Caveira narrando
A noite foi um inferno.
Lisandra não parava de gritar, berrando por socorro como se tivesse alguém nesse mundo que pudesse ouvir e vim salvar ela.
No começo, fiquei só ouvindo, rindo baixo do desespero dela. Era até divertido sentir o quanto ela tava quebrando por dentro, sem entender que o grito dela não passava de vento batendo em parede. Mas com o tempo, aquilo me cansou, me deixou puto, com a cabeça pesada. Tentei me controlar, contar até dez, puxar o cigarro pra aliviar, bebi meu whisky, mas não adiantava. Aquele som tava me arrancando o descanso.
E não, não era medo de alguém ouvir. Até porque absolutamente ninguém, seria capaz de tirar ela daqui. O que é meu, é meu.
Levantei da cama. Andei pelo corredor devagar, sem pressa. Empurrei a porta do quarto dela, entrei e fechei atrás de mim.
— Continua gritando, princesa… — minha voz saiu baixa, carregada de deboche. — Ou tu pode se calar e tentar dormir.
Ela tava com o rosto molhado de lágrimas, o peito subindo e descendo, a garganta já arranhada de tanto berrar.
— Você não pode fazer isso comigo! — ela chorava. — Alguém vai me ouvir! Alguém vai vir!
Soltei uma risada seca, c***l.
— Pode gritar até perder a voz. Se tu quiser, arruma uma dor de garganta. — Dei dois passos, firme, cada um ecoando no chão duro. — Mesmo que alguém escute… ninguém vai vir.
Ela estremeceu, a esperança se apagando um pouco mais. Odiava isso nela: aquele fogo nos olhos querendo me desafiar, mas que tremia na base na primeira verdade que eu jogava.
Fiquei só mais um segundo encarando, deixando ela sentir a minha presença, o peso, e então saí. Fechei a porta, voltei pro meu quarto e me deitei. Finalmente o silêncio veio. E com ele, meu descanso. Dormi pesado.
De manhã, acordei no meu ritmo. Não tenho pressa. Primeiro, fiz minhas necessidades, lavei o rosto, passei a mão no cabelo jogado e peguei a toalha suada da cadeira, jogando no cesto. O dia já tava me esperando, mas antes de ir pra boca, um detalhe cutucou minha mente: a infeliz não comeu nada ontem.
Chamei Dona Joana, a velha que cuida da minha casa.
— Faz um misto e um suco. — falei, simples.
Ela não questiona, nunca questiona. Só abaixou a cabeça e foi. Enquanto isso, fiquei tomando meu café preto, o gosto forte batendo na boca, o cigarro queimando entre meus dedos. Gosto desse silêncio da manhã, gosto de começar o dia lembrando que quem manda sou eu.
Quando ela trouxe o prato, botei em cima da bandeja e fui levar. Quero ver até onde o orgulho dessa menina ia. Entrei no quarto, ela tava me olhando com ódio. Ódio e medo misturado.
— Bom dia, princesa. — Soltei, com deboche. — Dormiu bem?
Ela não respondeu, virou a cara. Fingiu que eu não tava ali. Eu ri baixo.
— Comida. Vai precisar se manter forte. Não quero você desmaiando por aí.
O estômago dela roncou alto. Ela mordeu o lábio, se segurando. Orgulho. Sempre o orgulho. Mas eu não sou babá de ninguém.
— Então não quer comer? — falei, levantando. — Talvez passar o dia de fome. Hoje… abra seu apetite.
Tranquei a porta e deixei ela lá.
Voltei pra cozinha, olhei firme pra Dona Joana.
— Proibida de entrar no quarto dos fundos. — Minha voz cortou o ar.
Ela assentiu, com medo, e foi cuidar da vida dela.
Peguei a moto, desci as vielas e segui até a boca. A rotina já me esperava. Mas quando entrei na minha sala, Mostro tava sentado na minha cadeira, como se fosse o dono do pedaço.
— Pensei que nem ia aparecer, irmão. — Ele disse, cruzando os braços.
Arqueei a sobrancelha.
— E por que eu não viria? Ainda sou o patrão dessa p***a.
Ele deu um sorriso cínico.
— Porque achei que você ia dar uma atenção especial pra sua hóspede.
Meu sangue ferveu. Inclinei o corpo pra frente, o olhar firme nos olhos dele.
— Não se mete nos meus assuntos pessoais, Mostro. Lisandra é problema meu.
Ele ergueu as mãos, debochado.
— Relaxa, parceiro… só falei. Aliás, Karol já colou aqui na boca, procurando você.
Soltei uma risada seca.
— Não tenho tempo pra p**a emocionada que acha que tem b****a transformadora.
Mostro gargalhou, mas eu já tinha perdido a paciência. Me joguei na cadeira, puxei a pasta e comecei a fazer a contabilidade do morro, o dinheiro tava entrando, tinha que pedir mais Droga ao fornecedor, vapor faltando no plantão, carregamento de arma chegando mais tarde do que devia. O dia foi isso: resolver problema atrás de problema, cortar cabeça de quem vacila, alinhar ordem com os moleques.
Quando deu seis da noite, guardei tudo, subi na moto e desci o beco de novo. No caminho, passei no bar do seu Zé e comprei duas marmitas. Simples, mas enchia a barriga.
