido, afinal aqui não é bagunça. É linha de produção, disciplina. Se pesa errado, fodeu; se fecha m*l, prejuízo.
Na sala ao lado, o gerente das contas tá com os cadernos abertos, rabiscando quanto vai pra cada boca. Aqui cada rua tem sua boca, cada boca tem um gerente. Eles pegam o material pronto, distribuem pros vapores e prestam conta. Se neguinho vacilar ou acontecer qualquer bagulho. Quem vai decidir o que fazer sou eu.
Tô batendo um papo com um dos meus gerente quando chega um deles, todo desconfortável, vindo prestar conta atrasada.
— Faltou a Rua 3, chefe — solta, gaguejando.
Fico olhando dentro da cara do filho da p**a.
— Rua 3? — repito. — Tu sabe que não pode deixar uma boca descoberta, né? Uma falha dessa enfraquece o morro.
Ele tenta explicar, fala alguma merda de atraso, carga que deu r**m. Diz que tava com uns problemas de familia por isso não conseguiu me dá esse papo antes.
— Eu não sou teu psicólogo, parceiro. Tu vai cobrir esse vacilo. Vou descontar do teu pagamento e tu vai dobrar o turno essa semana.
O cara engole seco e assente. Aqui a chance é uma, ou tu faz o bagulho certo ou vai aprender do jeito r**m. Continuo rondando o galpão, vendo a caveira em cada caixa pronta pra descer pra rua. Fico marolando pensando em logística, até porque, esse é o fio que segura esse negócio todo.
Tava saindo quando trombo com a Lara, ela trabalha na minha segurança. Os cria chamam ela de Lara Croft, porque a mina é casca grossa, boa de mira e ainda é bonita pra c*****o. A gente já se pegou, já rolou, mas hoje não rola mais. Não por falta de vontade minha, mais por escolha dela. Diz ela que tava misturando as coisas.
— Aí, Iago — ela puxa, chegando com a postura de sempre — Tava precisando trocar uma ideia contigo. Os meninos falaram que tu tava aqui no galpão. Será que a gente pode desenrolar essa fita?
Assinto, e a gente entra na sala. Sento atrás da mesa, ela fecha a porta e se encosta ali, de braços cruzados, naquela posição defensiva que eu conheço bem. Dá gosto ver como ela ainda treme quando chega perto de mim.
— Senta — eu aponto com o queixo.
Mas ela n**a, firme.
— Tô bem aqui — responde, sem sair do lugar.
Eu sorrio por dentro.
Se ela tá assim, é porque ainda tem vontade.
— É verdade que tu tá pegando o Wallace? — pergunto, encostando o olhar no dela.
Ela desvia o olhar do meu e mora o chão.
— Eu não vim falar da minha vida pessoal. Eu queria saber se posso mudar de função — solta, voltando a me encarar.
Levanto devagar da cadeira e vou até ela. Paro na sua frente, poucos centímetros de distância e sinto o corpo dela tenso, a respiração curta.
— Quer saber se pode mudar de função?
— Sim — ela fala, e a voz treme um pouco.
— Não — respondo direto.
— Por que? Tem tanta coisa que eu posso fazer aqui no morro — rebate, e eu caminho na direção dela.
— Porque tu é boa pra c*****o no que faz. É uma das poucas aqui que manja de verdade e eu não vou colocar qualquer um na minha segurança. — digo, chegando mais perto, sentindo o corpo dela reagir.
O olhar dela dança do meu olho pra minha boca, eu sinto quando a cabeça dela quer seguir o resto do corpo. Eu boto os dois braços em volta do rosto dela, não encosto de verdade, só perfumo o pescoço dela com a minha proximidade, e a boca dela abre sozinha, como se uma parte tivesse obedecido antes da outra.
— Para com isso, Iago — ela sussurra, voz falhada. — O WL não é teu amigo?
— Eu não tenho amigo — respondo, deslizando o polegar nos lábios dela.
Ela solta o ar nervosa, e aquilo me deixa maluco.
A sensação de ter ela ali, tipo um ratinho preso na ratoeira, encurralada sem ter pra onde correr...
me fascina, de verdade.
