Capítulo 01: Morte

2584 Words
O que existe após a morte? Essa pergunta sempre fez parte da vida de todas as pessoas. Sim, vejo a ironia. Cada vez que um parente, ou um amigo chegado, ou, até mesmo, aquele bichinho de estimação favorito morre, essa pergunta retorna para as nossas mentes. Pra onde vamos quando nossos corpos já não mais bombeiam sangue? Se tivermos almas, elas estão destinas a “um lugar melhor”, como ousamos consolar a nós mesmos quando a tristeza da morte nos afoga nossos corações? Sinceramente, em apenas uma ocasião me fiz essa pergunta, anos atrás, quando era apenas uma criança. Meu avô, Benito, havia passado muitas semanas em um hospital, tratando de um câncer que acabou por levá-lo. Foi um dia triste, o único em que me lembro de ter visto meu pai chorando. Agora, depois de tanto tempo, eu não sei explicar o que me fez acreditar que almas não existiam, ou que a vida tem um propósito, apenas tinha convicção que após a morte existia apenas o nada. Ingênuo eu, cuja morte não poderia ser mais agitada que a vida. No entanto, eu possuo a resposta para essa pergunta existencial. E se você não a quer ou deseja manter suas próprias crenças – ou descrenças – para de ler agora mesmo. As palavras póstumas a seguir não são para você. Quando morremos, nossas almas podem ir para dois lugares distintos: Inferno e Paraíso. Quanto a esse primeiro, não esquente a cabeça. Já o segundo, esse sim é o grande problema. O Paraíso é um mundo cujas estruturas refletem o nosso. Entretanto, nesse mundo não existe maldade, guerras, fome ou qualquer outra coisa que provem do m*l. Esse lugar é guardado pelos Anjos e Arcanjos do Senhor, para que o m*l nunca invada. De modo a manter essa utopia, nenhuma alma a entrar por seus portões dourados possuindo as memórias de sua vida terrena. Assim, nenhuma delas se lembraria de seus pecados ou, de fato, da própria definição de tal palavra. Nada do que é m*l entraria. Não havia exceção à regra, até que uma nova alma entrou no Paraíso. Essa alma era a minha.   São Paulo, Terra O dia de minha dita morte aconteceu em cinco de março de 2011. Meus dezoito anos tinham começado a menos de um mês e, como todo jovem, tinha uma vida inteira pela frente. Estava no primeiro semestre da faculdade de Ciências da Computação, uma área de trabalho promissora. Neste dia, minha namorada de longa data estava comigo. Nós namorávamos há mais de um ano, e um relacionamento tão longo quanto esse não sobrevive sem amor. Elena era seu nome. Eu não conseguia imaginar minha vida sem ela. Conversávamos sobre tudo. Não havia segredos entre nós. Éramos melhores amigos. Meses antes, pouco antes de nos formarmos, ela até mesmo levou culpa por jogar tinta em um de nossos colegas – quando claramente era eu quem havia tentado pregar uma peça em Thomas, o que claramente saiu errado devido a minha nula experiência com pegadinhas práticas. Quando morri nós voltávamos da festa de aniversário de Thomas. Diferente de mim, ele era extremamente rico – seu pai era dono de pelo menos cinco lojas da franquia Starbucks, todas na região da Paulista. Elena, um grupo de amigos e eu, subíamos a Rua Pamplona em direção a Paulista, onde supostamente pegaríamos um táxi para casa dela – felizmente, Elena não morava longe dali. Àquela hora da noite, apenas alguns baladeiros, bêbados e moradores de rua estavam acordados; um ou outro carro passava pela rua, entrando na Paulista e seguindo com suas vidas, seja lá quais eram. Nenhum desses foi um carro branco de placa vermelha. – Cara, nunca que vamos achar um taxi há essa hora. Acho que devemos ficar na porta do metrô até abrir. –Felipe sugeriu, um rapaz alto de