Cheguei em casa, larguei as marmitas na cozinha e subi pro banho. A água fria escorrendo pelo meu corpo limpou parte do peso. Fiquei me olhando no espelho: olheiras, cicatriz no ombro, corpo marcado pela vida que escolhi. Mas firme. Sou Caveira, p***a. Não tem espaço pra fraqueza.
Vesti a bermuda, passei o cigarro na boca e fui até o quarto dela. Abri a porta.
Lisandra tava diferente. Mais calma. O olhar dela já não queimava tanto, agora era fome falando mais alto que orgulho. Sorri de canto, chegando perto.
— Tá vendo? — falei, me abaixando na frente dela. — O corpo pede… você só precisa abrir a boca.
Ela respirou fundo, os olhos molhados, mas dessa vez não desviou. Pediu baixinho, com a voz falhando:
— Solta meus braços… meus pés.
Fiquei só observando, deixando ela arder na expectativa. Segurei a faca, passei devagar na corda. Cortei. Os pulsos dela estavam marcados, vermelhos. Ela gemeu baixo quando sentiu o sangue voltando a circular.
Deixei a marmita perto dela, abri, e fiquei encostado na parede só olhando.
— Come.
Dessa vez, ela não resistiu. Pegou o garfo com a mão trêmula e levou à boca. Cada pedaço que ela engolia era vitória minha. E eu saboreava esse controle mais do que qualquer cigarro, mais do que qualquer dinheiro da boca.
Porque no fundo, ali, eu sabia: a princesa tava começando a ceder.
E não tinha volta.
Ela comeu em silêncio, cada garfada engolida como se fosse pecado. Eu fiquei só encostado na parede, tragando meu cigarro e observando. O jeito que os ombros dela tremiam, a respiração pesada, a vergonha estampada no rosto… tudo isso me dava um gosto que não tinha nada a ver com comida. Era poder puro.
Quando terminou, largou o garfo devagar, como se tivesse medo da minha reação. Os olhos dela não me encaravam de verdade, mas eu via o conflito ali dentro. Orgulho e rendição brigando pelo mesmo espaço.
— Boa menina. — falei baixo, deixando a fumaça sair devagar da minha boca. — Viu como não doeu abrir a boca?
Ela fechou os olhos, engolindo seco. A vergonha dela era visível, e eu queria mais. Queria ver até onde ela ia, até onde aguentava antes de quebrar.
Me aproximei devagar, agachei de frente pra ela. Segurei o queixo dela com firmeza, fazendo ela levantar o rosto.
— Quando eu mando, você obedece. É simples. — Minha voz saiu grave, cortando o ar. — Se tentar resistir, só vai sofrer mais.
Ela tentou virar o rosto, mas eu apertei mais forte.
— Olha pra mim, Lisandra. — Ordenei.
Os olhos dela finalmente encontraram os meus. Havia medo, mas havia também uma centelha de ódio. Isso sempre aparece.
Passei o polegar devagar no canto da boca dela, onde ainda tinha resquício de comida. Toque simples, mas carregado de intenção. Ela prendeu a respiração, sem coragem de se mover.
— Sabe o que é engraçado? — murmurei, quase roçando meus lábios no ouvido dela. — Você acha que ainda tem escolha.
Soltei o queixo e me afastei um pouco, só pra ver a reação. Ela respirava rápido, o peito subindo e descendo como se tivesse corrido. O corpo dela já falava antes da boca.
— Levanta. — Ordenei.
Ela hesitou, mas a fome tinha quebrado um pedaço dela. Devagar, se apoiou na cama e ficou de pé. O corpo trêmulo, as marcas das cordas ainda vermelhas na pele. Eu rodeei ela como predador, analisando cada detalhe.
— Tá vendo? — minha voz era um sussurro cortante. — Nem precisou gritar hoje. Só precisou obedecer.
Cheguei atrás dela, o corpo perto, sem encostar de verdade. A tensão encheu o quarto, dava pra cortar no ar. Eu queria que ela sentisse cada segundo da dúvida: fugir ou ceder? Resistir ou se render?
Inclinei a boca no pescoço dela, sem tocar. A respiração dela falhou.
— O medo tem gosto, princesa. E você tá me servindo ele em bandeja de prata. — falei baixo, quase roçando a língua.
Ela estremeceu inteira, e eu sorri, satisfeito. Não precisava de muito. Só precisava plantar o caos dentro dela, misturar terror com desejo até ela não saber mais distinguir um do outro.
Passei a mão no braço dela devagar, subindo até o ombro. O corpo dela arrepiou, mesmo quando tentou se afastar. Eu puxei de volta.
— Vai negar o que o corpo sente? — perguntei no ouvido dela.
Ela não respondeu. Ficou em silêncio, mordendo o lábio, os olhos fechados. O silêncio dela era minha resposta.
Soltei devagar, dei dois passos pra trás e falei firme:
— Hoje foi só o começo. Você comeu porque eu deixei. Você tá de pé porque eu quis. E cada respiração tua… depende de mim.
Fiz questão de sair do quarto logo depois, deixando ela sozinha, com o corpo queimando de confusão e a mente despedaçada. Esse é o tipo de veneno que demora a sair.
E eu sabia: quanto mais tempo ela passasse aqui, mais presa ela ia estar. Não só pelas cordas, mas pelo próprio desejo de obedecer.