Capítulo 4

1815 Words
Lisandra narrando Quando ele finalmente soltou meus pulsos e minhas pernas, eu me senti aliviada. Parecia que o meu sangue voltava a correr, queimando, como se cada veia tivesse sido incendiada. O formigamento me fazia querer chorar e rir ao mesmo tempo. A minha pele marcada pelas amarras latejava, parecia viva, pulsando, lembrando cada segundo em que fiquei presa. Tudo parecia um pesadelo. Eu queria acreditar que ainda tava dormindo, presa dentro de um sonho r**m, mas não... a realidade doía em cada parte do meu corpo. A comida veio como esmola, eu tremia tanto que o garfo batia contra o prato. A minha mão não obedecia, mas eu comi. Engoli cada pedaço, mesmo com a garganta seca, mesmo com a náusea. Eu não podia arriscar sobrar nada. No fim, a água foi a melhor coisa que já senti entrando no meu corpo: desceu rasgando, pesada, mas trouxe alívio. Quando terminei, levantei os olhos de relance. Ele tava lá, encostado na parede, tragando o cigarro como se tivesse todo o tempo do mundo. A fumaça rodava o quarto, misturando com o cheiro de mofo e medo. — Boa menina. — A voz dele veio baixa, grave, cortando o ar. — Viu como não doeu abrir a boca? Fechei os olhos, engoli seco, sem responder. Ele não gostou. Inclinou a cabeça e veio andando devagar. O peso das botas no chão ecoava na minha mente, como se fosse martelo batendo em ferro quente. Ele parou diante de mim e meteu a mão no meu queixo, forçando meu rosto pra cima. — Quando eu mando, você obedece. É simples. Se tentar resistir... só vai sofrer mais. Tentei virar o rosto, mas o aperto dele ficou mais forte. Os dedos pesados, ossudos, me obrigando a encarar o olhar escuro, fundo, perigoso. Era como olhar pra dentro de um buraco sem fim. — Você ainda não entendeu, Lisandra? — ele sussurrou, a boca encostando no meu ouvido, o calor da respiração me arrepiando. — Eu sou seu dono. Meu corpo inteiro tremeu. Eu queria negar, queria cuspir na cara dele, mas não consegui. As palavras se perderam na garganta. Ele passou minutos falando, impondo regra por regra, como se eu fosse uma empregada, uma boneca quebrada que ele podia ajeitar como quisesse. Eu odiava cada palavra, mas o que me destruía era o que eu sentia sem querer: o coração disparado, a pele queimando. Era como se meu corpo me traísse, como se gostasse do medo. Não, eu não ia aceitar isso. Nunca. Quando terminou, me largou como se eu fosse nada. Virou as costas e saiu do quarto, batendo a porta com força. O som ecoou, seco, me deixando sozinha outra vez. Levantei na pressa, corri até a porta, bati com força, implorando: — Caveira, me perdoa! Eu juro que não vou falar mais nada, não vou te questionar! Me tira desse lugar! — a voz quase não saía, rouca, nervosa. Silêncio. Me joguei no chão, abracei minhas pernas em posição fetal. O choro veio sem controle, molhando meu rosto, meu corpo inteiro tremendo. Eu perdi a noção do tempo. — Por favor, me perdoa... — soluçava, falando baixo, quase sem ar. — Eu juro, por tudo que for mais sagrado, que não vou te desafiar. Já entendi que você é o dono desse morro, que você é a lei. Mas me tira desse quarto... esse cheiro de mofo vai me deixar doente... me tira daqui... As sombras da parede pareciam vivas. A pouca luz que entrava pela fresta da janela fazia desenhos estranhos, figuras que me perseguiam. Eu tava ficando louca. Levantei num impulso e corri até a janela. Mas tinha grade. Fria, grossa, fechada. Não tinha saída. A raiva queimou dentro de mim. Me fez esquecer o medo por um segundo. Gritei com todas as forças que me restavam: — Você é um desalmado! Um homem r**m! A porta abriu de uma vez, batendo na parede com violência. O barulho me fez tremer. Ele entrou