Capítulo 2: Acordo

2589 Words
São Paulo, Terra Se, algum dia, já teve o sangue da pessoa que você ama nas mãos enquanto ela está morrendo, talvez você saiba o que eu senti naquela hora. Todavia, se não aconteceu com você, considere-se sortudo e torça pra que nunca aconteça, pois não há sensação pior do que essa. Ver aquele líquido quente, vermelho e gosmento fluindo para fora de seu corpo e junto a ele, a cor e a vida de quem se ama é uma dor pior que seria se eu tivesse recebido o tiro. O fato, também, de que não podia fazer coisa alguma para salvá-la era como...  Não há com descrever o turbilhão de sentimentos que me afligiam. A impotência. O medo. A tristeza. Apenas três de muitos outros. Minhas lágrimas caiam sem parar sobre ela, que nem parecia se dar conta. Seus olhos castanhos estavam vidrados, me fitando de surpresa. Ela não chorava. Se não fosse por todo o sangue saindo do buraco em seu peito, eu poderia até dizer que ela não estava nem sentindo dor. – Elena – chamei –, não morra! Não hoje. Por favor. Fique aqui. Por favor. – As lágrimas se misturavam ao sangue em sua roupa. A minha também manchava-se, mas não me importei com isso nem um pouco. Ela me olhou com ternura, com amor, mesmo que seus olhos perdiam o brilho a cada segundo. Parecia até que era eu quem estava morrendo, e não ela. O que em parte era verdade; com ela metade de mim morria. Ela me consolava, enquanto tudo que eu podia fazer era implorar para qualquer força superior para que a salvasse. Se existisse uma, que não permitisse que Elena fosse levada de mim. Eu serviria a qualquer um que a deixasse manter sua vida. – Shh... Eu não vou a lugar nenhum... Vou ficar... – A voz dela foi ficando cada vez mais fraca, como se ela tivesse sido roubada. – pra sempre... Com... Você. – Aquelas palavras; ela nunca as tinha dito antes. Eu a abracei com força. Afundei meu rosto em seu pescoço; o perfume que ela havia passado mais cedo estava levemente presente, quase como em uma lembrança. Eu gritei, de ira e dor; minha voz saiu rouca e pesada, como meu ser estava naquele momento. – Vai ficar tudo bem. – Eu sussurrei em seu ouvido. – Vai ficar tudo bem. Lembra-se de quando sofri o acidente? – Tentei consolá-la, em vão. Quando Elena e eu estávamos namorando a alguns meses, meu pai e eu estávamos dirigindo em direção ao centro. Iriamos assistir um filme australiano em um cinema de rua. Ninguém mais de minha família apreciava filmes independentes, por isso, fazíamos isso sempre que algo interessante surgisse. Eu nunca fui fã, como ele era, e a maioria dos longas-metragens eram tão ruins que nem ao menos passaram na Sessão da Tarde, contudo eu apreciava o tempo que passava com ele. Neste dia em especial, as pílulas Quitosan do caminhoneiro Luís Bezerra havia acabado, assim como seu dinheiro. Precisava fazer aquela entrega antes de poder descansar, dormir e comprar mais do remédio que o manteria acordado para fazer a próxima entrega. No entanto, seus olhos ficaram pesados demais; a estrada ficou reta demais; a música do rádio, lenta e baixa demais. Quando ele despertou de seu sono, estava deitado sobre o volante, com a lataria da cabine amassada, e um carro que sua carreta jogara contra o concreto de contensão da pista. Fiquei quase um mês no hospital, me recuperando – perdi minhas férias inteiras. Eu estava quase tão m*l quanto Elena, naquele momento do presente. Porém, eu tive um atendimento de primeiro-socorros rápido; não perdi tanto sangue quanto ela estava perdendo naquele momento. Apenas ossos quebrados, inclusive algumas costelas. Eu fiquei bem. Completamente recuperado, assim como meu pai; nenhum de nós teve qualquer sequela