03 - key

1175 Words
Key Narrando Meu nome é Kylie, mas todo mundo me chama de Key. Sempre achei engraçado como esse apelido pegou, até mais do que meu próprio nome de batismo. Não é comum, eu sei, mas nunca liguei pra isso. Pelo contrário, gosto do jeito diferente que soa, quase como uma marca registrada. Tenho vinte e três anos, loira natural, um metro e sessenta e nove, olhos castanhos herdados do meu pai. E, bom, sou filha de uma socialite com um traficante. Mistura explosiva pra qualquer conservador engolir. Minha mãe, Kiara, sempre foi a dona de tudo no quesito classe e poder. Ela administra uma rede de hotéis que é nossa fonte oficial de dinheiro limpo, além de tocar pessoalmente o cassino do meu pai. Já meu pai… ele é outro papo. O cassino até dá prazer, mas o que move o sangue dele é a guerra, a treta, o barulho do morro. Ele vive disso. Não é à toa que ele é um lobo do morro. Eu? Sou filha única. Herdeira, patricinha, mas também cria do morro. Minha infância foi sempre essa dualidade. De manhã, eu estava de uniforme em uma escola de elite em Ipanema, cercada de meninas que viajavam pra Disney todo ano. À tarde, eu já podia estar correndo descalça no beco, jogando bola com os moleques ou sentada vendo meu pai comandar uma reunião séria. Aprendi cedo a alternar os dois mundos. Minha mãe fazia questão de que eu tivesse a melhor educação, curso de inglês, intercâmbio na França, balé, jazz. Só que meu pai também exigia que eu fosse forte. Ele me ensinou a atirar, a correr, a desconfiar dos olhares. Treinou minha postura, como se defender, como agir quando alguém tenta te diminuir. Então, dentro de mim, sempre existiram essas duas Keys: a que chora se aparece uma barata e a que não pensa duas vezes antes de cair pra dentro de uma treta. Hoje, estudo moda. Sei que não é o curso mais rentável do Brasil, mas dinheiro nunca foi problema. Faço porque amo. Acompanho tendências, assisto desfiles, coleciono revistas antigas, gravo vídeos para minhas redes. Meus “arrume-se comigo” são os mais vistos, minhas páginas são badaladíssimas, e, sinceramente, adoro o reconhecimento. Amo me maquiar, amo produzir tutoriais, e amo mais ainda a sensação de inspirar outras garotas. Só que por trás do brilho e da maquiagem existe o outro lado: o do morro. E esse é o lado que poucas pessoas conhecem de verdade. Eu entro em qualquer lugar. Sou aquela que ninguém suspeita, porque pareço só mais uma patricinha da zona sul. Mas é justamente aí que está meu trunfo: enquanto o pessoal acha que eu só entendo de blush, na real tô colhendo informação, passando pro meu pai o que ele precisa saber. É adrenalina pura. Lembro de quando era pequena e as meninas da escola debochavam de mim porque às vezes eu falava gíria, e para elas era coisa de suburbano. Eu voltava chorando, e no dia seguinte meu pai mandava me levar de motorista particular, com carro importado, só pra esfregar na cara delas que eu era diferente. Não demorou muito pra eu aprender a me impor sozinha. — Key, amiga, tá pronta? — perguntou Fernanda, minha melhor amiga, batendo na porta do meu quarto no apartamento do Leblon. — Tô quase, espera. — respondi, ainda retocando o delineado no espelho. Fernanda me conhece desde o ensino médio. Diferente de mim, ela não tem essa vida dupla. É cria do asfalto, filha de médico, mas sempre se deu bem comigo. Acho que ela é a única pessoa fora da família que realmente sabe metade do que acontece na minha vida. — Amiga, você vai atrasar a gente de novo — ela entrou, jogou a bolsa na cama e me encarou —, mas fala sério, como é que você consegue? Todo dia tá mais bonita. — É treino, né? — sorri, ajeitando o cabelo. — Não é só maquiagem, é técnica. Ela riu e pegou meu celular. — Já postou a foto do look? — Ainda não, vou postar no carro. O engajamento é melhor no caminho da festa. Descemos juntas pro carro. Eu adoro esse momento: sair produzida, cheirando perfume importado, sabendo que a noite vai ser longa. O Leblon sempre me recebe como se fosse casa, mas, no fundo, eu sei que não pertenço totalmente ali. Meu lar de verdade é o morro. No caminho, Fernanda comentou: — Às vezes eu esqueço que você não precisa estudar, sabe? Se quisesse, podia ficar só vivendo de herança. — Mas aí eu ia ser infeliz, Fê. Moda é minha vida. Dinheiro sem paixão não serve de nada. Ela suspirou, olhando a rua iluminada. — Você tem sorte, Key. Vive uma vida que muita gente sonha. — Sorte? — ri de leve. — É, talvez. Mas você esquece do outro lado. Ela não respondeu. Não gosta muito quando puxo esse assunto. Chegamos à festa em Ipanema. Gente bonita, música alta, champanhe sendo servido como água. Eu me misturei fácil, tirando fotos, cumprimentando conhecidos. Mais tarde, no terraço, Fernanda veio me encontrar. — Tá tudo bem? Você tá séria demais. — Tô de olho em um cara. — falei baixo. — Já vi ele no morro, não devia estar aqui. — Key, pelo amor de Deus, relaxa, a gente tá numa festa. — Relaxar não tá no meu DNA, amiga. Ela bufou e me puxou pela mão. — Então pelo menos dança comigo. Acabei rindo e indo. Esse é meu jeito: entre um passo de dança e um gole de drink, minha cabeça tá sempre calculando riscos. Horas depois, voltamos pro carro. Fernanda já meio cansada, eu ainda ligada no 220. Enquanto ela mexia no celular, abri meu aplicativo de anotações e registrei a presença do tal cara. Amanhã essa informação ia direto pro meu pai. Cheguei em casa tarde. Tirei os saltos, joguei a bolsa no sofá e me olhei no espelho do corredor. Às vezes penso no quanto minha vida é contraditória. De um lado, a menina que coloca silicone, que faz tutorial de maquiagem, que desfila em festa. Do outro, a filha de um homem temido, que passa informação, que entra em becos sem medo. Sou um pouco das duas, e acho que nunca vou deixar de ser. O Morro é minha casa, minha essência. E eu, sou o reflexo dele: linda, perigosa, cheia de brilho e, ao mesmo tempo, cheia de sombra. Eu já tive dois relacionamentos sérios, daqueles que todo mundo jurava que ia dar em casamento. Com vinte anos quase subi no altar, acredita? Eu também acreditava que tava pronta, que era amor pra vida inteira. Mas a vida, que nunca brinca, me livrou a tempo. Doeu na época, eu chorei, me senti perdida, mas hoje agradeço. Porque entendi que não preciso de ninguém pra validar quem eu sou. Hoje eu sou dona de mim, da minha história, dos meus desejos. Sigo me mantendo entre os dois mundos. Porque é isso que me faz feliz de verdade.
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