POV: Hannah Beatriz Montenegro
Acordei como se a noite tivesse dormido em cima de mim.
Meu corpo inteiro pesava. Até respirar parecia exigir esforço.
A discussão com o Cauã ainda martelava no fundo da cabeça, rabiscando meus pensamentos antes mesmo de eu ter coragem de levantar da cama.
Era como se a voz dele ainda estivesse ali, presa nas paredes do quarto:
— Você acha que vai fugir de mim assim, Hannah?
— Eu compro um apartamento no mesmo prédio! No mesmo prédio, c*****o!
— Se você for, eu vou atrás nessa p***a!
Ele gritava andando de um lado pro outro, os passos duros batendo no piso como socos surdos.
O peito dele subia e descia como se tivesse corrido uma maratona. A mão tremia.
A raiva escorria dele como suor.
Mas eu conhecia essa fúria: bruta, impulsiva, selvagem…
e toda ela construída sobre uma base frágil demais — medo.
Medo de perder.
Medo de largar.
Medo de ficar sozinho.
E eu não sabia mais se tinha espaço dentro de mim pra carregar os medos dele junto com os meus.
Suspirei, esfreguei o rosto com as duas mãos e sentei na borda da cama.
O chão estava frio sob meus pés descalços.
Eu passei alguns segundos ali, tentando decidir se levantava… ou se desistia.
Mas desistir nunca foi uma opção que me permitiram ter.
Levantei devagar, como quem recolhe peças quebradas.
Prendi o cabelo num coque simples, lavei o rosto, coloquei uma roupa discreta — calça preta, camisa clara, sapatilhas confortáveis.
Quanto menos chamasse atenção, melhor.
Olhei meu reflexo no espelho.
Eu parecia calma.
Uma tranquilidade falsa, ensaiada, m*l colada sobre o caos interno.
Peguei a bolsa com a mão trêmula e saí.
A rua ainda estava fresca.
O ar tinha cheiro de pão quente e café velho, e um vizinho fritava ovo em algum canto — aquele cheiro simples, de todo dia, que sempre me trouxe conforto.
Mas hoje… hoje parecia distante.
Estranho.
Como se eu estivesse deixando tudo para trás em câmera lenta.
Caminhei até o ponto, peguei o ônibus lotado, depois o metrô ainda mais cheio.
As pessoas conversavam, bocejavam, reclamavam do calor.
Eu só conseguia pensar no que me aguardava lá em cima, naquele prédio luxuoso demais para alguém como eu.
Quando subi a avenida e ele apareceu diante dos meus olhos, senti meu estômago virar.
A Blackwolf Corporation parecia tocar o céu.
Vidro, aço, linhas retas, elegância fria.
Era o tipo de lugar que fazia você se sentir menor só por existir na frente dele.
Eu parei por alguns segundos, respirando fundo, tentando convencer minhas pernas a continuarem.
A porta giratória parecia mais um portal do que uma entrada.
Encarei o vidro, meu reflexo tremendo na superfície, e entrei.
O hall era imenso.
Tetos absurdamente altos, mármore brilhante, funcionários com trajes chiques andando rápido, como se todo mundo ali estivesse atrasado para salvar o mundo.
Eu me senti barata.
Forasteira.
Um erro de CEP.
Mas continuei andando.
Me aproximei da recepção, com a voz tentando não falhar:
— É meu primeiro dia… Hannah Beatriz Montenegro.
A mulher digitou devagar.
Os olhos dela se moveram sobre a tela, depois subiram até mim com curiosidade — talvez reconhecimento, talvez instrução.
— Último andar. Diretoria.
O senhor Samael D’Angelo Blackwolf pediu que você fosse direto.
Meu coração congelou e ferveu ao mesmo tempo.
Ele pediu?
Pediu pessoalmente?
Por quê?
Uma fisgada atravessou meu peito, uma pontada de pânico que eu tentei engolir.
Agradeci com um fio de voz e caminhei para o elevador.
A porta se fechou e, pela primeira vez, eu fiquei sozinha no silêncio.
Eu encarei meu reflexo no metal polido.
Meus olhos pareciam assustados, como se estivessem me pedindo para voltar.
Será que ele descobriu sobre os gêmeos?
O pensamento veio rápido.
Cruel.
Meu Deus. Não.
Eu fiz tudo certo.
Eu apaguei rastros. Eu reescrevi documentos.
Ninguém nunca saberia.
Mas saber não impediu o medo de apertar meu peito como uma mão fechada.
O elevador subia rápido, mas cada número aceso parecia um lembrete de que eu estava indo direto para o passado que tentei matar.
Meu coração batia tão alto que eu podia ouvi-lo.
Quando as portas se abriram no último andar, a primeira visão que tive foi dela:
Rubi Montserrat.
Linda. Impecável. Intimidadora.
Alta, postura perfeita, cabelos castanhos-avermelhados brilhando como se tivessem luz própria.
Os olhos claros analisavam tudo com precisão — como se nada escapasse dela.
E o salto… ah, o salto dela soava como lei decretada no piso brilhante.
— Hannah — ela disse com elegância, sorrindo o suficiente para ser educada mas nunca gentil. — Venha. Vou te apresentar à equipe.
Eu a segui pelo corredor amplo.
As paredes de vidro deixavam entrar uma luz branca, limpa, quase c***l.
Cada passo dela ecoava firme, enquanto meus passos pareciam tímidos, hesitantes demais.
Entramos numa sala moderna e organizada, fria como uma sala de cirurgia.
Computadores alinhados, mesas limpas, olhares curiosos virando em minha direção.
— Esta é Hannah Beatriz Montenegro, nossa nova colega. — anunciou Rubi.
Elisy Mendes sorriu com calor sincero. — Bem vinda. Ela me cumprimenta gentilmente.
Cecília Moura inclinou a cabeça em reconhecimento.
Ísis Vilaró me analisou com olhos que pareciam decifrar pensamentos.
Jhonatan Ribeiro sorriu com educação ensaiada — havia algo escondido ali, ele me analisou como se quisesse saber se podia confiar em mim.
— Será um prazer trabalhar com vocês — respondi, tentando controlar a tremedeira dos dedos.
Foi aí que Rubi soltou a bomba:
— O senhor Blackwolf pediu especificamente que você fosse assistente direta dele.
A sala girou.
Assistente dele.
DELE.
Isso só podia ser um pesadelo.
Meu estômago virou água.
Meus pulmões travaram.
E a pergunta que eu temia explodiu dentro de mim:
E se ele descobriu sobre os gêmeos?
E se ele tentar tirá-los de mim?
— Ele está te esperando no escritório dele. — completou Rubi. — Pode ir.
Ela apontou o caminho.
Agradeci, tentando não parecer que estava prestes a desmaiar, e caminhei.
O corredor parecia mais longo do que antes.
As luzes mais frias.
O silêncio mais ameaçador.
A porta do escritório dele era enorme, escura, pesada — tão alta que parecia uma muralha.
A maçaneta gelada fez minha pele arrepiar.
Respirei fundo.
Toquei a madeira.
E bati.
Toque seco.
Preciso.
Fraco demais para o barulho que fez dentro de mim.
Por um segundo, o silêncio foi absoluto.
Então…
A voz dele.
Grave.
Firme.
Impossível de esquecer.
— Entre.
E meu coração quase caiu no chão.