Capítulo 03: Julgamento

2601 Words
A escuridão na qual eu andava há dias – assim parecia – era infinita. Não importava a direção em que eu ia, sempre chegava a lugar nenhum. Apenas mais escuridão. Eu não enxergava minha mão diante dos meus olhos, muito menos a superfície em que pisava, ou se havia uma. Perguntei-me como estariam Elena, meus pais e todas as pessoas que deixara para trás. Será que meu velório e enterro já tinham acontecido? Será que na lápide haviam escrito o que eu pedi para Elena que escrevessem? Sorri, lembrando-me de quando havíamos tido essa conversa. Meus estranhos pensamentos póstumos foram interrompidos por um zumbido distante, como o de um pernilongo vindo atormentar-me durante a noite. Olhei em volta, procurando; percebi o quanto isso era e******o, considerando que ali não havia qualquer luz. De muito longe vi um ponto brilhante vindo em minha direção; dele saiam pequenas faíscas douradas enquanto voava. Enquanto se aproximava o ponto foi tomando forma. Era uma pessoa. Uma pequena pessoinha, do tamanho da palma da minha mão. Uma menininha, percebi pelas curvas de Sininho. Ela voava com pequenas asas transparentes, como as de uma libélula, que batiam tão rápidas quanto as de um beija-flor se esforçando para mantê-la no ar. Ela ficou parada a alguns centímetros do meu nariz. Ela tinha a cara emburrada, estava com muito m*l humor. Percebi logo que ali era o último lugar em que era queria estar. – Você é Leonard Ross? – Perguntou impaciente, como se tivesse feito essa pergunta milhares de vezes. – Sim. – Finalmente! Sabe para quantas pessoas eu já perguntei o nome? Mais de mil! – Por que será que adivinhei. – E perguntei pra mesma pessoa mais de dez vezes! Pela Morte, por que o Criador inventou uma sala de espera tão escura? Que seja. Agora que te encontrei tenho um recado pra você da Morte... – Espera ai. Antes de tudo, quem é você? – Eu sabia que ela era quem a Morte mandara para me guiar, mas eu gostaria de um nome, considerando, é claro que seres como ela tinham nomes. – Desculpe. Não me apresentei. Meu nome é Týr, em homenagem a deus nórdico do combate. Meu pai foi um grande guerreio que lutou em favor do Reino de Godheim durante a Guerra dos Deuses... – Olha... Týr, certo? ... – Eu a interrompi. – Não estou entendendo metade das coisas que você está falando. Então vamos direto ao assunto: você é uma... fada? – Essa palavra não saiu fácil de minha boca; a pouco tempo atrás eu não acreditava em qualquer ser superior, mas conheci e fiz um acordo com a Morte em pessoa. E agora, fadas? Isso era demais; quase hilário de tão ridículo. – Sim. – Ele alongou o “i”; não tinha certeza de onde eu queria chegar. – E você é a enviada da Morte? Aquele cara velho de terno e que não usa sapatos? – Sim. – Repetiu o que havia feito segundos antes. – Isso quer dizer que as fadas são os mensageiros da Morte? – Mais ou menos. – Ela respondeu em tom professoral. – Minha raça não confraterniza muito com sua, e quando isso ocorre é porque algo de r**m está por vir. Normalmente é porque a pessoa ou alguém próximo a ela está perto de morrer. Ou pelo menos, é o que as pessoas de onde venho acreditam. E coincidentemente, isso aconteceu uma vez comigo. – Essa última parte, ela acrescentou mais para ela mesma do que para mim. – Mas este caso é muito diferente e incomum. A Morte falou diretamente comigo para encontrar alguém que já morreu. Isso é quase um absurdo. – Certo. Então, o que a Morte quer comigo? – Ele disse pra eu te explicar como vai ser daqui pra frente e te acompanhar até segunda ordem. – Ela fez uma pausa, olhou em volta, como