Maria Clara
— Pai! Pai! — desci as escadas quase tropeçando nos degraus, a boca seca e o coração batendo feito um tambor dentro do peito. Minha mãe apareceu no meio do caminho com o celular na mão, arregalando os olhos ao olhar pra mim.
— O que foi, Maria Clara?
— Cadê o pai? — saí atropelando as palavras, sem fôlego.
— Deve tá no escritório… — apontou com o queixo, e eu já fui disparado pra lá.
Empurrei a porta com tanta força que quase bateu na parede.
— É mentira o que tão falando na televisão! — falei, não aguentava mais aquilo dentro de mim.
Ele se recostou na cadeira devagar, ajeitou os óculos com calma e me encarou serio. Meu desespero não mexia um músculo dele.
— E o que tão falando na televisão? — perguntou, e eu juro que eu segurei a vontade de chorar.
— Tão dizendo que a filha do Dr. Eduardo Galdeia foi sequestrada e levada pra comunidade… que o chefe do tráfico de lá a violentou. Isso não é verdade, pai! — as palavras saíram rápidas, emboladas, eu nem sabia como consegui dizer.
Senti minha mãe logo atrás de mim. Ela entrou devagar e parou perto da mesa, os olhos fixos nele.
— Não é possível que você teve a coragem de expor a nossa filha desse jeito… — a voz dela tremia. — Não é possível, Eduardo.
Ele juntou os papéis que estavam soltos na mesa, colocou todos na gaveta e trancou.
— E aonde tá a mentira nisso? — ele falou, calmo.
— A mentira tá em tudo! — respondi num fôlego só. — Não é justo culpar alguém de uma coisa dessas… um crime. O senhor não é o homem que sempre fala de justiça?
Ele ajeitou os óculos de novo, e o jeito que fez isso me deu raiva, porque parecia tão indiferente.
— Eu defendo a justiça… não bandido. Teu namoradinho não merece justiça, merece cadeia.
Meu coração apertou dentro do peito, tipo uma fisgada horrível. Minha mãe andou até a mesa, os olhos úmidos, encarando ele.
— Eduardo… você vai acabar se perdendo de novo. — ela disse baixo, mas parecia que aquela frase tinha um significado que só os dois entendiam.
Perdendo de novo? Eu não fazia ideia do que ela tava falando. Mas fiquei sem reação com a raiva que ele tinha nos olhos.
— Quem se perdeu foi ela… no momento em que subiu o morro pra se deitar com traficante.
— Eu não sabia… — fui sincera. — Eu não sabia quem ele era.
Meu pai riu sem rir, só com o canto de boca.
— Pois agora já sabe.
Olhei pra minha mãe, implorando por defesa, mas ela só apertava o peito com uma das mãos.
— O senhor sempre me ensinou a lutar pela verdade… então olha pra mim, pai. Não é justo condenar alguém desse jeito.
Ele me encarou por cima dos óculos, e aquele olhar atravessou minha pele.
— Não vou discutir justiça com uma garotinha inconsequente. Tu vai confirmar tudo aquilo que ouviu. — ele falava com tanto ódio que eu não conseguia entender.
— Eu não posso fazer isso. Não é justo. — minha garganta arranhava, eu não reconhecia o meu pai. — Tudo que aconteceu entre mim e o Iago… foi com a minha permissão. Ele não me sequestrou eu subi lá com a Luana porque eu quis.
Minha mãe levou as mãos à boca, os olhos arregalados. Parecia que tinha levado um choque.
Meu pai se inclinou pra frente na cadeira, o rosto duro, os olhos cravados em mim.
— Você tá se ouvindo, Clara? — o tom dele fez minhas pernas fraquejarem. — Tá admitindo que agiu como uma p*****a que sobe o morro pra se esfregar em meliante.
— Eduardo não fala assim...
O ar me faltava, mas eu não consegui recuar.
— Eu não sou vítima… não desse jeito que o senhor quer fazer parecer. — as lágrimas já molhavam meu rosto inteiro, eu nem me dava ao trabalho de secar.
