POV: Hannah Beatriz Montenegro
Quando ouvi a voz dele — “Entre” — senti meu coração cair como pedra dentro de um poço sem fundo.
Minhas mãos estavam frias.
Meus joelhos pareciam gelatina.
Mas mesmo assim empurrei a porta.
O escritório dele engoliu minha visão inteira.
Era enorme.
Luxuoso.
Cercado por paredes de vidro dos três lados, revelando a cidade como um mapa vivo — prédios, ruas, movimento, tudo pequeno lá embaixo.
O céu parecia mais perto dali.
E eu? Eu me senti menor.
A luz natural entrava com força, iluminando a mesa imponente de madeira escura, polida como um espelho caro.
A cadeira dele era alta, elegante, digna de alguém que nasceu mandando.
E ali, de pé, com uma mão no bolso e a outra apoiada levemente na mesa…
estava Samael D’Angelo Blackwolf.
Quando nossos olhos se encontraram, por um segundo, fui jovem de novo.
Ingênua.
Apaixonada.
Burra.
Mas passou.
Como uma facada que você já aprendeu a suportar.
— Hannah. — ele disse meu nome como se tivesse direito sobre ele. — Sente-se.
Seu tom era sóbrio, firme, controlado… mas havia algo ali. Algo que só quem já ouviu aquela voz na pele reconhece.
Memória.
Raiva.
Desejo reprimido.
Talvez tudo ao mesmo tempo.
Eu não respondi.
Apenas me aproximei e sentei na cadeira diante da mesa, mantendo as mãos unidas no colo para esconder o tremor.
Ele só me observava.
Samael sempre teve esse olhar calmo demais, que atravessa e destrói com a mesma facilidade.
— Você chegou cedo. — ele comentou, contornando a mesa e sentando-se, a postura impecável.
Ele cruzou os dedos sobre o tampo de madeira. — Isso é bom.
Assenti, mas sem olhar diretamente para ele.
Foquei no vidro atrás, naquela vista absurda da cidade.
Era mais fácil encarar um mundo inteiro do que encarar os olhos dele.
Por alguns segundos, ficamos apenas respirando.
E dava pra ouvir.
A respiração dele firme, profunda.
A minha curta, irregular.
O ar parecia pesado demais pra dois.
Ele finalmente falou:
— Li a sua ficha.
Meu estômago deu um nó.
A voz dele tinha mudado com o tempo — mais grossa, mais cheia, mais carregada de autoridade.
Mas ainda era a mesma voz que já me conquistou inteira um dia… e depois me destruiu com a mesma facilidade.
— Você se casou com aquele índio, então. — ele disse, sem desviar o olhar. — Aquele que dizia ser apenas um amigo.
O ciúme escorreu pelas palavras.
Bruto, evidente.
Ele tentou disfarçar — e falhou miseravelmente.
Eu continuei olhando a cidade, mantendo meu rosto virado, tentando preservar qualquer fragmento de força.
— Sim… isso mesmo. — respondi com a voz firme, mesmo sentindo o tremor por dentro. — Ele foi um bom amigo quando tudo aconteceu.
Quando nós desmoronamos.
Quando eu precisei fugir de tudo que era você.
Quando nada fez sentido.
Mas eu calei isso.
O silêncio voltou, mas dessa vez ele parecia mais cheio do que antes — cheio de lembranças, de coisas que não dizemos, de tudo que ficou sufocado entre nós.
Samael então folheou a ficha e continuou, a voz firme:
— Vi aqui que você teve quatro filhos com ele.
— E que pediu o divórcio recentemente.
Eu engoli seco.
A garganta queimou.
O peito apertou tanto que senti minhas unhas marcarem minha palma.
— Sim. — respondi baixo. — Pedi.
— E por que não foi finalizado? — ele questionou, como se já soubesse a resposta.
Olhei para minhas próprias mãos.
Depois para o vidro.
Depois para lugar nenhum.
— Ele não quis assinar. — admiti.
Samael ergueu uma sobrancelha.
Devagar.
Quase como se tivesse acabado de ganhar uma informação que confirmava o que ele já desconfiava.
— Ele ainda te quer. — constatou. Não perguntou.
Minha respiração falhou.
— Eu… não sei o que ele quer. — murmurei. — Só sei que ele não assinou.
Por um instante, senti o peso do olhar dele me puxar.
Fugir era instinto.
Encará-lo era tortura.
Mas não consegui evitar — olhei.
E o mundo sumiu.
Os olhos dele eram exatamente os mesmos: azuis, intensos, perigosos.
Uma cor que já foi casa… e hoje é aviso.
Desviei na mesma hora, dolorida por dentro.
Ele percebeu.
Claro que percebeu.
