capítulo 2 Rey

2765 Words
📍 CAPÍTULO 2 — COMO O MORRO GANHOU REI ✍️ Narrado por Rey No morro, ou tu cresce… ou te enterram pequeno. Eu já sabia disso desde pivete. O dia que enterraram minha mãe como indigente, eu prometi pra mim mesmo que nunca mais ia depender de ninguém. Mas promessa de quebrada não se cumpre só com força de vontade. Se cumpre com poder. E poder, aqui, não é quem tem mais sorriso, é quem tem mais gente pronta pra matar por você. O motivo pra eu querer ser dono? Simples. Pra não ser humilhado nunca mais. Pra não ver mais ninguém mandando na minha vida. Pra nunca mais assistir um filho da p**a abusar da força porque sabe que ninguém vai reagir. Eu não queria ser “respeitado” só no papo, eu queria ser a lei. E, principalmente, eu queria ter braço pra achar o Ronaldo — o desgraçado que matou minha mãe — e arrancar dele cada gota que ele tirou dela. Pra isso, eu precisava mandar. Naquela época, o Morro do Cruzeiro tinha dono: Valtinho. Metido a malandro, cheio de corrente de ouro, moto cara e uns papos de “sou cria”. Mas todo mundo sabia que ele não era cria. Subiu porque herdou a boca de um tio que morreu, não porque conquistou. Valtinho tinha medo de tiro. Nunca vi trocar com polícia, nunca vi segurar fuzil de verdade. Só mandava os outros sujar a mão e ficava de longe. Isso, pra mim, era um prato cheio. Porque patrão que não se mistura é patrão que perde a rua rápido. Eu comecei por baixo, como todo mundo. Aviãozinho, com pacote na cueca e o coração acelerado toda vez que via giroflex subindo a ladeira. Ali já aprendi duas coisas: 1. Polícia não é teu amigo. 2. Boca não perdoa furo. Fui cumprindo missão sem erro. Entrega de noite, dinheiro contado, nunca desviava nada. O Valtinho até achava que eu era “fiel”. Mas a real é que eu já tava contando os passos pra chegar no trono dele. E eu tinha paciência. Porque no morro, pressa mata. Com o tempo, virei olheiro. Depois, contenção. Meu trampo era ficar de fuzil na mão e proteger a boca de invasão. E nesse corre, eu comecei a ver a fragilidade do reinado dele: — Tinha n**o da própria equipe vendendo por fora. — Tinha fornecedor atrasando entrega. — Tinha morador reclamando de abuso da tropa. E ele… nada. Só preocupado com baile e mulherada. Eu fui ganhando respeito na prática: resolvendo treta de morador, cobrando dívida, protegendo gente que o Valtinho ignorava. Assim, criei dívida moral. E dívida moral é a moeda mais forte que existe. A virada começou quando um dos seguranças dele, o Braga, tomou um enquadro pesado e ficou devendo favor pra mim. Eu salvei ele de ser levado pela polícia, dei esconderijo e grana pra família sumir por uns dias. O Braga nunca esqueceu. E foi ele o primeiro a me dizer: — “Patrão… metade da contenção prefere seguir você do que o Valtinho. É só tu querer.” Mas querer e poder são coisas diferentes. Então eu esperei. Passei meses minando a base dele. Interceptei entrega, atrasando carga sem ele perceber que era eu. Disse pra uns que a culpa era de fulano, pra outros que era de ciclano. O Valtinho, paranoico, começou a matar gente errada. A confiança nele despencou. E eu ali, no silêncio, oferecendo solução e cigarro pra quem sobrava. Juntei grana desviando carga, guardando num buraco no quintal da minha tia. Não gastei um real. Essa grana ia ser meu caixa quando assumisse. Quando vi que já tinha metade da tropa e três dos seguranças de confiança do Valtinho no meu lado, marquei a data: sábado à noite, baile na quadra. Ele ia estar lá, chapado, cercado só dos “fiel” — e metade desses já eram meus. O plano era simples: 1. Eu ia ficar perto dele, bebendo junto. 