traços fortes e de rosto quadrado. Mas sua voz não era tão grossa, era como se todo seu corpo tivesse se desenvolvido, mas suas cordas vocais não. Era uma combinação um tanto estranha, e eu sempre precisava me controlar para não rir quando ele falava. – Acho uma boa ideia. Qual a estação mais próxima? – Eu concordei, olhando para ele, mas sem descruzar o braço com Elena, que caminhava cansada ao meu lado, com o par de saltos na mão livre. – Trianon-Masp. – Ele respondeu, antes que Felipe tivesse a chance. – Leo – Harrison, um dos poucos amigos que trouxera do Colégio Andersen a minha vida pós-formatura, me chamou –, você tem alguma música ai do Bullet For My Valentine? – Tenho algumas. – Joguei meu celular para ele, que quase o derrubou; imediatamente percebi meu erro e agradeci a Força que ele não foi direto pro chão; sim, eu era fã de Star Wars. – Dá uma olhada aí. Uma caminhada de dez minutos depois, chegamos à estação sem problemas. Elena e eu nos sentamos no chão um pouco mais afastados dos outros para termos um pouco mais de privacidade. Elena é uma garota fora de série. Linda, esforçada e inteligente. Eu sentei de pernas cruzadas e coloquei minha mochila sobre meu colo. Ela pegou minha jaqueta, fez uma bola, colocou sobre a mochila e deitou de modo que ela pudesse olhar para mim. Passei a mexer em seus cabelos muito castanhos, que para o aniversário de 18 anos em Janeiro, ela fez luzes, então ela estava meio loira – e em minha opinião prefiro a cor natural dela. Seus olhos tão castanhos quanto me olhavam com ternura, o que não acontecia com frequência, ou pelo menos, eu não notava. Ela era especialista em esconder seus próprios sentimentos. No entanto, naquele momento, ela sorria. – Eu te amo. – Disse de repente, como fazia sempre que pegava aquele olhar. – Assim do nada? – Ela retrucou, prendendo o sorriso que tinha alguns minutos antes. – Ué? Não posso dizer que te amo? – Pode. – Ela permitiu que seus lábios se libertassem. – Eu também te amo. Inclinei-me, e a beijei carinhosamente por longos segundos. Eu amava muito aquela garota. Se existe esse negócio de alma gêmea ou alguém predestinado a cruzar seu caminho e permanecer nele ou amor verdadeiro, era o que eu sentia pela minha Elena. Queria passar o resto da vida com ela. Envelhecer, ter filhos, netos e bisnetos, todas essas coisas batidas de filmes de comédia romântica. Entretanto, não sabia se o que ela sentia por mim era o mesmo. Talvez para ela eu fosse apenas mais um na lista de corações que ela conquistou e partiu – apesar de não ter feito isso ainda. Talvez, ela não quisesse nada além do que tínhamos agora. Talvez. Essa com certeza era a palavra favorita de Elena, e, ao mesmo tempo, a que dominava meus pesadelos. A incerteza que ela me dava, apesar de às vezes incomodar, acabava por me atrair ainda mais. Era um verdadeiro paradoxo. No entanto, apenas após minha morte eu saberia o quanto o significava para ela. O quanto ela estava disposta a sacrificar por mim. Estávamos ali há alguns minutos conversando sobre Thomas e sua festa extravagante, quando uma sombra passava pela terceira vez na entrada da estação, observando a movimentação noturna incomum. Nenhum de nós notou-o. – Sabe, amor, acho que você deve cortar esse cabelo. Ela estava com a mão esticada e mexia nas madeixas bagunçadas que eram meus fios capilares. Sim, eu tenho certa tendência a falar com palavras difíceis quando se trata do meu cabelo. Não se preocupe, não faço com frequência. Porém, meu cabelo nem estava tão cumprido assim. Não estava curto, como minha mãe gosta – e me enche as paciências para cortar –, mas ainda não dava para prender em um r**o