CAPÍTULO 1 – O REI DOS DOIS MUNDOS
Narrado por Ramon Viana Carvalho
Trinta e cinco anos. O espelho sempre devolvia a mesma imagem: olhos castanho-escuros, duros, sem alma. Rosto marcado por rugas precoces de quem aprendeu cedo demais o preço de comandar. Corpo forte, tatuado, disciplinado. Um homem feito de cicatrizes. Por dentro e por fora.
A cadeira de couro girava devagar enquanto eu encarava a cidade pela janela da cobertura. São Paulo ardia embaixo, as luzes dos prédios piscando como pulsações descompassadas. Eu era dono de metade daquelas luzes. Mas não era o suficiente. Nunca era o suficiente.
Atrás de mim, as estantes exibiam prêmios, diplomas, troféus. Mas nenhum mostrava a verdade. Nenhum contava como um menino da periferia chegou ali. Nenhum falava de sangue, de lama, de perda.
Me levantei. Caminhei até o bar. O uísque preencheu o copo. Olhei meu reflexo no espelho acima das garrafas. A tatuagem da serpente espiava pela gola da camisa. A coroa partida espreitava na nuca. A lembrança eterna.
Fechei os olhos por um segundo. Minha mãe gritava dentro da minha memória.
“CORRE, RAMON! LEVA O FABRÍCIO! NÃO OLHA PRA TRÁS!”
Eu tinha quatorze anos quando os tiros atravessaram nossa casa. Vi o corpo da minha mãe cair no chão da cozinha. Vi o corpo do meu pai ser arrastado pro beco. Mataram os dois. Porque meu pai devia. Porque a favela não perdoa dívida.
Antes de morrer, meu pai ainda fez uma última coisa.
Pegou o Matheus. Sete anos. Magro. Calado. O rosto mais triste que eu já vi. Ele botou o moleque no banco de trás do carro, com uma mochila furada e um bilhete no bolso.
Levou até a casa do juiz. Godoy. O mesmo que sempre fingiu não conhecer a gente. O mesmo que vivia em tribunal mandando prender os nossos.
Parou na calçada. Tocou a campainha. Quando o juiz apareceu, meu pai não falou nada. Só empurrou o Matheus pra frente e disse:
— “É teu. Cuida.”
E virou as costas.
Não durou dois minutos.
O juiz olhou pra criança como quem vê um fantasma. Chamou um segurança. Mandou o moleque pro carro. E dias depois… sumiu com ele.
Jogaram o Matheus fora.
Literalmente.
A gente só soube o que aconteceu muito tempo depois, quando o Caveira apareceu com ele na porta de casa. Sujo. Ferido. Mas vivo. Um milagre jogado no colo da favela.
Foi ali que eu entendi: o sangue que o juiz tentou esconder, a gente fez virar aço.
Matheus virou Bala. Virou irmão. Virou nossa bala perdida que aprendeu a mirar.
E ninguém, nem aquele filho da p**a de terno, vai apagar isso.
Mas me deixaram vivo. Eu e Fabrício. Ele tinha só cinco anos. Chorava no meu colo. Tremia. Ali, no chão sujo, eu prometi: “ninguém mais encosta nele. Eu juro.”
Promessa quebrada. Porque a vida cobra. E eu virei o cobrador.
Primeiro, roubei. Depois, vendi. Depois, matei. Aos dezoito, já controlava três bocas na zona sul. Aos vinte, já lavava dinheiro no nome de uma firma fantasma. Aos vinte e cinco, criei a Viana & Carvalho Contabilidade – a fachada perfeita. Os contratos limpos escondendo os contratos sujos.
A vida dupla não foi escolha. Foi sobrevivência.
E Fabrício? Eu criei. Eu eduquei. Eu protegi. Eu ensinei. Mas também levei ele pro inferno. Aos doze, ele já carregava arma. Aos quinze, já atirava. Aos dezessete, já me chamavam de “o irmão do Coringa.”