Ele levantou de repente, o barulho da cadeira arrastando me fez estremecer.
— Você foi usada entendeu, Clara? — ele voou segurando os meus braços e me sacudindo forte.— Tu foi sequestrada, torturada é abusada. Entendeu?
Minha mãe esticou a mão pra segurar o braço dele, mas ele nem olhou.
— Pai, não… — tentei argumentar com ele, soluçando.
— Você sabe muito bem quem eu sou, tudo que eu construí durante todo esses anos como promotor… e ainda teve a audácia de trazer essa desgraça pra dentro da minha casa!
Meu peito parecia implodir. Eu não conseguia mais olhar pra ele. Baixei os olhos, e só sentia minhas próprias lágrimas descendo.
— Desculpa! Eu amo o senhor… — saiu num fio, quase sem voz.
Ele respirava pesado, o maxilar travado.
— Então prova. — ele solta cada palavra como uma lâmina. — Tu vai comigo na delegacia e vai dizer que foi mantida presa lá. Vai contar que ele e o pai dele te bateram, te violentaram. Vai botar a mãe dele no meio também. Tá ouvindo?
O chão parecia que tinha sumido debaixo de mim. Meu Deus… ele quer que eu crie uma história mentirosa só pra prejudicar alguém.
— Eu não vou fazer isso… — minha voz saiu fina, quase um sopro.
Ele estreitou os olhos, me lançando um olhar frio.
— Vai sim. — devolveu, frio.
Balancei a cabeça rápido negando, os dedos subindo pro cabelo, puxando uma mecha pra trás da orelha.
— Não vou. — repeti, sem conseguir olhar direto. — Não vou dizer uma coisa que não aconteceu.
Meu coração batia tão rápido que parecia doer.
Olhei pra minha mãe, tentando achar alguma proteção. Ela levou a mão à boca, o rosto pálido, não falou nada. Desviou o olhar e aquilo doeu mais do que o tom dele.
Meu pai então me soltou e me olhou de cima a baixo.
— Então se prepara, Maria Clara. — falou baixo, os olhos fixos em mim. — Porque eu vou enterrar esse cara vivo.
Invasão
Era por volta das cinco da manhã quando os primeiros foguetes estouraram lá em cima, anunciando que a polícia tava subindo. No mesmo instante, o radinho começou a chiar.
— Atividade! Atividade! — fogueteiro avisou. — Os caveira tão vindo!
Iago acordou com o barulho, pulou da cama, pegou o boné, a calça, camisa e vestiu rápido. Abriu o closet, puxou o fuzil, pendurou a bandoleira no ombro e já saiu no corredor calçando a meia e o tenis.
Lá fora, o helicóptero já rondava o céu. Tiros começavam a pipocar das lajes, bala traçante cruzando de um lado pro outro do morro.
Ele pegou o radinho e acionou a tropa.
— Cadê geral? Qual a posição?
A voz do Terror respondeu, abafada pelo chiado da frequência:
— Segura tua onda, Iago. Essa p***a é resposta da cagada que tu arrumou se envolvendo com a filha do promotor.
Iago balançou a cabeça, impaciente.
— Da a posição que eu vou colar aí.
— Se vier vai passar vergonha porque eu vou te fazer voltar.
O rádio ficou mudo depois do estalo.
Iago arrumou o boné, ajeitou o fuzil e subiu na moto. O barulho de rajada já comia solto nas vielas de baixo. Ele acelerou em direção à boca.
Na mesma hora, caveirão já empurrava as primeiras barricadas na rua de baixo, blindado avançando e as bala pipocando nas paredes.
No rádio, alguém gritava e a frequência tava cheia de chiado. Iago, largou a moto no canto, tirou o fuzil do ombro e subiu correndo a escadaria que levava pra boca.
Quando chegou na boca, viu o Terror descendo com o fuzil na mão e a tropa atrás dele.
