O barulho da caneta riscava o papel, e o policial nem levantava muito o olho pra mim. Só ia perguntando e rabiscando o boletim de ocorrência.
— Então… me conta de novo, do começo. O senhor tava aqui dentro da clínica fazendo o quê?
Cruzei os braços, o Arturo pendurado no meu ombro.
— Consulta. Trouxe o macaco. — respondi seco. — Tava dentro da sala quando o moleque entrou. Já veio de arma na mão, mirando na doutora. Tava nervoso, xingando a mina e puxando o cabelo dela.
O policial levantou o olhar, arqueando a sobrancelha.
— E você… o herói aqui… ficou invisível o tempo todo? — soltou com ironia. — O cara não te viu, não te notou, não virou pra você em nenhum momento?
Dei de ombros.
— Assim que ele entrou, levantei a mão. Fiquei na minha, perto da porta. Sei lá. Talvez o moleque tava tão focado nela que esqueceu de olhar pro lado. Ou tava doido de pó, drogado até a tampa. — falei sem mudar o tom.
Ele encostou a caneta na boca, olhando pra mim com os olhos estreitos, como se testasse a minha resposta.
— É… pode ser.
Inclinei o corpo um pouco pra frente, olhando direto nos olhos dele.
— Mas, em vez de perder tempo tentando entender milagre… você devia agradecer que não tá escrevendo agora um boletim de dois homicídios. Seria bem pior, não acha?
Ele fechou a cara, mas não rebateu. Terminou de anotar e empurrou o papel pra frente.
— Me passa teu telefone.
Recitei de cabeça. Ele anotou.
— A gente vai entrar em contato, se precisar.
O Arturo ajeitou a cabeça no meu pescoço e eu falei tranquilamente.
— Tô à disposição. — falei curto.
Saí do ar frio do ar-condicionado da sala pelo calor abafado do corredor. Assim que passei pela recepção eu vi duas viaturas paradas na porta. Vários policiais espalhados e o Neguinho sendo jogado dentro de uma viatura.
Passei pela porta e ao olhar de lado vi a doutora. Ela ainda tinha os olhos e o rosto vermelhos, mas conversava com um PM.
Me aproximei.
— Tá bem? — perguntei.
Ela se virou rápido pra mim, deixando até de responder o verme que tava do lado dela.
— Graças a Deus… sim. — a voz aliviou. — Se você não tivesse ali… eu não sei o que podia ter me acontecido. Você salvou a minha vida. Nunca tive tanto medo, nunca me senti tão… tão.. assustada. — respirou fundo, com os olhos marejando. — Não tenho como te agradecer.
Mantive o olhar fixo nela, sem demonstrar nada.
— Eu fiz o que qualquer um faria.
O policial ao lado riu ironico, raspou a garganta e balançou a cabeça.
— Qualquer um? — ele repetiu com ironia, levantando a sobrancelha. — Tá de s*******m, né? Tu tá sendo muito… modesto. Tu foi quase um herói, cara. — riu de canto. — Último horário, clínica vazia, duas mulheres sozinhas… e tu. Um cara com a malícia certa pra desarmar o sujeito sozinho.
Ficamos nos encarando por uns segundos. Nem eu desviava o olhar e nem ele.
— Tá querendo insinuar algum bagulho, doutor? — soltei de cara fechada.
Ele deu uma risadinha de lado, baixou a cabeça e depois voltou a me encarar, empinando o peito como quem queria medir força. Antes dele soltar qualquer coisa, a doutora entrou na frente, botou a mão aberta no peito dele e segurou a tensão. Foi nesse instante que meu olhar desceu pro uniforme. No bolso, bordado no velcro, tava escrito Humberto. Guardei esse nome na mente, como quem grava um recado que vai cobrar mais tarde.
— Tô indo nessa, doutora. — falei, ainda travado, encarando o PM escorado no carro, braço cruzado, sem desviar de mim.
Acenei com a cabeça, virei de costas e já ia sair quando senti a mão dela no meu braço. Toque leve, macio. Baixei o olhar e vi a unha desenhada, delicada, igual às que a Alicia curte. Virei devagar e encontrei o sorriso dela.
— Eu... será que posso te agradecer de alguma forma? — a voz saiu baixa, meio trêmula. Ela mordia os lábios, mexia as mãos como quem não sabia onde colocar. — Eu tava tão nervosa que nem consegui falar nada direito... você foi tipo um anjo ali dentro. Obrigada!
Fiquei parado, só olhando.
Estranho aquilo.
Estranho o efeito que ela causava.
— Por favor... deixa eu retribuir de alguma forma. — insistiu, tentando sorrir de novo.
Olhei pro PM, que não desgrudava o olho de nós dois. Ela também olhou pra trás, percebeu, e voltou os olhos direto pros meus.
— Desculpa o que o Humberto falou... — respirou fundo, criando coragem. — Eu sei que você quis ajudar. Eu sinto...que você é bom.
Passei o olhar de cima a baixo nela, só pensando: coitada dessa garota.
— Não quero nada teu não. — soltei, seco.
— Tá... — ela desviou o olhar pros carros que passavam na rua, sem graça.
Fiquei reparando em cada gesto dela. Até que o som das sirenes das viaturas descendo a rua chamou minha atenção.
— Então... será que eu podia pelo menos ter o seu telefone? — largou de repente, vermelha até as orelhas.
Virei o pescoço encarando ela novamente. A cara dela parecia que tinha levado duas chineladas, uma de cada lado. Ri de canto achando aquilo engraçado.
Será que ficou assim só por pedir meu número?
Pego o aparelho e ela chega mais perto pra desbloquear a tela. O rosto dela fica quase na altura do meu e, sem querer, prendo o olhar ali.
No meio do movimento, os dedos dela encostaram de leve nos meus. A pele era quente, suave, quase elétrica. O perfume também bateu.
Quando levanta os olhos e cruza com os meus, se afasta na mesma hora, desconcertada. Digitei meu nome e o número, estendi de volta o celular e ela pegou rápido, ainda sem saber pra onde olhar.
— Tá aí. — falei.
— Obrigada... — respondeu baixinho, mas com um ar de riso.
Sorri rápido de lado também.
O Arturo desceu pro meu braço, agarrando firme e me despedi.
— Vou nessa. — falei.
Ela assentiu, toda vermelha e ainda com um sorriso nos lábios.
Atravessei a rua correndo e abri a porta do carro, botei o Arturo no banco do carona e sentei levando as mãos no volante. Antes de ligar, olhei pelo vidro e o PM já tava colado nela. Vi os dois se virando e entrando na clínica.
Girei a chave, liguei o motor e saí acelerando.