capítulo 4 Anos depois

1713 Words
✍️ Narrado por Rey — salto no tempo O tempo no morro não é medido em dias. É medido em enterros, trocas de comando e boatos que duram menos que a fumaça do tiro. Desde o dia em que o Cobra caiu no Funil, se passaram anos. Anos que pareciam décadas, mas que pra mim foram só um piscar de olho com o dedo sempre perto do gatilho. --- O Cruzeiro com dono O Cruzeiro de hoje não é o mesmo que eu encontrei. Antes, as bocas eram desordenadas, cada um mandava na sua esquina e vendia pra quem queria, mesmo que fosse polícia disfarçada ou ladrão do asfalto. Hoje, cada grama que sobe ou desce passa pela minha conta. Se não passar, não existe. As vielas foram limpas — não por bondade, mas porque entulho dá cobertura pra gente errada se esconder. O lixo some de madrugada, levado por um time que eu pago no bolso, não pelo Estado. O asfalto não pisa aqui porque sabe que quem manda no saneamento é o mesmo que manda nas armas. A polícia? Metade eu compro, metade eu assusto. E as duas metades obedecem. --- A roda de ferro Não é fácil manter o trono. Pra cada um que eu matei no primeiro ano, dois tentaram subir nos dois seguintes. Virei especialista em sufocar revolta antes dela virar guerra. Traidor aqui não respira o mesmo ar duas vezes. Se eu suspeito, já é sentença. Braga continuou sendo meu sub. O mesmo silêncio, a mesma presença pesada. Ele não me chama de “patrão” só por respeito. Ele sabe que no dia que eu cair, o tiro no ar vai ser dele. E se um dia ele cair… bom, até hoje ninguém teve coragem de tentar. --- A lei gravada no morro As regras que eu escrevi na laje viraram reza. O moleque que cresce aqui aprende antes mesmo de saber ler: Morador é intocável. Carga não atrasa. Traidor não tem velório. Quebrar regra é pedir pra sumir. E o morro entende isso. Até quem me odeia obedece. Não porque gosta, mas porque sabe que, no Cruzeiro, ordem é sinônimo de vida. --- A economia da guerra A cada ano, fechei duas bocas pequenas e abri uma grande, com mais segurança, mais controle e menos risco. Cortei intermediário. Agora, o contato com o fornecedor é direto — e se um deles pensa em vacilar, recebe visita minha pessoalmente, não recado. Os comerciantes já nem discutem a caixinha. Em troca, eu garanto que ninguém quebra vidraça, ninguém mexe com mercadoria. A padaria da Dona Zefa nunca mais foi roubada. Não por amor, mas porque eu disse que quem encostar ali vai descer o morro em saco preto. --- Casas, minas e silêncio Continuei usando a casa da Viela 23. As paredes já viram de tudo: riso, grito, prazer e plano de execução. Lá ninguém entra sem eu mandar. E ninguém pergunta quem sai. As mulheres vêm e vão. Nunca ficam. Nunca dormem mais de duas noites no mesmo travesseiro. Não porque eu não queira, mas porque o morro me ensinou que qualquer laço vira corda no pescoço. --- O fantasma chamado Ronaldo Mesmo com o morro no meu punho, o nome dele nunca saiu da minha cabeça. Ronaldo. O homem que matou minha mãe e enterrou o moleque que eu fui. Já ouvi boatos de que ele andou pelo asfalto, de que mora longe, de que tá morto. Não acredito. Gente r**m não morre fácil. Ela espera. E eu também. --- O Cruzeiro olhando pra cima Hoje, quando eu subo na laje, vejo um morro que respira no ritmo que eu quero. A luz que corta à noite é a que eu deixo acesa. O baile só começa quando eu autorizo. E o silêncio… o silêncio é meu som preferido. O trono continua pesado. Mas o peso me mantém vivo. E enquanto eu tiver força no dedo e frieza no olho, ninguém senta nele sem pedir licença. Porque aqui… > O Rei não envelhece. Ele só fica mais perigoso. ... O BAILE O baile do Cruzeiro não é festa. É ritual. Ali, cada batida de funk é martelo batendo no prego que mantém todo mundo no lugar. As luzes piscavam na mesma cadência que meu coração — devagar, calculado, frio. Subi pro camarote improvisado, madeira grossa e lona preta cobrindo por cima, alto o bastante pra eu enxergar cada viela que desaguava na pista. Braga veio logo atrás, postura fechada, olhar varrendo a multidão como se procurasse uma sombra fora do lugar. — “Tudo limpo, patrão.” — disse, sem desviar os olhos. — “Quero assim até o fim da noite.” — respondi, acendendo um cigarro e soltando a fumaça devagar, como quem marca território no ar. Lá embaixo, o povo se espremia. O calor subia em ondas misturando cheiro de suor, maconha, perfume barato e pólvora velha. As caixas de som tremiam no chão de terra batida, o grave batendo no peito mais forte que o álcool batia na cabeça. Cada rosto que virava na minha direção era um lembrete: aqui, eu sou o começo e o fim de qualquer