2. No momento certo, ia acender um cigarro e jogar a fumaça no chão — esse era o sinal. 3. Dois dos meus seguranças viravam arma pra ele. 4. Eu fazia o resto. O dia chegou. Noite quente, som estourando, cheiro de maconha e suor no ar. Valtinho, como sempre, ostentando: cordão grosso, anel brilhando, sorriso falso. — “Rey! Chega aqui, moleque!” — ele gritou. Fui. Ele me abraçou como se fosse amigo. — “Hoje a quebrada é nossa, pivete!” — disse, levantando a cerveja. Eu só pensei: “Hoje é minha.” Fui no bar, pedi duas latas. Na volta, acendi o cigarro. Traguei fundo. Olhei pro lado. Cuspi a fumaça no chão. O Braga e o outro segurança já sabiam. O primeiro tiro veio rápido, pegando um fiel dele no pescoço. O baile virou gritaria. O Valtinho tentou correr, mas eu já tava atrás. Puxei ele pelo colarinho, empurrei pro beco atrás do bar. Ele tentou sacar a arma. Torci o braço até ouvir o osso estalar. O ferro caiu. Pisei em cima. — “Qual foi, Rey?! Ficou doido?!” — ele gritou. — “Doido, não. Rei.” Ele tentou negociar: — “Te dou metade da boca, te boto como número dois, é só largar essa p***a…” Eu ri na cara dele. — “Número dois? Tu já é passado, Valtinho. Hoje tu não perde só o trono… tu perde a vida.” Encostei a arma na testa dele. Olhei no olho. Quis que ele visse quem ia mandar no morro depois. — “Vai mandar recado lá pro inferno: quem reina agora é o Rey.” Atirei. Seco. O corpo caiu como saco de areia. Sem discurso. Sem cerimônia. Voltei pro baile. A música tinha parado, todo mundo olhando. Levantei o fuzil e falei alto: — “Quem tá comigo, tá comigo. Quem não tá… tem até amanhã pra sumir.” Ninguém saiu. No dia seguinte, o morro acordou diferente. A contenção me chamava de patrão. O fornecedor me ligou direto, dizendo que o Valtinho era problema antigo e que agora ia ser “só progresso”. O povo na rua baixava a cabeça quando eu passava. E eu sabia: o trono era meu. Mas no morro, trono não é cadeira. É mira. E, daquele dia em diante, eu nunca mais dormi sem a mão perto do ferro. Porque eu tomei o morro na bala… e só largo ele quando alguém me derrubar igual eu derrubei o Valtinho. E pra isso, irmão, o cara tem que ser mais frio, mais ligeiro e mais sujo que eu. E não é qualquer um que tem essa coragem. Porque aqui no Cruzeiro, pra peitar o patrão, tu não precisa só de arma… tem que ter moral. E moral, parceiro, eu comprei com sangue. No outro dia, o beco tava murmurando. Mina cochichando no portão, moleque correndo pra ver a cara do "novo dono". Velha fechando janela quando eu passava. Mas ninguém falava na minha frente — e isso pra mim era música. Silêncio no morro é respeito. Primeira missão como patrão foi botar disciplina. Chamei geral na quadra. Cheguei de fuzil pendurado, corrente no pescoço e olhar seco. — “Escuta aqui, cambada… A partir de hoje, quem manda aqui sou eu. Boca não atrasa, carga não some e ninguém vende por fora. Quem fizer merda vai cair de cara no barro, e eu mesmo vou cavar o buraco. Tá entendido?” — “Tá entendido, p***a?!” — repeti, com a voz cortando o silêncio da quadra. Todo mundo respondeu um “tá” meio murcho. — “Eu não ouvi, c*****o!” — berrei. — “Tá ENTENDIDO?!” Aí sim veio o coro: — “Tá, patrão!” — “Então grava no coco: aqui não tem meia palavra. Aqui é 8 ou 80. É sangue bom ou sangue no chão. Se errar, paga. E se pagar, paga com a vida. Morro não é creche. Ninguém tá aqui pra cuidar de criança.” Olhei