de cavalo. Ainda. – A não... Eu gosto assim... – Retruquei, mexendo eu mesmo neles. – Mano. Ta aí seu cel. Peguei algumas músicas. – Junior, um dos que estavam no grupo conosco, interrompeu, salvando meu cabelo no último minuto. – Não foi pra você que emprestei meu celular, mas tudo bem. – Acrescentei. – Quais? – Tears Don’t Fall, Fever, Curses, Hand of Blood e mais algumas. – Ele jogou o celular em Elena, que não protestou ao ser atingida na barriga. – Celular legal, garoto. – Disse uma voz vinda de alguns metros a frente; ele havia passado pelo resto do nosso grupo, que estranharam, mas preferiram não mexer com o dono dela. – Passa pra cá. Ele era um rapaz de mais ou menos 20 anos, apesar de que o uso constante de drogas, a sujeira e a magreza tornavam o julgamento muito mais difícil. Suas roupas rasgadas e sujas um dia foram azuis e brancas; seu cabelo estava duro de tanto sebo misturado com a sujeira das ruas. Seus olhos estavam injetados, vermelhos como a lâmina de um cavaleiro após uma batalha. Ele não estava em condições nenhuma de manipulá-la, mas uma arma calibre 38 na mão trêmula. Elena e eu levantamos devagar, com nossos corações batendo tão rápido quanto um amante foge de um marido. – Calma, amigo. Pode levar tudo. – Eu disse, com as mãos levantadas na direção dele, tentando gesticular que ele se acalmasse. Também, mantive contato visual; meu pai me ensinou que uma pessoa armada está menos propicia a atirar contra uma pessoa que a olha nos olhos. – Incluindo sua amiga gostosinha aí. – Ele apontou com a arma para ela. – Não. – Foi única palavra que me permiti dizer. Revolver ou não, ninguém mexia com minha garota. Junior notou que o modo com que o homem encarava Elena estava me deixando nervoso. Nos conhecíamos a pouco tempo, apenas dois ou três meses, mas era o suficiente pra saber que eu abominava qualquer tipo de violência contra uma mulher. Ainda mais se a mulher em questão fosse Elena. Tudo bem que um cara franzino como eu não inspira confiança ou medo, mas ainda assim, ninguém podia mexer com ela que eu encarava qualquer um, até mesmo Aaron, o capitão do clube de luta do Colégio. Eu me posicionei em frente a ela, porém a parte esquerda dela ainda estava à mostra. – Amigo, quem está com a arma aqui sou eu. Vem garota, ou estouro os miolos do seu namorado. – Ele praticamente babava quando acrescentou: – Só vai levar alguns minutinhos. Sou um cara rápido. Ela tentou dar um passo a frente. Eu não deixei. Nunca permitiria que ele se encostasse em um fio do cabelo macio de Elena. O homem apontou a arma para minha cabeça. Eu não vacilei, nem mesmo desviei de seus nojentos olhos vermelhos de drogado. A mão dele tremia, como se nunca tivesse feito aquilo antes. Por aquele segundo, me perguntei pelo que ele havia passado para chegar até ali. Quais estradas ele havia percorrido para cair tão fundo assim. Naquele instante, eu senti pena dele. Estava controlando minha raiva. – Você não tem que fazer isso. – Pensei em dar um passo a frente, mas mudei de ideia. – Aqui está meu celular, também tenho algum dinheiro na carteira. – Apontei para a mochila depois de ele pegar o celular com uma brutalidade desnecessária. – Está aqui. Você não precisa fazer isso. – Cala a boca! – Ele gritou. Ele parecia conflitante, olhando para mim, para mochila e para Elena. Tentei ignorar o olhar de desejo para essa última, pensando que ele não estava sob controle de suas próprias ações. As drogas deviam estar tão fundo em seu sistema que ele devia estar fazendo tudo por puro instinto. Um barulho chamou sua atenção e ele virou de repente para o resto do nosso grupo. Temi que atirasse, mas não. Lágrimas