permanente. Luís curtia horas e horas de sono na cadeia e não mais causava acidentes em rodovias. Seu corpo ficando mais pesado, isso me trouxe de volta do devaneio de minha mente. Eu sabia, sentia, que era tarde demais. Não conseguia parar de murmurar “não, não, não...” repetidamente. Dor, a tristeza e a agonia em minha voz. Não me movi nem sei quanto tempo passou, sei apenas que por diversas vezes meus amigos tentaram me separar dela, em vão. Eu nunca mais a soltaria. Nunca. Nós estávamos destinados a ficar juntos. A brisa fria como gelo atingiu-me inesperadamente. Estávamos ainda no verão, em um país tropical. Nem mesmo no inverno algo assim acontecia, pelo menos, não em São Paulo. Senti os cabelos da nuca se eriçarem. Não me importei de olhar para descobrir. Nada mais importava naquela hora. Todos meus... Não, todos os nossos sonhos morriam junto a Elena. E um friozinho fora de época não seria capaz de desviar minha atenção e meu amor dela. – O que você faria para salvá-la, Leonard Ross? – Disse uma voz vinda da entrada da estação. Apesar de terem sido ditas, as palavras que vinham junto ao frio pareciam terem sido gravadas no granito de uma lápide. Hesitei. Por longos e longos minutos. Não queria aceitar o que diria a seguir, e talvez nunca aceitaria, mas obriguei-me a dizer mesmo assim: – Não tem como ela voltar. Está morta. – Minha voz vacilou, ainda rouca dos gritos de minutos antes. – Existe um jeito, mas o preço não é baixo. – Ele retrucou. – Se estiver disposto a dever para a Morte. Do que aquele cara estava falando? Dever a Morte? Devia ser um louco qualquer, apesar de que apenas meus amigos e eu estávamos na estação àquela hora; e a voz-de-lápide era desconhecida. Resolvi olhar. Apenas então percebi a estranheza do que acontecia. Tudo a minha volta estava paralisado. Meus amigos encaravam um policial uniformizado que ia à direção deles; outros dois, acompanhados de um bombeiro, vinham na minha. Tudo paralisado, como se o tempo tivesse parado o girar da Terra. Entretanto, o homem que havia atirado desaparecera, como se nunca tivesse existido. As únicas coisas ainda se movendo eram o voz-de-lápide e eu. Apenas o jeito com que estava de pé indicava que ele se achava superior, como se fosse o dono da Terra. Ele usava um terno preto caro de corte italiano; riscas brancas na vertical davam um estilo especial. Sua camisa preta se destacava, quase brilhando, provavelmente de uma lavagem recente. O mesmo valia para a gravata preta. Apesar de tudo isso, ele não usava sapatos. Sua pele cinzenta parecia estar doente ou, até mesmo, morto; no entanto, enrugada como a pele de um homem muito velho. Se eu já não estivesse sentado no chão, eu cairia para trás ao ver seus olhos; ou melhor, a ausência deles. Ele não possuía globos oculares, seus olhos eram dois buracos vazios que caiam em um abismo n***o sem fim que estava faminto por almas. – Quem é você? – Perguntei, gentilmente colocando Elena de lado e ficando de pé; ela não pareceu notar o movimento, talvez pelo tempo parado ou por estar morte. De qualquer forma, aquele estranho supostamente podia salvá-la e, se sim, valeria a pena soltar ela por aqueles minutos. – Eu sou a Morte. Precisei conter uma risada. Apenas não sabia se estava rindo dele, pois ele realmente acreditava ser a morte – ou seja, estava louco –, ou se estava rindo de mim mesmo, que trocava meus últimos minutos com o amor de minha vida para ouvi-lo.   – O que você quer? – Perguntei, pensando em sentar outra vez. – Quero ajudar você, Leonard. – Ao ouvir meu nome, eu pude ver claramente ele esculpido em uma lápide, presa na porta de um túmulo no mesmo cemitério em que meu avô estava enterrado há tantos anos. – Por que a Morte quer ajudar a mim, uma pessoa comum? – Às vezes sou misericordioso com vocês, mortais. Poupo uma vida aqui e ali por capricho. – Ele informou com desdém, como se aquela fosse a informação mais óbvia do universo. Algo estranho em sua voz indicou que ele não era tão caridoso assim; e ajuda que ele oferecia não poderia ser de graça. Ele havia mencionado dever algo a morte antes, ou não? Minha mente estava confusa e traumatizada pelo que estava acontecendo. NADA estava fazendo sentido, muito menos um louco qualquer que diz ser a Morte em pessoa. Perguntei: – Mas...? – Não dessa vez. – Eu sabia. – Vou trazê-la de volta e garantirei que ela tenha a vida que ela quiser. Mas existe um balanço cósmico, algo que vocês, humanos, jamais seriam capazes de compreender. Para poupar uma vida, é preciso que outra tome seu lugar. Normalmente, eu escolho alguém em algum lugar dos mundos que deseja morrer ou que está velho demais para continuar vivendo. – Assim que ele usou a palavra “mundo” no plural, eu soube que ele realmente tinha perdido a cabeça; como será que havia escapado do manicômio? – Esta noite, alguém precisa vir comigo. – Você quer dizer: eu. – Afirmei; ele parecia ter saído de um dos filmes independentes que assistia com meu pai. – E o que uma pessoa tão comum, até abaixo da média, como eu pode oferecer a Morte? – Resolvi entrar no jogo louco dele. Ou no meu próprio jogo? Ocorreu-me que tudo que acontecia naquele momento não poderia ser real: ressuscitar mortos? Tempo congelado? Balanço universal? Tudo isso soava loucura, mas não por causa da “Morte” diante de mim, mas por que parecia sair da minha própria cabeça. Tudo aquilo era uma ilusão. Uma que eu havia criado para me ajudar com a morte de Elena que acabara de acontecer. Só podia ser. Por outro lado, um louco está ciente de sua própria loucura? – Seus serviços. – Ele respondeu como se eu fosse um espião saído de 007 pronto para minha próxima missão em nome da rainha. – Depois que seu Julgamento terminar do outro lado, como você mesmo gosta de dizer. – Meus serviços em troca da vida de Elena? – Perguntei, apenas para confirmar; eu realmente fazia de tudo para não rir; minha imaginação tinha ido longe demais, e olha que não me considerava alguém com muita imaginação. – Exato. – Então, sim. – Sorri, mas não de felicidade, e sim por quão ridículo era aquela situação. – Aceito o acordo. Se pode trazê-la, traga-a de volta. – Outra coisa, quando você chegar ao seu Julgamento, mandarei ajuda. Ela te dará todas as instruções necessárias e seu primeiro objetivo. – Eu nunca imaginaria algo assim, mas a Morte tinha um sorriso sarcástico quase imperceptível nos lábios. – Boa sorte. – Como vou saber quem é essa mulher? – Retruquei, me perguntando se eu imaginaria uma mulher com o rosto de alguma conhecida, ou da própria Elena; ou talvez, a ilusão não fosse tão longa assim. Sabia que a qualquer momento poderia acordar com alguém me chamando ou algo do gênero. – Você saberá. Antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, a Morte estalou os dedos da mão direita. Elena respirou fundo e abriu os olhos muito rápido, como se saísse de um pesadelo profundo, pesado e r**m. Ela olhou pra mim confusa e aturdida, ainda mais do que eu mesmo estava naquele momento. Ela sorriu por um instante, mas logo o medo voltou aos seus olhos quando viu os abismos oculares da Morte. – Leo... O que... Eu estava em uma sala escura... Não... Não conseguia ver nada... Eu...  