Chão Manchado

1538 Words
Para ser honesta, estava desacreditando um pouco da veracidade da informação transmitida pelo contexto de horas atrás — além de achar ser inacreditável um assassinato ocorrer sem ninguém ter testemunhado, afinal está dia e a quantidade de alunos circulando era suficiente para que, afinal, alguém curioso fosse capaz de perceber. Todo mundo se comportando como se um estranho tivesse experienciando o ano letivo conosco desde sempre, me fez questionar se existia algo real nessa bizarrice toda, mas ao ver o pânico tão nitidamente estampado na face da moça que gritou desesperadamente pelos corredores que não tive opção senão dar o benefício da dúvida e entender do que se tratava. A princípio não conseguia verbalizar sem gritar e chorar, soltando frases incoerentes que custava muito extrair algo para localizar o corpo, de tudo que ela berrou aterrorizada e que pude distinguir fora “mutilado” e “irreconhecível” e se colocasse as duas palavras em conjunto em uma frase já servia como um alerta para não ir atrás do que quer que tenha atacado a pobre vítima. — Eu juro! Está lá! Está lá! — gritou choramingando. Anastasia tentava acalmar a garota para obter respostas mais concretas enquanto a Mirana ligava para polícia para relatar sobre a descoberta — o que lançaria holofotes nada positivos sobre a faculdade e a segurança interna. Não sabia como reagir a toda situação, nunca tinha passado por algo infimamente próximo de uma cena de homicídio, embora não temesse toda a questão de encontrá-lo a ponto de não ter discernimento para, ao menos, dizer onde estaria a pobre alma. Pacientemente, com uma suavidade quase sobrenatural, a fotógrafa trouxe a racionalidade da jovem de volta, fazendo-a coordenar melhor sua fala para especificar o que pôde da história. — Estava passeando quando vi na área atrás dos dormitórios... — balbuciou, resfolegando. — Ele parecia estar só desmaiado de bêbado ou algo assim, só que quando me aproximei... Estava coberto de sangue e... Permaneci quieta para não atrapalhar os esforços de ambas, um pouco nauseada. Escutando atentamente quando Lisa, que se acalmou o suficiente para revelar seu nome, contou mais sobre seus passos até chegar a se deparar com o cadáver, tomando fôlego conforme prosseguia com seu depoimento. Com a atenção voltada unicamente nesse assunto, senti-me aérea com respeito ao meu entorno, assistia a movimentação pela sala de Mirana e como a polícia tratava de isolar o espaço e afastar os eventuais curiosos. Meu impulso inicial fora acompanhar todo processo para ter uma noção básica, porém não levei a ideia adiante. Não queria pautar o dia em um fato que não me afetava diretamente e criar um medo excessivo por um possível assassino a solta, tudo que restava a nós, alunos e funcionários, era deixar nas mãos hábeis de profissionais para solucionar o mistério. Em meio a multidão, uma cabeleireira clara se destacava das demais e não pude evitar de encarar Gael a distância — enxergando uma certa seriedade em suas feições. Ele virou a cabeça e me olhou de volta como se soubesse que o estava julgando-o silenciosamente de longe, havia até um brilho intrigante nas orbes azuis. Desviei o foco voltando a me acercar ao carro da polícia, controlando a ânsia de mirá-lo novamente. — Você teria algum tempo para conversar ou posso deduzir que gosta de ficar me admirando? — a voz aveludada questionou, me fazendo girar nos calcanhares e quase tropeçar com as pernas desajeitadas e vacilantes. Gael me estabilizou para que não terminasse com comigo dolorida pela queda patética. Em um ato instintivo deveras agressivo, o afastei de mim e me posicionei de modo que demonstrasse frieza com sua proximidade e sua amabilidade. — O que você quer? — ele percebeu meu tom ríspido, entretanto, não se afetou. — Eu queria ter conversado com você, explicado as coisas. — Não vou cair no seu papo e não sou ingênua para não ter notado que há algo errado nisso tudo. — franzi o cenho, esperando alguma reação mais bruta ou uma revelação bombástica. Até mesmo uma risada vilanesca — mesmo que essa última fosse estúpida para os padrões comuns. Não o conhecia. No máximo algumas horas. E para mim, só a aura enigmática já funcionava como um lembrete de que teria que desconfiar. Gael transparecia serenidade. Não se irritou com minha leve provocação ou a hostilidade raivosa que dirigia a ele. Talvez o estresse e a confusão pela evidência de um assassino perambulando a solta por aí, subitamente me fizeram cair em um estado de auto consciência para me dar conta de