— Tu não vem! — foi a primeira coisa que ele disse quando viu o filho vindo na sua direção, sem rodeio, sem drama. A voz saiu direta.
Iago nem ligou pro que ele disse.
— Eu não vou me encolher vendo esses arrombado avançar no nosso terreno. Esse morro é nosso, c*****o. Se tiver guerra, eu vou pra cima, vou peitar até o fim.
Terror deu um passo pra frente e agarrou o braço do filho com força, puxando de lado e olhando olho no olho:
— Tu tá pedindo pra se f***r, c*****o? Esses filha da p**a subiram sedento pra estourar a minha e a tua cabeça. Não é hora de pagar de herói não. Some daqui, rala da minha frente agora!
— É isso que tu faria? — Iago fala encarando o pai, o maxilar travado e o dedo apontado no peito dele — Tu ia correr pro canto e deixar os menor botar a cara por tu?
— Porque eu não sou desses. — continua — Se eu tiver que tombar, eu tombo junto com os meus. Se tiver que ralar, rala geral comigo. Eu não abandono quem fecha comigo.
Os dois ficaram cara a cara, olho no olho, nenhum dos dois querendo baixar a cabeça. Parecia dois leões no mesmo pedaço de terra, pronto pra ver quem ia rugir mais alto.
— Tu não vai descer, Iago — o Terror falou frio — Quem é o chefe aqui sou eu, eu tô botando a cara, peitando essa p***a. Tu não vai descer pra linha de frente. Tu vai ralar. Sumir da minha frente, vai ficar no teu canto até a poeira baixar. — o tom dele foi quase um berro. — Eu tô te dando uma ordem.
— E eu não vou cumprir a tua ordem — Iago responde firme, de cabeça erguida. — Enquanto tiver policia subindo esse morro eu vou tá trocando tiro com eles. Não vou largar meus irmão na mão, não vou ralar daqui feito um covarde.
— Se tão me caçando, vão trombar comigo aqui mermo. Mas pra me levar, vão ter que me matar, porque eu não me rendo nem fudendo.
Iago puxou o braço e olhou dentro da cara do Terror.
— Vou até o fim nessa p***a, c*****o. Tu pode esbravejar, pode mandar eu ralar pra p**a que pariu... mas eu não arredo o pé aqui.
Terror olhou pro morro, ouviu o helicóptero mais baixo, ouviu o som dos tiros do outro lado e respirou fundo.
Ele fechou os punhos, mantendo a cara fechada pro Iago.
— Então faz essa p***a direito, ok? — Terror, solta baixo mas firme, encarando o rosto do único filho homem. — Segura a tropa, mantém os cria na disciplina. Não dá mole, não fica se exibindo, nem vai na emoção. Se for pra tombar, que seja de pé, como homem de verdade. Mas não entra na voadora sem pensar.
Iago puxa o ar fundo, o peito ardendo estranho, como se tivesse a p***a de um aviso batendo dentro dele. Uma sensação r**m, quase premonição.
— Me promete uma fita... tu não vai fazer merda no impulso. — a pergunta do Terror demora alguns segundos pra ser respondida até que Iago faz um gesto com a cabeça, sem tirar os olhos dele.
— Prometo.
Terror olhou pra tropa, puxou o rádio e deu ordens rápidas:
— Tranca a p***a da escola! — Terror manda no radinho, dedo pressionando o botão e o suor escorrendo na mão. — Segura a laje dois. Quem tiver na em baixo corre pro alto agora, ninguém desce no meio dessa chuva de bala, escutou?
— Fica na contenção até eu dar o papo final. — fecha o radinho. — Atenção! Vamos descer.
Iago pegou posição no beco lateral, fuzil pronto. Os homens do Terror foram descendo pelas vielas até que as duas linhas se avistaram e então começou a trocação.
Eles não tiveram tempo de falar mais nada um com o outro. A guerra tinha começado e os dois, pai e filho, se colocaram na linha de frente. Cada um do seu jeito, mas dispostos a darem a vida caso fosse necessário.
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