se procurasse alguém que pudesse estar bisbilhotando. – Agora você será Julgado e mandado para o Paraíso, onde ninguém se lembra de suas vidas na Terra. Sabem que um dia viveram lá e que morreram, mas não se lembram de como aconteceu. Quando estivermos dentro, você deverá fingir que não se lembra também. Não deve contar a ninguém de sua vida terrena. Assim que chegarmos lá, devemos ir para o Castelo da Morte, onde ele mora. – Onde exatamente está esse castelo? – Meu tom era um tanto sádico, ela ignorou completamente. – Essa é uma questão para depois, agora temos que nos preocupar em entrar no Paraíso. Senti algo tocando meu pulso, de leve, quase como um fio de teia de aranha. Notei que um fio dourado mínimo estava amarrado no meu pulso esquerdo e ia até o tornozelo direito dela. Estranhei. – O que é esse fio? – Esse fio ligará você a mim no Paraíso. Ninguém poderá me ver ou ouvir, exceto você, ou se eu quiser ser vista. – Isso soa muito com uma magia saída de um livro de fantasia. – Retruquei, sorrindo com meu próprio sarcasmo. – E é. – Respondeu; ela riu ao ver minha cara de espanto. A Morte em pessoa? Fadas que trazem má sorte e que trabalham para a Morte? E agora, magia? Eu me senti dentro de um livro de Christopher Paolini. E quanto mais loucas as coisas ficavam, mais eu gostava. Durante toda minha vida eu sonhei em viver uma aventura como aquela, como as que eu jogava em meu vídeo game. Tudo indicava que uma aventura estava diante de mim. Nós andamos até minhas pernas estarem exaustas. Durante todo o tempo Týr não ficou quieta por nem um segundo, não sei de onde ela poderia possivelmente arrumar tanto assunto. Talvez fadas não se cansassem de falar, mas sei que elas cansavam de voar, pois ela sentou no meu ombro uma boa parte do percurso. Quando já não conseguia dar mais um passo, sentei. Não senti o chão frio ou quente; ele estava na temperatura exata do meu corpo, o que era um tanto estranho. – Esse negócio não chega nunca. – Reclamei, praticamente gritando, mesmo sabendo que não havia ninguém para ouvir. – Eu sei. Estou super cansada. – A fada concordou. Eu estava um pouco irritado por causa do cansaço e acabei vociferando com ela. – Cansada? Você m*l voou até agora! – E daí? Isso não tem nada a ver por que... – Começou a retrucar. Ela foi interrompida pelo som ensurdecedor de pedras pesadas raspando uma nas outras, como se a porta imensa de uma montanha decidisse abrir. Um círculo de tochas flutuantes nos cercou; seus fogos eram azuis e bruxuleavam assustadoramente. O som das pedras ficou ainda mais alto, quase ensurdecedor, e introduziu balcões desse material em forma circular. Sentados atrás deles numa simetria perfeita havia vinte e quatro homens encapuzados, nenhum dos rostos estava visível de minha perspectiva, e de fato não poderia confirmar se eram homens ou outros tipos de seres. Voltei-me para o ponto mais brilhante do círculo. A minha frente, sentados um pouco mais alto havia outros três seres. Aquele que estava no meio posicionava ainda mais alto que os outros dois e os vinte e quatro, em uma posição de liderança; deste eu não podia ver o rosto. E mesmo assim, eu conseguia imagem de quem se tratava. Aquele que estava à esquerda do líder era o homem mais lindo que eu já tinha visto em minha vida, e olha que não costumo achar homens bonitos. Imagina se a genética criasse alguém que era a mistura perfeita de Tom Welling, Taylor Lautner e Jensen Ackles... Bem, esse era o cara. Perfeição não era uma palavra boa o bastante para ele. Loiro e de olhos azuis, seus cabelos cresciam longos, abaixo dos ombros e era