O que está acontecendo? – Não se preocupe – a Morte disse para mim –, quando o tempo voltar ao normal todos pensarão que você levou o tiro. Ela não se lembrará de agora. Aproveite, Leonard Ross, são seus últimos momentos com ela. – Elena, isso não importa. – Eu disse meio desesperado – Olhe para mim. Me escuta. Ela o fez com seus olhos castanhos, cujo brilho da vida havia retornado de uma única vez, como se não tivesse partido. Ainda havia o conflito neles, mas, como muitas vezes em seus piores momentos, Elena buscou conforto em mim. E o encontrou, mesmo que eu mesmo não estivesse com total certeza de que tudo aquilo não era apenas uma ilusão que eu criara em meio a minha própria dor. Notei que seu ferimento estava completamente curado, como se nada tivesse acontecido. – Eu te amo muito. Não sei o que vai acontecer agora, de fato, nem sei se nada disso é real. Mas, se por acaso for, eu te prometo uma coisa: se houver uma forma de voltar pra você, eu a encontrarei. – Do que você... Eu a interrompi com um beijo. O beijo mais apaixonado e doce de todo nosso relacionamento. Porém o último. Ela entendeu menos ainda, mas ao mesmo tempo, não se importou. Ela amava cada vez que a beijava, principalmente com paixão. – Eu também te amo. – Ela me disse ainda meio desconexa. – Muito bem. Despedidas feitas. – A Morte tinha um sorriso macabro em seus finos lábios cadavéricos. –Se prepare, pois o que está prestes a acontecer vai deixar uma marca em seu corpo. Felizmente, balas não cicatrizam almas. A Morte estalou os dedos mais uma vez. A dor que surgiu no meu peito era algo que nunca tinha sentido. Então essa era a sensação de levar um tiro, pensei. Como em um sonho, não sabia como havia parado ali, mas eu estava no colo de Elena, como ela estava no meu antes de meu sinistro encontro. Ela estava desesperada, como eu estava, sua mão estava pressionada sobre meu ferimento tentando parar o sangramento, algo que nem passara pela minha cabeça quando a situação era inversa. Mais uma prova do quanto ela era mais esperta que eu. Tentei olhar em volta, procurando por meus amigos ou qualquer sinal e ajuda. Vi que os bombeiros recuperaram o passo e caminhavam em minha direção. Vi a polícia conversando com meus amigos; dois deles choravam como crianças. Vi Junior sentado no chão enquanto um terceiro bombeiro fazia os primeiros socorros em sua perna. Estranhei. Talvez a Morte tenha mudado um pouquinho o que aconteceu ali, ou talvez, depois que meu mundo parou quando Elena foi atingida, eu não ouvi o segundo tiro que o machucou. Felizmente, não parecia tão grave quanto meu próprio ferimento. Tornei a fitar Elena e seu rosto belíssimo, mesmo que naquele momento ele estava distorcido pelas lágrimas que chorava. Levantei a mão devagar e toquei em seu rosto, manchando-o de sangue – dessa vez, o meu próprio. Ela agarrou minha mão, dizendo que tudo ia ficar bem; os bombeiros já estavam cuidado de mim, de fato, haviam me colocado em uma maca. Quando isso aconteceu? Eu estava alheio ao que acontecia ao meu corpo, enquanto desejava que os outros estivessem bem. Nos momento finais, parecia que a dor havia desaparecido, deixando apenas a estranha quentura do sangue. Os olhos de Elena estavam tão marejados, que pareciam brilhar em um tom de verde muito escuro. Com ela ainda segurando minha mão, consegui dizer: – Eu prometo... E escuridão tomou conta de mim quando fechei os olhos. Não senti qualquer remorso ou arrependimento em relação a minha decisão. Eu estava morrendo por ela. Para mim, não havia morte mais digna. Morrer pela pessoa que você ama pode parecer h******l se você parar para pensar, mas, para mim, não havia honra maior. A última coisa que senti foi um beijo de leve nos meus lábios gelados. Na escuridão minha alma andou até meu Julgamento.
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