pra cara de cada um. Um por um. — “Primeira regra: boca não atrasa. Se o cliente tá na laje dele esperando, vai receber. Nem que tu tenha que subir com polícia no calcanhar, nem que tenha que se arrastar baleado. Quem deixar carga na rua é homem morto. E eu mesmo vou puxar o gatilho.” Dei dois passos pra frente, encostei no ombro do Magrão. — “Segunda regra: ninguém vende por fora. Nem um papelote, nem uma grama. Aqui não tem esse papo de fazer corre paralelo. Quer vender por fora? Vai vender água no sinal. Aqui é tudo no comando. Quem vender escondido vai ter o mesmo destino do Rato… e cês sabem onde ele tá.” Teve uns que desviaram o olhar. Eu sorri de canto. — “Terceira: morador não se mexe. Eu não sou polícia, mas também não sou ladrão de galinha. Se roubar morador, mexer com mina de morador ou botar terror à toa, vai pagar. Não porque eu sou bonzinho… mas porque isso queima a boca. E boca queimada, eu apago.” Braga deu um passo pro lado, abriu espaço pra eu ver a molecada nova. — “Quarta: lealdade é até o último suspiro. Se a tropa tá no fogo, tu vai junto. Se um cair, tu segura até o fim. Quem correr, morre antes de chegar na esquina. E não me vem com desculpa de que ‘foi sem querer’. Aqui ninguém erra sem querer.” Peguei o fuzil, apontei pro chão e dei um disparo seco. O barulho ecoou pela quadra, fazendo uns três pularem. — “Última regra… e essa é a que mais vale: meu nome é lei. Se eu mandei, é porque é pra fazer. Não é pra discutir, não é pra enrolar. Quem me questionar na frente dos outros vai comer barro antes do sol se pôr. E não adianta pedir chance. Chance, aqui, cê cria antes de f***r comigo.” Silêncio. Só o cheiro de pólvora no ar. Passei o olho devagar, mastigando o momento. — “Ah… e outra coisa: patrão não dá sermão duas vezes. Quem esquecer o que eu falei hoje… vai lembrar com a testa encostada no cano.” Olhei pro Braga. — “Fala pra eles como é que patrão cobra.” Braga riu curto, baixou o fuzil e falou seco: — “Patrão não manda recado. Patrão busca.” Alguns sorriram, outros engoliram seco. Eu sabia: metade ali já tava me obedecendo por respeito… a outra metade, por medo. E no morro, tanto faz. O que vale é que obedeçam. — “Reunião encerrada. Agora cada um volta pro seu posto. E lembra: essa p***a aqui não é democracia. É ditadura com munição infinita.” Fui saindo devagar, fuzil no ombro, Braga e Cebola atrás. E no meu peito, aquela certeza fria: eu tinha o trono… e qualquer filho da p**a que tentasse tirar ia virar lembrança estampada no asfalto. Depois da reunião na quadra, subi pro ponto mais alto do Cruzeiro — o QG do dono do morro. Era uma laje larga, com vista pra quebrada inteira, de onde eu via até o reflexo do asfalto piscando lá embaixo. Ali não é só “o lugar onde patrão fica”. Ali é o trono. E trono, no morro, é posto de guerra. Na laje tinha duas cadeiras de praia, uma mesa de madeira encardida com marca de copo e queimadura de cigarro, um freezer velho e três rádios comunicadores ligados no chiado. Do lado, o fuzil encostado na parede e mais duas pistolas na mesa. Ali, eu não descanso… eu vigio. Braga subiu atrás de mim, com o jeito dele: calado, olho atento, passo pesado. Braga não é amigo. Eu não tenho amigo. Mas se tivesse que escolher um pra morrer do meu lado no fogo, seria ele. Não porque confio de coração — aqui a gente não dá o coração pra ninguém — mas porque o filho da p**a já provou que sabe matar e não treme. Ele encostou no parapeito, acendeu um cigarro e ficou olhando a favela respirar. — “Tá bonito