A última vontade
O ar está carregado de incenso e flores murchas. Apenas ouço as palavras do padre. Tudo ao meu redor parece distante, como se a dor me tivesse isolado numa bolha de silêncio. Fernando, meu marido, morreu, e agora só restam os murmúrios e os olhares cheios de julgamento dos presentes e da sua família. A jovem viúva, a caçadora de fortunas. "Ela só o queria pelo dinheiro dele", pensam.
Mas eles não sabem a verdade. Não sabem como nos conhecemos, nem como Fernando me resgatou do vazio em que eu estava imersa.
Há dois anos, eu, Sofia, era uma jovem de 24 anos que m*al conseguia sobreviver na cidade. Trabalhava como garçonete enquanto tentava abrir caminho como artista. Num evento beneficente ao qual fui para ganhar um dinheiro extra, eu o conheci. Fernando, com os seus 60 anos, irradiava carisma e segurança. Ele me viu quando ninguém mais via. "Você parece alguém que precisa de uma boa conversa e de uma taça de vinho", disse-me naquela primeira noite, com um sorriso caloroso.
Eu me lembro disso com clareza. Aquela foi a primeira vez que senti que alguém realmente me via. Fernando não era apenas rico, era um homem cheio de sabedoria, ternura e compreensão. O que começou como uma amizade se transformou num amor que eu jamais acreditei ser possível. Para ele, a diferença de idade nunca foi um obstáculo. Para mim, ele foi meu refúgio, o meu primeiro amor.
Mas agora, Fernando foi embora para sempre, e tudo o que resta é o vazio. Sinto que o chão sob os meus pés está tremendo, mas não posso me dar ao luxo de mostrar fraqueza. Estou cercada de tubarões, e eles estão esperando para me ver cair.
— Sinto muito, querida. Uma voz melosa me tira dos meus pensamentos. Clara, a irmã de Fernando, se aproxima com uma expressão de falsa compaixão. — Que tragédia, tão jovem e já viúva... Imagino que será difícil para você se adaptar à nova situação.
Sento-me sem dizer uma palavra. Já estou acostumada aos comentários envenenados da Clara, que nunca aprovou o meu relacionamento com o Fernando. Para ela, eu sempre serei a intrusa, a mulher que se casou com o irmão dela por dinheiro. O que sinto agora é uma mistura de exaustão e tristeza. Não tenho forças para enfrentar a família de Fernando e as suas insinuações venenosas.
De repente, a porta principal se abre, interrompendo o murmúrio geral. Todos se viram para a figura que acabou de entrar. Alex. A sua mera presença parece congelar o ambiente. Alto, de cabelo escuro e terno impecável, Alex é a própria imagem do desprezo. O seu rosto, cinzelado por uma expressão de frieza, olha-me como se eu fosse a encarnação de tudo o que ele odeia.
Sinto um nó na garganta. Ele sempre foi assim. Desde o primeiro momento em que o conheci, ele me olhou com desconfiança, como se estivesse convencido de que o meu único propósito era roubar seu pai. Quando Fernando contou a ele que se casaria comigo, Alex tomou isso como uma traição. Desde então, ele não perdeu a oportunidade de me humilhar.
Alex atravessa a sala com passos firmes, ignorando os murmúrios que o seguem. Quando chega até onde estou, o seu olhar me atravessa com desprezo.
— Vejo que não perdeu tempo. Ele murmura, com a voz carregada de veneno. — Você finge estar arrasada, mas tenho certeza de que m*al pode esperar para pôr as suas mãos sujas na fortuna do meu pai.
Olho nos olhos dele, tentando manter a calma. A dor pela morte de Fernando ainda é muito recente, mas não permitirei que Alex me destrua.
— Eu amava seu pai. Respondo com firmeza, embora o meu coração bata forte. — E nada do que você disser mudará isso.
Alex solta uma gargalhada amarga, o seu olhar me percorre de cima a baixo com desprezo.
— Amor? Ele zomba. — Você não tem ideia do que essa palavra significa. Todos sabemos por que você se casou com ele.
Aperto os punhos, lutando para não perder a compostura. Alex não entende nada, e provavelmente nunca entenderá. Ele está cego pelo seu ressentimento e pelo seu ódio.
Antes que eu pudesse responder, um homem mais velho e de aparência severa, o advogado da família, se aproxima de nós. O seu rosto é sério, e seu tom, cortês, mas implacável.
— É hora de prosseguir com a leitura do testamento.
O ambiente na sala fica ainda mais tenso. Alex levanta uma sobrancelha, claramente impaciente. Eu, sinto uma pontada de ansiedade. Não é o dinheiro que me preocupa, mas o que virá depois da leitura. Algo no ar me diz que as coisas estão prestes a se complicar.
Seguimos o advogado até o escritório de Fernando, um espaço acolhedor e cheio de lembranças. As estantes estão cheias de livros antigos, e no ar ainda se sente o aroma de tabaco que ele tanto apreciava. O advogado senta-se atrás da escrivaninha, ajusta os óculos e começa a ler o testamento com uma voz lenta e pausada.
— “À minha querida esposa, Sofia, deixo metade das minhas ações nas empresas, bem como a propriedade que partilhamos no campo…”
Só estou ouvindo. Não me importo com ações nem com propriedades. Tudo o que desejo é que este dia termine. Mas então, as próximas palavras do advogado fazem o meu coração parar.
— "... e ao meu filho, Alex, deixo a outra metade das minhas ações, assim como a mansão da família. No entanto... O advogado faz uma pausa, como se o que estivesse prestes a dizer fosse delicado. — Ambos os herdeiros, Sofia e Alex, deverão casar-se entre si e manter essa união por um ano. Se não fizerem isso, perderão todos os direitos sobre os meus bens, que serão destinados a organizações de caridade.
O silêncio que se segue é ensurdecedor. Sinto como o mundo ao meu redor se esvai. Casar com o Alex? O homem que me odeia, que me despreza com cada fibra do seu ser. Não pode ser real.
Viro-me lentamente para Alex, esperando ver incredulidade no seu rosto. Mas a única coisa que encontro é fúria.
— Isso é uma piada? Ele diz com a voz carregada de raiva contida.
O advogado n**a com a cabeça, ajustando os óculos.
— É a última vontade do seu pai. Ele responde, imperturbável.
Alex levanta-se de repente, os seus olhos lançam faíscas de ódio para onde estou.
— Isso não vai acontecer. Prefiro perder tudo a me casar com você.
Sinto que o chão se abre sob os meus pés. Fernando, no seu último testamento, decidiu nos amarrar da maneira mais cr*uel possível.