lisos, como se ele usasse os mais diversos produtos para mantê-los assim, inclusive chapinha. De suas costas dele saiam seis asas. Dois pares, os de cima, estavam fechados atrás, um deles acima da cabeça; os de baixo eu via apenas uma parte que escapava pela lateral do altar em que estava sentado. Seu peito estava descoberto, revelando músculos definidos sem qualquer pelo ou cicatriz. O último estava à direita do líder e era lindo como o outro. Porém, sua beleza era diferente; parecia mais velho, como um homem nos seus quarenta anos. Ele tinha o cabelo curto e castanho escuro, usava uma barba cheia na mesma cor do cabelo. Ele lembrava-me Chuck Norris. Ele também tinha seis asas que estavam posicionadas como a do homem à esquerda. Uma túnica cobria sua pele. – Vamos iniciar o Julgamento dessa alma. – Disse o homem do meio. Sua voz soou como o som de trovões e, ao mesmo tempo, a mais bela de toda existência. – Você é Leonard Ross? – Sim. – Respondi, hesitante; imaginei que ele já saberia meu nome. – Abram o Livro da Vida desse homem. Um dos encapuzados a minha direita abriu um livro que estava a sua frente, mas o qual eu não conseguia ver. Ele começou a ler meu Livro em voz alta. Ele leu toda minha vida num tempo que pareceu uma eternidade, inclusive os momentos mais íntimos com Elena e todas as vezes que burlei as regras, seja do Colégio Andersen ou as estabelecidas por meus pais. Por isso esperamos tanto tempo na escuridão, pensei. Ler todo o Livro da Vida de cada alma que morreu leva um tempo absurdamente longo. – Então esse morreu antes do tempo? – O da direita perguntou, para confirmar mais para si mesmo do que para os outros. – Sim, senhor. – Aquele que leu respondeu. – Certo. Ele estava destinado a conhecer a mim? – Perguntou o do meio, mesmo eu tendo a sensação de que ele já sabia. – Sim, Senhor. – Falou outra vez, mas com muito mais respeito. – Então esse é meu. – Disse o homem da esquerda, animado de repente, como se acordasse de um transe; ao mesmo tempo, seu olhar para mim era um tanto estranho. – Ele não aceitou a sua salvação! – Ainda não é sua hora de falar, Lúcifer. – Disse o homem do meio. Lúcifer encolheu-se em sua cadeira, amedrontado. – Senhor, não acha melhor olhar no Livro da Vida do Cordeiro? – Retrucou o da direita. – Se seu nome estiver lá, talvez algo tenha mudado seu destino. – Sim, Miguel, mas antes preciso saber qual foi à causa da morte. Týr tremeu ainda mais no bolso da minha jaqueta de moletom. Eu ainda estava com minhas roupas de quando morri, exceto que agora não estavam sujas de sangue – meu ou de Elena. Calças jeans, camiseta do Slipknot por baixo. Eu não havia notado quando ela entrou no meu bolso. Eu entendi porque ela tremeu. Minha causa mortis era: pacto com a Morte para salvar a mulher que amo. Agora, não sabia se isso seria bom no meu Julgamento ou não. Pelo quanto Týr tremia de medo, deduzi que não seria. Um calafrio escorreu em minha espinha. – Ele morreu ao salvar uma mulher de um tiro. Aparentemente, fez isso por amor a mulher em questão. – O mesmo dos vinte e quatro anciões que leu meu Livro da Vida informou. A Morte é tão poderosa assim? Capaz de enganar todo um júri? Eu ouvi falar de Lúcifer e Miguel, eram querubins – anjos com seis asas que comandam as Legiões; Týr me daria a explicação dali a algum tempo – talvez pudessem ser enganados com mais facilidade. E talvez até mesmo os vinte e quatro membros do júri. Mas o homem do meio, sendo quem é, não acredito que poderia ser enganado tão facilmente; se é que poderia ser. Seria a Morte tão poderosa a ponto de ser capaz de enganar a Ele? O homem