Agora ele era homem. Mas os olhos ainda tinham o menino que eu salvei. E que nunca consegui salvar por completo.
O telefone vibrou no bolso. Mensagem de Tatu.
“O vacilão tá aqui, chefe. Tá chorando.”
Suspirei fundo. Peguei a pistola da gaveta. Passei a mão na gravata. Soltei o nó. Tirei o paletó. Troquei o CEO pelo Coringa. De novo.
O elevador desceu em silêncio. O carro blindado me esperava. Tatu no volante. Fabrício ao lado, mastigando chiclete, nervoso.
— “Quer mesmo ir junto, moleque?” — perguntei.
Ele olhou sério. Os olhos negros, iguais aos meus.
— “Não sou mais moleque, Ramon. Sou teu sangue.”
Sorri de canto. Orgulho e dor. Misturados. Sempre misturados.
— “Então bora, irmão. Hoje… tu vai ver o que é governar pelo medo.”
O carro afundou no asfalto rachado. As luzes de luxo ficaram pra trás. A favela se abriu na nossa frente, como boca faminta.
Quando cheguei no galpão, vi o vacilão amarrado. Tremendo. Chorando. A cara desfigurada de tanto apanhar. Mas ainda vivo.
Fabrício ficou parado na porta, observando. Tatu encostou no pilar, fumando. Eu fui até ele. Agachei. Levantei o queixo dele.
— “Por que tu fez isso, moleque?” — minha voz saiu baixa, mas carregada. — “Eu te dei comida. Te dei lugar. Te dei arma. Te dei nome. E tu me entrega pros alemão?”
Ele chorava. Sussurrava desculpas. Eu sorri. Um sorriso frio. Um sorriso de quem já ouviu desculpas demais.
Me levantei devagar. Peguei a marreta. Pesei na mão. Olhei pro Fabrício.
— “Quer ser rei, Fabrício? Rei não dá ordem. Rei dá exemplo.”
Ergui a marreta. O grito veio antes do impacto. E no som do osso quebrando, mais um capítulo foi escrito no meu reinado.
Porque no fim… não existe herói onde eu cresci. Só sobrevive quem aprende a matar primeiro.
E eu aprendi cedo. Cedo demais.
A marreta caiu no chão. O vacilão já não gritava mais. Só gemia, quebrado, meio morto, meio vivo. Tatu ficou no galpão terminando o trabalho. Eu e Fabrício voltamos pro carro.
O motor subiu as vielas escuras. As luzes da favela tremiam nas esquinas. Os moleques armados abriram caminho. Lá no alto, a nossa casa no morro esperava. Não uma mansão. Não um palácio. Mas uma fortaleza. Um bunker. Um pedaço da guerra.
Entramos. O portão de ferro trancou atrás. Fabrício jogou a jaqueta no sofá. Sentou pesado. Jogou a cabeça pra trás. Ficou olhando pro teto rachado.
Eu fui até a cozinha. Peguei uma cerveja. Voltei. Encostei na parede. Observei ele. Os traços cansados. Os olhos fundos. Dezessete anos, mas já carregando o mundo nas costas.
Ele virou o rosto devagar. Me encarou.
— “Por que tu ainda faz isso, Ramon?” — a voz saiu rouca. — “Por que tu ainda vive assim? Metade lá na cidade, todo bonitão, todo respeitado… e metade aqui no inferno? Pra que essa vida dupla? Tu podia largar tudo, p***a. Podia deixar essa merda pra trás.”
Fiquei em silêncio. O som da geladeira era o único barulho na casa. O eco da pergunta dele pesava no ar.
Me aproximei devagar. Sentei na poltrona da frente. Cruzei os braços. Olhei nos olhos dele.
— “Tu acha que a vida dupla é escolha, Fabrício?” — perguntei, calmo. — “Tu acha que eu tenho opção? Que eu acordo e escolho qual máscara vou usar?”
Ele franziu o cenho.