Quando eu vou meter a boca na dela, ela desliza ligeira por baixo dos meus braços, escapando na malícia. O corpo passa rente, quase roçando no meu, e essa fuga rápida só me deixa com mais t***o, com mais vontade de agarrar ela.
— Eu não quero — repete, firme, encostando na mesa como quem coloca um escudo.
Me viro e agora é ela que me encara de longe.
— Não era isso que o teu corpo tava falando — eu solto, encostado na porta, observando ela.
— Não importa o que o meu corpo fale… o que vale é o que eu sinto de verdade. Tu me machucou, Iago. — ela solta — Eu fui parar no hospital por tua causa. Tu é doente, perturbado, um sádico que sente prazer em ver a outra pessoa sangrar, sofrer, chorar. Tu sentiu prazer quando tava me machucando, quando eu gritava de dor… tu não parou, tu continuava. Aquilo não foi sexo, foi tortura.
— Mas gozou não gozou? — pergunto rindo e ela não responde — Fala pô.
— Isso foi antes de você fazer aquilo comigo...
— Ah, c*****o — dou a volta na mesa e me sento de volta na cadeira, impaciente. — Vai ficar com essa p***a até quando?
— Pra sempre. Você quase me matou — a voz dela quebra. — Você me bateu, me cortou... tu sentiu prazer vendo eu naquele jeito.
— Para com esse caô de vítima, Lara — corto na marra. — Tu entrou sabendo qual é o meu corre, tá ligado? Se a fita pesou, se virou, eu lamento. Mas não vem querer me pintar de monstro não, porque tu sabia que nós não ia fazer amorzinho. — solto na lata.
— Você tem razão! Eu que fui burra — diz, quase chorando.
— Mimimi do c*****o, vai se fuder! — rebato seco, já sem paciência. — Melhor tu ficar com o WL mermo, que tem mó cara de quem mete fofo. Vai lá, curte teu rolé com ele. E sobre essa p***a de trocar de função, esquece... a resposta é não.
Ela assenti e limpa as lágrimas que tão caindo do olho.
— Só isso? — perguntei.
Ela assentiu calada, virou-se de costas e bateu a porta com um estrondo. A resposta mais clara que eu podia esperar.
Essas mina parece que é doida. Sabe muito bem onde tá se metendo e depois vem dar uma de coitadinha. Vai se fuder. Se eu tivesse assumido ela, tava até hoje sentando e sorrindo.
Bato a porta da sala com força, atravesso o pátio do galpão e vou direto pro carro. O sangue ainda ferve, a mão desliza pelo rosto tentando esfriar a cabeça, mas o ar quente só piora. Sento, ligo o motor, respiro fundo, encosto as costas no banco e fecho os olhos por um segundo. O celular vibra na minha perna. Número estranho.
Chamada
— Alô — solto.
— Oi... é o Iago? — a voz tímida do outro lado.
Já fecho a cara. A pessoa me liga e nem sabe que o número é meu? Vai tomar no cu. Ia desligar na hora, mas me veio na mente a mina lá... a filha do promotor.
— Sim — respondo curto.
— Sou eu, a Maria Clara... tô te ligando porque meus pais queriam te agradecer pelo que tu fez por mim.
Passo a mão coçando a barba e sinto o sorriso brotar no canto da minha boca.
— Te falei que tá de boa.
— Eu sei, mas é que... — ela pausa, e eu logo imagino ela toda vermelha igual ficou pra pedir meu número. Aposto que tá assim agora. — Eles queriam te chamar pra jantar aqui hoje. Mas eu super entendo se você não quiser vir, eu vou falar com eles que...
— Eu vou — corto a fala dela.
— Tu vem? — ela se assusta, e eu dou um riso. Acho que ela percebe, porque começa a se enrolar nas palavras. — Não é que... eu...
— Me passa teu endereço e o horário.
Do outro lado, ouço um sorrisinho baixinho dela.
— Tá, eu vou te mandar.
— Já é. — respondo.
— Tchau, bjo. — ela despede e eu desligo a ligação.
Fico marolando sozinho. Caralho... e o Renan jurando que ia ser difícil. Eu vou parar dentro da casa daquele cuzão.