conversa. Os olhares femininos subiam até mim como quem olha pro altar, esperando bênção. Mas eu não danço. Não desço. O rei não se mistura com a multidão — só pisa no meio quando é pra cortar cabeça. No canto, a boca funcionava no modo discreto: três moleques de boné baixo, mão ligeira, passando papelote dobrado com nota enrolada. Um segurança meu — colete por baixo da camisa larga — fingia que dançava enquanto olhava pras mãos de todo mundo que se aproximava. Uma mina atravessou a pista devagar, salto afundando um pouco na terra, vestido justo colando na pele suada. Olhar direto, sem desviar. Do tipo que acha que entende quem eu sou. Braga a viu primeiro e girou o corpo na frente, bloqueando a subida pro camarote. — “Não é hora.” — ele avisou. Ela só riu, mas recuou, olhando por cima do ombro uma última vez antes de sumir na multidão. Do meu lado, mais dois soldados se mantinham atentos. Um deles me disse que tinha visto dois caras do morro vizinho rondando mais cedo. — “Se encostar aqui, não volta andando.” — falei, seco, sem tirar o cigarro da boca. Do alto, eu não via só uma festa. Eu via engrenagens. Dinheiro entrando, confiança sendo alimentada, medo sendo reafirmado. O baile é mais que música. É a vitrine do meu poder. E enquanto o som tocar, todo mundo sabe que o dono tá vivo. O baile tava no auge quando eu decidi sair. Não porque acabou — baile do Cruzeiro só acaba quando eu mando parar — mas porque já tinha feito o que precisava: olhar, ser visto e deixar todo mundo lembrando que aquele chão é meu. Desci do camarote com Braga abrindo caminho. A multidão se dividia sozinha. Ninguém encosta, ninguém fala, ninguém respira mais alto. Do portão pra fora, o som ainda batia nas costas como um coração gigante, mas a rua tava quieta. Entrei na Hilux preta, vidro fumê, e a gente partiu pela ladeira. O morro de madrugada tem um silêncio diferente. Não é de paz — é de atenção. Até os cachorro sabem quando o dono tá passando. — “Vai pra Viela 23.” — falei pro Braga. Ele só assentiu. A casa apareceu no fim de uma curva fechada. Portão alto, muro sem marca de pichação, câmera virada pra cada canto da rua. Braga abriu, eu entrei. Lá dentro, o ar tinha outro cheiro — mistura de madeira encerada, perfume caro e o toque quase imperceptível de sexo antigo. A Viela 23 já tinha visto mais pele do que conversa. No sofá, uma morena que eu tinha chamado mais cedo esperava. Vestido curto, sem sutiã, perna cruzada, taça de vinho na mão. Olhar de quem sabia que tava ali pra servir um papel específico. Ela não disse nada quando me viu. Só ergueu a taça e deu um gole lento, como se quisesse testar minha paciência. Eu fechei a porta, tirei o boné e joguei na poltrona, ficando de pé na frente dela. — “Levanta.” — falei, voz firme, sem subir tom. Ela pousou a taça na mesa de centro e se ergueu devagar, aquele vestido curto deslizando pela pele bronzeada. Quando tentou se aproximar demais, inclinar o corpo e buscar minha boca, segurei seu queixo com força e afastei. — “Eu não beijo p**a que põe a boca em qualquer pau.” — falei, olhando fundo nos olhos dela. O sorriso provocante dela morreu no ato. A expressão virou algo entre orgulho ferido e desafio. — “Direto, hein? Tem homem que disfarça melhor.” — “Tem homem que mente. Eu não.” Ela ficou me olhando, ainda com aquele restinho de orgulho m*l digerido no canto da boca. O silêncio entre a gente pesava mais que chumbo. Eu dei um passo pra frente, lento, o bastante pra ela sentir o ar mudar. Minha sombra cobriu o corpo dela inteiro. — "Você sabe por que tá aqui, né?" — minha voz saiu baixa, mas com aquele peso que não precisa de grito. Ela assentiu, quase imperceptível. A mão dela ainda estava pendurada no ar, como se quisesse me tocar de novo. Eu segurei o punho e baixei devagar, como quem avisa que até o gesto mais inocente ali tinha que ter permissão. — "Então faz direito. Mostra que valeu a pena eu te chamar." Ela assentiu e começou a se mover. Os dedos deslizaram pelo próprio corpo, tirando o vestido com calma, como se cada segundo fosse pensado pra me provocar. Eu não pisquei. Só assisti, imóvel, deixando o silêncio trabalhar por mim. Quando o tecido caiu no chão, ela parou, me encarando de novo. A sala parecia menor, o ar mais pesado. Eu avancei um passo, depois outro, até sentir o cheiro da pele quente dela misturado ao perfume. — “Boa menina.” — murmurei, perto o bastante pra minha voz bater direto no ouvido dela. Não precisava de mais palavras. O resto… ela já sabia. E no Cruzeiro, quando o rei escolhe, não é convite. É ordem.
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