como minha atitude arisca derivada de uma aversão natural do desconhecido me tornaram mais desdenhosa e cretina. Não confiava nele, obviamente, mas também não tinha que agir como se fosse uma babaca o tempo inteiro. — Olha, não te conheço e não quero me envolver com nada relacionado a você. — ignorei ele e voltei ao dormitório. Christine me fitou com os olhos arregalados. Não assustada, era mais como um reflexo de curiosidade e euforia. — O que foi? — Estavam falando com a Rachel sobre o corpo que acharam. — ela digitou no notebook. Franzi o cenho. — O boato se espalha rápido. — Aconteceu no Campus, normal virar assunto entre os alunos, não acha? Dei de ombros. — Conversou com o Gael? — O quê? — gani aturdida. — Estou perguntando se falou com o Gael. — repetiu repentinamente interessada. — Não. Eu nem conheço ele. — me joguei em minha cama, fechando os olhos. — Você poderia dar uma chance a ele. — ela riu empolgada. — Ele claramente se interessa por você. — Você ficou maluca? Christine pegou o copo com o que supus ser suco e tomou com o canudinho como se minha resposta negativa fosse uma birra — como ela estava atuando como se ele fosse um velho amigo, cogitei que ela apenas estivesse unindo dois colegas. — Eu não vejo nada de mais nele. — enterrei o rosto no travesseiro, pronta para descansar da correria. — Nem mesmo o acha bonito? — pelo timbre debochado já identifiquei o duplo sentido. Repeti mentalmente que não queria ter nada relacionado a ele. Recordei o azul vibrante dos olhos dele, os cabelos claro que se moviam com sutileza mesmo preso e a voz quase sedutora. Balancei a cabeça para não dedicar meus pensamentos a um estranho. — Vocês combinam, Eve. A única coisa que impedem um relacionamento é sua rigidez com ele. Concentrei-me em cenas do meu livro e deixei que meu corpo vagasse sem resistência ao mundo dos sonhos. Naquela noite tive um sonho. Nele estava cercada por uma escuridão interminável, tão densa que sequer enxergava minhas mãos. As cegas, andei usando o tato para me direcionar e, de repente, uma luz miraculosa ascendeu e vi Gael no fim do percurso radiante como o sol, irradiando vivacidade. Ele estendeu a mão para mim. Sem hesitar, o segurei. Só uma questão ecoou pelo meu lado racional: por que sonhei com ele? Despertei suada e com o coração galopando frenético. Toquei minha bochecha com a realização de que tinha corado com o desenrolar do sonho, muito chocada em como minha mente me traíra de tal maneira. Voltei a deitar colocando meus fones nos ouvidos e clicando em uma playlist aleatória para acalmar a inquietação que me golpeou com bastante força. Me recusava a acreditar que tivera o desprazer de devanear com um mero desconhecido, não contive a onda de frustração que me encheu, obrigando-me a respirar lenta e profundamente diversas vezes como mostrava nos vídeos de exercícios de yoga que Christine assiste de esporadicamente. Sem sair da confortável posição, fitei a janela para ter uma vaga ideia de quanto tempo apaguei. E pelos tons de laranja e amarelo que tingia o céu feito manchinhas de aquarela em uma tela imaculada, pude me orientar — deduzindo ter cochilado até o final da tarde com o crepúsculo entre as nuvens. Revisei as ocorrências de hoje, jogando com meu próprio ânimo sobre qual teria sido o mais perturbador: o aluno novo que todos lembravam menos eu ou o corpo descoberto? Brincando com meu humor ácido, escolhi a entrada do Gael que rompeu minha zona segura em um nível tão elevado que duvidava da minha sanidade — inclusive do que seria ou não verdade. Entretanto, o suposto assassinato também me arrepia com a premissa daquilo que se espreita por onde menos se espera. Fechei os olhos embalada com a canção instrumental que se seguia, entregando-me ao sono sem sonhos. Pela manhã, após me arrumar, encontrei novamente com Gael que estava parado há uma boa distância de mim. Ele esticou os braços para a árvore como se chamasse alguma coisa que meus olhos não captavam e, intrigada com sua ação, observei como se desenrolava. Deveria estar espionando ele indiretamente? Não, mas não conseguia parar. Queria descobrir o que ele aprontava. Para meu espanto, um borrão escuro saltou para os braços de Gael que o agarrou com extremo cuidado, afagando sua cabeça. O gatinho se aconchegou contra o peito dele e, involuntariamente, sorri com a cena, não detive a sensação nobre que aqueceu meu coração. Gael me olhou e acenou antes de levar o gatinho para qualquer outro lugar. Apertei o passo desconcertada.
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