Samael sempre viu tudo.
Silêncio.
Silêncio pesado.
Silêncio de dois corações que já se reconheceram.
Silêncio que machuca.
E então ele disse, com a calma que só os homens perigosos têm:
— Você trabalhará diretamente comigo.
Sentença.
Sem suavidade, sem escolha.
Minha mente foi rápida:
“Posso até fazer isso…
mas vou ficar na minha.
Samael é meu passado.
E eu não quero ele de volta nem pintado de ouro.”
Respirei fundo, junta-te de força em cada músculo.
— Eu sei. — respondi. — Vamos começar, então.
Havia uma determinação na minha voz que não vinha da coragem…
vinha do medo.
Do medo de ficar vulnerável demais perto dele.
De deixar escapar tudo que escondi por anos.
De perder o pouco controle que ainda achava que tinha.
Ele se recostou na cadeira, me analisando com aquele olhar que estudava, invadia, desmontava.
Mas dessa vez, eu não deixei entrar.
Ou tentei.
— Gosto assim. — ele disse. — Firme. Focada. Sem fugir.
A palavra “fugir” bateu no meu peito como uma flecha.
Porque eu fugi.
Fugi dele.
Do nome dele.
Da vida dele.
Das sombras dele.
E ele sabia.
Naquele escritório cercado de vidro, no topo da cidade, percebi uma coisa c***l:
Não importa o quanto eu suba…
Samael sempre será o ponto mais alto do meu abismo.
E agora ele era meu chefe.
Samael recostou na cadeira, mas o corpo dele não relaxou.
Ele respirou fundo, um ar arrastado, pesado, como se estivesse segurando algo muito maior do que deveria.
A mão dele subiu até o rosto — cotovelo firme na mesa, dedos tocando a boca, o polegar pressionando a linha da mandíbula.
Era um gesto tenso, contido.
Um gesto de homem que estava lutando contra a própria vontade.
Eu vi quando ele fechou os olhos por um segundo.
Só um segundo.
Mas foi suficiente pra revelar o esforço.
Ele queria perguntar.
Eu sentia isso.
Cada músculo dele denunciava.
E então…
ele deixou escapar:
— Como está o Jonah? — a voz saiu baixa, mais profunda do que antes. — Vi que ele saiu da cadeia há pouco tempo.
Meu corpo congelou.
Depois ferveu.
O sangue subiu tão rápido que eu senti o calor bater no meu rosto.
Minhas pernas ficaram rígidas.
A mão apertou tanto o braço da cadeira que meus dedos doeram.
Ele não ousou. Ele NÃO ousou.
Como ele tinha a cara de p*u de perguntar pelo meu irmão?
O meu irmão.
O mesmo irmão que ELE entregou para o irmão dele jogar na cadeia como se fosse lixo.
Uma onda de raiva me atravessou tão forte que eu quase me levantei.
Respirei fundo, tentando evitar explodir no meio da sala.
Meu pé bateu no chão, involuntário — um tapa seco no piso.
Meus olhos subiram, rápidos, afiados como faca, e encontraram os dele por um segundo mortal.
Ele sentiu.
Eu vi o impacto.
Endireitei a postura e falei com a voz mais fria que eu já usei na vida:
— Senhor Blackwolf, podemos, por favor, manter o profissionalismo?
— Eu prefiro não comentar minha vida pessoal com desconhecidos.
— Somos chefe e subordinada. Só isso.
— Não precisamos saber nada além disso um do outro.
As palavras cortaram o ar como lâmina.
O efeito foi imediato.
A sobrancelha dele se fincou com força, criando uma linha rígida.
O maxilar dele travou — duro, violentamente tenso.
E o olhar…
Meu Deus, o olhar.
Não era ódio.
Não era fúria.
Era pior.
Era um olhar de homem que levou um golpe no orgulho, no passado e no ego — tudo ao mesmo tempo.
Azul intenso.
Tempestuoso.
Cheio de perguntas que ele não ousava fazer.
Ele susteve minha resposta por alguns segundos longos e perigosos.
Sem piscar.
Sem recuar.
Depois soltou o ar, pesado.
— Tudo bem, Hannah. — disse, mas a voz não estava tão estável quanto antes. — Eu só… queria saber como ele está.
Eu firmei o queixo.
— Ele está vivo.
Direta. Crua.
Sem espaço pra sentimentalismo.
— E é isso que importa.
Inclinei o corpo levemente pra frente.
— Agora vamos trabalhar.
A tensão que se instalou entre nós era quase palpável.
Forte o bastante pra quebrar vidro.
Densa o bastante pra cortar com as mãos.
E pela primeira vez naquele escritório enorme e poderoso…
Samael Blackwolf não teve resposta imediata.