começaram a escorrer de seu rosto além de seu controle, como todo o resto que fazia. Em seguida, voltou a apontar para nós, e depois para ele. Alternou algumas vezes, confuso, sem saber o que fazer. Seja lá o que corria em suas veias agora, era muito mais forte do que a maconha que o pessoal de humanas costuma fumar durante suas corriqueiras fugas nos dias de aula da faculdade. Olhei para eles por um segundo, e vi que Harrison discava no celular. Se fosse esperto, estaria falando com a polícia. – Ei, olhe para mim. Esqueça eles. – Eu disse, tentando impedir que meu nervosismo, raiva e coração acelerado alterassem minha voz. – Eles não têm nada. – Tinha que manter sua atenção em mim, para que não machucasse nenhum dos meus amigos. – Eu tenho quase dois mil reais na minha mochila, e todo esse dinheiro é seu. – Menti, enquanto abaixava lentamente para pegá-la; em seguida, joguei-a aos seus pés. – Apenas pegue e não faça algo que você com certeza vai se arrepender. Olhou para baixo. Com essa distração e todo esse conflito, o homem não percebeu que Junior havia se aproximado dele, sempre se mantendo no ponto cego do drogado. Antes de continuar com o que aconteceu a seguir, saiba que Junior era um cara grande. Muito grande mesmo. Eu tinha uma teoria de que ele havia nascido dentro de uma academia – literalmente. Ele também lutava jiu-jítsu há pelo menos três anos, e antes disso, ele fizera caratê – eu vi as faixas pretas e medalhas de campeonatos em que havia lutado penduradas em seu quarto. Ele agarrou o braço do homem, que, com o susto, atirou. O som ensurdecedor enevoou meus pensamentos pelos segundos que se seguiram. Eu nunca tinha ouvido tiros antes, apenas em filmes, o que obviamente não condiz com a realidade. Pude jurar que vi o projétil vindo em minha direção, como se fosse um foguete a decolar – exceto que ele ia à horizontal. Provavelmente estava delirante devido a todos aqueles sentimentos e adrenalina conflitando dentro de mim. Pensei em meus pais, me perguntando quando fora a última vez que disse que os amava. Se ao menos eu dissesse com a metade da frequência que dizia a Elena, estaria satisfeito. Também pensei em minhas irmãs, que, apesar de todas as brigas, ainda eram minhas irmãs; as amava. Ao mesmo tempo, pensei em como era clichê ver sua própria vida passando diante dos olhos quando a morte se aproximava; se tivesse tido tempo, teria dado risada de minha própria idiotice. Todavia, fora o que aconteceu. Minha vida passou como um filme independente entediante. Mais e mais tempo se passava para que a linha que separava minha vida da morte fosse cortada. Parecia até mesmo que o tempo estava aos poucos desacelerando, para me dar mais minutos no Reino dos Vivos, mesmo que não pudesse fazer coisa alguma com esse tempo extra. Morte. Eu não costumava pensar no que vinha depois, não depois de ver meu avô sofrendo tanto antes receber o abraço frio dela. Quanto mais a minha própria morte se aproximava, mais desejei que houvesse algo após ela. Peguei-me pensando se eu encontraria com ela, caso houvesse algo. Fazia muito tempo que eu não pensava nela, mesmo que fizesse menos de três anos que havia partido. Senti-me culpado. Estava tão feliz com minha vida, com Elena, que ela m*l passara pela minha cabeça. É, nos meus últimos segundos entre os vivos, eu pensei nela. Então, esperei culpadamente que o projétil me atingisse e me perfurasse; esperei pela dor. De fato, seria dolorido, mas não da maneira que eu imaginava. Naquela noite a bala passou inofensivamente por mim. Todavia, ela acertou a pior pessoa quem poderia acertar. Elena.
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