Manuela
Já era noite quando empurrei a porta da enfermaria onde ela estava. Meus passos ecoaram pelo chão e fizeram a Alicia abrir os olhos. Ela tentou se mexer, mas gemeu de dor.
— Você pode nos dar licença, por favor — falei sem desviar o olhar da minha filha.
A acompanhante, que tava sentada do lado, entendeu na hora. Se levantou calada e saiu, deixando a gente sozinha.
Meu peito disparava só de olhar praquela cena. A Alicia ali, cheia de machucado, com o rosto inchado, e mesmo assim o que eu sentia não era pena. Era raiva. Era nojo.
Eu pensava: como é que essa menina teve coragem de fazer o que fez? Como é que uma filha pode ser tão baixa com os próprios pais?
— Mãe! Eu .. eu posso te expli... — ela começou a falar, mas não terminou.
Meu braço foi mais rápido que a razão. A palma da minha mão acertou o rosto dela com força. O sangue voltou a escorrer do corte no lábio e ela gemeu de dor.
Eu devia ter me segurado, mas não consegui. Só de ouvir a voz dela me deu vontade de quebrar ela inteira e acabar com essa falsidade.
— Mãe… me perdoa — ela chorou, as lágrimas escorrendo.
Olhei bem pra ela e pela primeira vez desde que ela nasceu eu não senti nada. Nada. Não tinha dó, não tinha compaixão. Não tinha restado nada. Aquelas lágrimas no rosto dela, pra mim eram inúteis.
Não valiam de nada. Meu coração de tão machucado parecia ter fechado pra ela.
— CALA A BOCA! — gritei, a voz saindo mais alta do que eu queria.
Eu não podia fazer escândalo dentro de um hospital, mas não consegui me controlar.
As minhas próprias lágrimas começaram a cair. Levei as mãos até a boca, tremendo, tentando segurar o choro.
— Por quê, Alicia? Me diz… por que você fez isso?
Minha voz saiu embargada. Eu queria entender. Eu precisava entender. Olhei bem nos olhos dela e senti o coração apertar.
Será que eu errei como mãe? Será que não dei o suficiente?
— O que que faltou, filha? Eu não fui uma boa mãe? Onde foi que eu falhei contigo? — continuei, sentindo minhas lágrimas descerem. — Eu fiz tudo que podia, tudo!
As lembranças começaram a vir como um filme.
— Eu lembro do dia que descobri que tava grávida de você… diferente do Iago, que veio de surpresa, você foi planejada, desejada. Eu e teu pai curtimos cada segundo daquela gravidez. Você foi sonhada antes mesmo de nascer, Alicia.
Minha voz tremeu mais. O nó na garganta parecia me sufocar.
— Seu parto foi tão lindo… quando você nasceu, eu olhei praquele rostinho e pensei: “é a minha boneca, é a minha menina”. Eu cuidei de você como se fosse de cristal. Brincavamos de boneca juntas, de panelinha.. até nos seus primeiros passinhos, as primeiras palavrinhas… eu tava lá.
Sorrir lembrando enquanto as lágrimas invadia o meu rosto e o dela.
— Sua primeira palavrinha foi " papai" e eu fiquei cheia de ciúmes. Mas ao mesmo tempo fiquei feliz de ver a alegria dele, chorando com você no colo.
As lágrimas desciam sem controle.
— A primeira papinha que eu te dei, a primeira boneca que te comprei. E agora você me apunhala desse jeito? Eu tô me perguntando até agora: onde foi que eu errei? Onde, Alicia? — gritei no final. — Por que você se uniu àquela vagabunda pra destruir a nossa família?
Ela chorava, o rosto todo molhado.
— Me desculpa, mãe, me desculpa… — ela soluçava. — Eu fui ameaçada, eu não queria, mas me obrigaram…
O sangue subiu na minha cabeça. Apertei as mãos e perguntei mais alto:
— Ameaçada de quê, Alicia? Do que ela te ameaçou? O que foi tão grave assim que te fez trair teu próprio pai? Que te fez pegar o meu celular, roubar as nossas conversas, e entregar tudo pra ela?
Ela só chorava mais e mais.
— Me perdoa, mãe… por favor… me perdoa. Eu amo você, eu amo o pai, eu amo o Iago… nunca mais vou fazer isso, eu prometo. Todo mundo erra, mãe, eu errei, mas nunca mais eu vou errar com vocês. — a voz dela falhava entre os soluços. — O meu pai quase me matou…
Eu enxuguei as lágrimas do meu rosto, mas a dor só aumentava.
— Você não tem noção do que eu e ele já passamos juntos. Do que já superamos. Quem é você pra vir agora e querer acabar com tudo que a gente construiu?
Ela se encolheu na cama, chorando e implorando perdão.
— Mas agora eu sei quem você é — me próximo do rosto dela — Você é uma pessoa ingrata. Mesquinha. Arrogante. Só pensa em você. Faz qualquer coisa pra conseguir o que quer. Não tem escrúpulos.
Passei a mão no rosto, limpando a última lágrima que eu derramaria por ela.
— Mesmo com teu pai preso, a gente nunca te deixou faltar nada. Eu nunca te ensinei a fazer m*l pra ninguém. Nunca te ensinei a mentir, nunca te ensinei a ser covarde. Pelo contrário. Eu te ensinei o que era certo e o que era errado. Mas, a minha parte, eu fiz.
— Se você é assim, é porque você não presta mesmo. Ou talvez eu que tenha errado mesmo.
— Não, mãe… não fala isso. — ela tentou se levantar, mas não conseguiu. — Você não errou, mãe. Me perdoa. Eu amo você, eu amo meu pai, eu amo meu irmão… não me abandona, mãe, por favor, não me deixa.
Respirei fundo e falei o que ainda precisava ser dito por mim.
— Eu só vim aqui pra olhar nos teus olhos e te dizer uma coisa: você não perdeu só uma mãe. Você perdeu a sua melhor amiga. Você perdeu a pessoa que ia estar contigo até o fim da vida.
Olhei pro teto, tentando achar forças pra não desmoronar.
— Porque eu sei o que é perder uma mãe, Alicia. Eu sei. Eu perdi a minha cedo, me tiraram ela. Eu sei a dor que é. Teu pai também perdeu a mãezinha dele. Mas você teve. Você teve mãe, teve pai, teve amor, teve tudo que eu não tive. E jogou fora. Então a partir de hoje, já que você escolheu esse caminho, seja feliz do teu jeito. Só não conta mais comigo.
Senti a garganta arder, mas continuei:
— Eu não vou dizer igual teu pai que você morreu pra mim, porque não morreu. Você saiu de mim, você é parte de mim, nove meses dentro da minha barriga. Eu nunca vou poder falar que você morreu pra mim. Mas eu posso dizer: você me perdeu.
Engoli o choro e finalizei:
— Espero de verdade que consiga tudo o que quiser sozinha. Que nunca precise de mim. E que nunca, nunca na tua vida, tenha uma filha tão traíra igual a você.
Me virei de costas antes que ela visse minhas pernas fraquejando e sai dali com o coração destruído. Porque a verdade é que eu estava tão machucada quanto ela. Porém por dentro.