do meio ficou pensativo pelo que me pareceu milhares de minutos. Lúcifer olhou direto pra mim, sorrindo, daquela mesma maneira que havia feito antes, quando falara. Tive a impressão de que ele sabia muito bem quem eu era e sobre o pacto que havia feito por Elena. O quanto mais ele sabia? Eu não podia dizer. Miguel não demonstrou qualquer reação diferente; ele não devia estar naquela conspiração. Aquele que se sentava ao meio passou a folhear um livro que estava deitado em sua frente. O Livro da Vida do Cordeiro, que, como eu saberia depois, era o livro que continha os nomes de todos aqueles que estavam destinados ao Paraíso, mesmo não significando que alguém que não esteja destinado não possa entrar, caso escolha a salvação oferecida. Às vezes, as coisas ficam complicadas demais para minha cabeça. Preferi continuar a pensar em Elena e nas pessoas que deixei para trás. – Aparentemente, seu nome está escrito no meu Livro. Ou seja, Ele queria que você fosse para o Paraíso. E você morreu antes do tempo. Então, o que farei? Você é um caso muito diferente, senhor Ross. O júri precisa discutir. Então as tochas azuis se apagaram e eu fui jogado na escuridão de novo. Týr não saiu do meu bolso, ela sabia que eles ainda estavam ali, discutindo sobre meu futuro. Talvez eles pudessem vê-la e acho que isso não seria bom, mas também me pergunto como ficar em meu bolso permitiria esconder-se dEle? Os detalhes me eram tão estranho, que apenas conseguia pensar que algum tipo de magia ancestral estava em ação – minha experiência com histórias de fantasia me indicavam isso. Alguns minutos, ou horas – era difícil contar o tempo naquele lugar –, se passaram antes que eu finalmente obtivesse uma resposta. Eu quase morri de tédio. Cheguei a deitar no chão e ficar imaginando como estaria a vida de Elena após minha morte. Quando as tochas se acenderam, levantei-me e esperei que a sentença fosse dada. Não queria ser obrigado a ir com Lúcifer, mas, ao mesmo tempo, seria legal ver que os planos da Morte teriam ido por água a baixo. Não consegui decidir qual seria a melhor opção. – O Júri tomou uma decisão. – Aquele que estava no meio disse com sua voz de doce trovão. – O réu, Leonard Ross, foi inocentado de seus pecados terrenos devido ao fato de não ter tido uma chance de aceitar o Salvador e por ter escolhido salvar sua amada. Você poderá ir para o Paraíso. Antes que as tochas apagassem mais uma vez pude jurar que Lúcifer sorriu maliciosamente pra mim. Uma luz surgiu a minha direita, a poucos metros. Caminhei cautelosamente até ela, sem saber exatamente se era algo bom. Conforme fui me aproximando senti uma brisa morna de verão. Reconfortante como um abraço de Elena. Nunca me senti tão vivo até aquele momento; e sim, eu via a ironia nisso. Quando eu cheguei mais perto, a luz já estava com minha altura e sem qualquer formato distinguível. Senti um impulso incontrolável de tocá-la, e minha mão o fez quase por vontade própria. Atrás da luz, havia o lugar mais lindo que já vi em toda minha vida – e recente morte. Uma mulher com duas asas de pássaro pousou a poucos metros diante de mim. Seu belo rosto em um sorriso simpático, como uma vendedora disposta a abrir mão de sua comissão para que o cliente tenha um bom desconto. Seus olhos verdes brilhavam com orgulho, exatamente como minhas irmãs ficavam sempre que conseguiam algo que queriam. Pensar nelas trouxe uma dor desnecessária e, por isso, mudei minha linha de pensamento. Precisava me concentrar em minha morte. – Oi! – Ela disse. – Bem-vindo ao Jardim Éden!
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