hoje, patrão… mas tu sabe que não vai ficar assim muito tempo.” Olhei pra ele. — “Sei. Por isso que eu tô aqui em cima e não lá embaixo bebendo com eles.” Braga soltou a fumaça devagar. — “E o Cobra?” — “Cobra tá quieto… por enquanto. Mas ele é bicho que não aguenta ficar no buraco. Vai sair pra morder.” — “Se quiser, eu vou lá e corto a cabeça.” Bati a mão no ombro dele. — “Ainda não. Cobra é recado. Se a gente mata cedo, o morro pensa que foi fácil. Quero que ele se mexa… pra eu esmagar na frente de todo mundo.” Silêncio. Ficamos só ouvindo o chiado do rádio, o grito de criança brincando no beco e o ronco distante de uma moto descendo. O QG não é lugar pra festa. É onde eu penso quem vai viver, quem vai cair, quem vai ser cobrado amanhã. E Braga sabe disso. Ele não vem com conversa fiada. Ele traz problema… e solução. — “Patrão, o Pinguim tá sumido.” — ele falou, do nada. Pinguim era da contenção, moleque novo, rápido no gatilho. — “Sumido como?” — “Não tá no posto desde ontem. Dizem que foi visto no bar do morro do lado.” Fechei a cara. — “Então ele já tá morto. Só não sabe ainda.” Braga me olhou como quem espera ordem. — “Quer que traga?” — “Quero. Mas traz vivo. Quero que o morro todo veja o que acontece com quem troca de bandeira.” Ele assentiu e desceu sem falar mais nada. E eu fiquei ali, no alto, olhando o Cruzeiro como quem olha uma mina de ouro cercada de ladrão. Porque é isso que é ser dono: saber que todo mundo quer o que tu tem… e que todo dia é dia de defender. Peguei o rádio. — “Posto 3, situação?” A voz veio chiada: — “Movimento normal, patrão.” — “Fica alerta. Hoje vai ter recado.” Enquanto esperava Braga voltar com o Pinguim, abri uma latinha de cerveja e fiquei sentado na beira da laje. De cima, dava pra ver a viela onde o Valtinho caiu. E isso me lembrava todo dia: eu só tô aqui porque fui mais rápido, mais frio e mais c***l. E se um dia vacilar, vou cair igual. Quando Braga voltou, já vinha puxando o Pinguim pelo colarinho. O moleque tava suado, tremendo, com o rosto roxo de uns tapas que deve ter levado no caminho. Joguei ele no chão da laje. — “E aí, Pinguim… ouvi dizer que tu tá passeando fora do Cruzeiro.” — “Não, patrão… não é isso… eu só—” — “Só nada. Aqui não tem ‘só’. Aqui tem o que eu mando e o que eu não mando. E eu não mandei tu sair daqui.” Olhei pro Braga. — “Chama a tropa.” Em menos de dez minutos, a laje tava cheia. Contenção, avião, olheiro, todo mundo. Botei o Pinguim de joelhos no meio. — “Olha bem pra cara dele. Isso aqui é traidor em formação. Hoje ainda não virou… mas já tava no caminho.” O moleque chorava, balançando a cabeça. — “Patrão, juro que não ia—” — “Jura? Jura pra Deus, não pra mim. Porque pra mim, palavra não vale mais que bala.” Peguei o ferro, engatilhei. A galera ficou muda. Cheguei perto dele, botei o cano na boca. — “Última chance… quem é que tu foi encontrar no morro do lado?” Ele fechou os olhos. — “O Cobra…” Abaixei a arma. Sorri. — “Era só o que eu precisava ouvir.” Olhei pra tropa. — “Vão avisando pro Cobra que eu vou buscar ele. E que, quando eu chegar… não vai ter enterro, vai ter limpeza.” Dei um tiro seco no Pinguim. O corpo caiu pra trás, espalhando sangue no chão da laje. — “Alguém aí ainda tem dúvida das minhas regras?” Ninguém respondeu. E era isso que eu queria. Porque no Cruzeiro, silêncio é obediência. E eu, sentado no trono da laje, sabia que cada vez que o chão molhava de sangue, meu nome ficava mais pesado.
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