— “Não entendo, p***a. Tu já ganhou. Tu já tem dinheiro, respeito. Todo mundo lá fora quer ser tu. Tu já venceu, Ramon.”
Dei uma risada seca. Curta. Amarga.
— “Vencer?” — repeti. — “Quem te falou que eu venci, moleque?”
Levei a cerveja à boca. Dei um gole longo. Olhei pro teto. Suspirei. Voltei pro olhar dele.
— “Escuta bem, Fabrício. Aquela p***a daquela casa no centro… é só uma vitrine. Aquele escritório chique… é fachada. Aquele terno caro… é farda. Tudo aquilo não é meu mundo. Nunca foi. Nunca vai ser.”
A voz engrossou. Ficou mais firme.
— “Meu mundo é esse aqui. O morro. A lama. O medo. A pólvora. O sangue. A fumaça subindo da boca. As vielas. Os becos. Os moleque com fuzil na mão. As mães chorando na laje. Esse é o meu mundo, Fabrício. Eu sou filho dessa p***a. Eu fui forjado aqui. No barulho do tiro. No grito da sirene. Na mão estendida da minha mãe me mandando correr.”
Ele respirou fundo. O olhar mais pesado. Eu continuei.
— “A cidade lá fora nunca me quis, irmão. Eles apertam minha mão porque precisam. Me chamam de empresário porque convém. Mas no fundo… eles me olham como marginal. Como ameaça. Eles me temem. Eles só me aturam porque sabem que eu mando.”
Acertei o peito com o dedo.
— “Mas **aqui, Fabrício… aqui eu sou rei. Aqui eu não sou tolerado. Eu sou respeitado. Eu sou temido. Eu sou seguido. Aqui meu nome pesa. Aqui minha palavra vale. Aqui, um estalo do meu dedo decide quem vive e quem morre.”
Ele baixou os olhos. Mas eu não terminei.
— “A vida dupla não é escolha, moleque. É necessidade. O CEO lá fora… é só uma máscara que me deixa ganhar dinheiro limpo. Que esconde o que eu sou. Que protege nossos negócios. Mas o verdadeiro eu… sempre foi o Coringa. Sempre será o Coringa.”
O silêncio caiu entre nós. Ele mordeu o lábio. Engoliu seco.
— “Mas tu não cansa, Ramon?” — sussurrou. — “Tu não queria ter paz, p***a?”
Sorri de canto. Um sorriso frio. Um sorriso velho.
— “A paz nunca quis eu, Fabrício. Desde o dia que eu vi pai e mãe morrerem… a paz foi embora. Eu não sei o que é paz. Eu nem quero. Eu só quero manter o que é nosso. Proteger o que é meu. E tu, moleque… tu é meu. Eu carrego tu. Eu levanto tu. Eu ensino tu. Porque no dia que eu cair… tu tem que estar pronto pra ocupar meu lugar.”
Ele me olhou, os olhos marejados mas firmes.
— “Eu não sou tu, Ramon.”
Apertei o rosto dele com a mão, com força.
— “Ainda não, Fabrício. Mas um dia vai ser. Ou vai morrer tentando.”
Soltei. Me levantei. Fui até a janela. Olhei pro morro iluminado pelas luzes amareladas. O som do baile lá no fundo. Os fogos. Os tiros. A vida pulsando no caos.
— “Esse morro não é só minha casa.” — falei baixo. — “Esse morro é meu trono. É minha alma. Eu sou o morro, Fabrício. Eu sou o barro. Eu sou o sangue. Eu sou o Coringa. E eu nunca vou sair daqui. Nunca.”
Ele ficou em silêncio. Me olhando. Me entendendo. Ou não. Mas aceitando.
Eu dei outro gole na cerveja. Encostei a testa no vidro frio.
Porque no fim… não existe saída pra quem nasceu rei da guerra.
Só o próximo tiro.
Só o próximo inimigo.
Só o próximo corpo.
E eu?
Eu tava pronto. Sempre estive.