com passos pesados, os olhos brilhando de ódio. O corpo inteiro dele era ameaça. Em dois movimentos, ele atravessou o quarto e me pegou pela cintura, me erguendo como se eu não fosse nada. Nossos olhos se cruzaram e uma descarga elétrica me atravessou, tirando meu ar. A mão dele subiu pro meu pescoço, apertando. Não o bastante pra me apagar, mas o suficiente pra roubar o ar. Eu me engasguei, as mãos indo instintivamente tentar soltar o aperto. — Você gosta de testar minha paciência, né, princesa? — a voz dele era um rosnado, grave, cheia de fúria. — Toma cuidado com a sua boca. Eu já matei por muito menos. Não vou aceitar ser xingado por uma v***a. Meus olhos se arregalaram, a dor ardendo na garganta. — Eu... não sou v***a! — a voz falhou, mas saiu firme, carregada de raiva. Ele riu. Baixo, debochado. — Não? Se não fosse... seu próprio pai não tinha te vendido, Lisandra. O mundo desabou. Foi como se ele tivesse arrancado o chão debaixo dos meus pés. Meu pai... tinha me entregado. Como mercadoria. Como nada. Caveira apertou mais o meu pescoço, me prensando contra a parede. — Então, se quiser se manter viva... é bom aprender a se comportar com seu novo dono. As lágrimas voltaram, mas dessa vez não era só dor. Era humilhação. Era ódio. Era o gosto amargo de saber que eu não tinha pra onde correr. Quis gritar, cuspir, morder, me debater. Mas meu corpo tremeu de outro jeito. Um jeito que me deu nojo de mim mesma. Ele percebeu. Claro que percebeu. O sorriso dele se alargou, c***l. — Tá vendo? Seu corpo já entendeu quem manda aqui. Falta só a sua mente aceitar. Fechei os olhos com força, tentando ignorar o calor que subia pela minha pele, a sensação estranha que me consumia. — Eu te odeio... — sussurrei, quase sem ar. Ele encostou a boca perto da minha orelha, respirando fundo, sentindo meu medo, meu ódio, meu desespero. — Odeia hoje... deseja amanhã. Eu sei como quebrar você, Lisandra. Quando ele me soltou, quase caí no chão. Minhas pernas tremiam, o peito ardia, a respiração vinha em soluços. Ele me olhou mais uma vez, aquele olhar de dono, e saiu, trancando a porta. Fiquei sozinha. No escuro. No silêncio. O coração batendo descompassado, a mente em guerra contra o próprio corpo. Me encolhi no chão, abraçando minhas pernas, tentando me convencer que ainda era eu, que ele não ia conseguir me destruir. Mas a verdade queimava dentro de mim: Caveira não queria só me prender. Ele ia me despedaçar. Um pedaço de cada vez. Até eu não saber mais quem eu era. Amanheceu, mas pra mim parecia que a noite nunca tinha acabado. Eu não dormi direito, só cochilei de tanto cansaço, acordando o tempo todo assustada com qualquer barulho. Minha cabeça latejava, o corpo pesado, os olhos ardendo. O silêncio do quarto só era quebrado pelo som do meu próprio choro abafado. A maçaneta girou e meu coração disparou. A porta abriu devagar e Caveira entrou, trazendo uma bandeja. O cheiro de comida quente encheu o quarto e meu estômago se revirou de fome. Ele caminhou calmo, como se fosse dono não só daquele espaço, mas de mim inteira. Colocou a bandeja sobre a mesinha — Levanta, princesa. Come. — disse seco, soprando fumaça. Eu hesitei, mas a fome era mais forte que o orgulho. Fui até a bandeja com passos curtos, as pernas ainda bambas, e sentei. O cheiro de pão, ovo e café era como um tapa. Ele ficou ali, encostado na parede, me observando como quem vigia um bicho preso. — Tá entendendo a lição, Lisandra? — a voz dele cortava. — Aqui não é Zona Sul, não. Aqui você não é filhinha de papai, não manda em p***a nenhuma. Nesse morro, quem manda sou eu. Engoli seco, abaixei os olhos. Ele continuou, cada palavra entrando em mim como faca. — Enquanto você fingir que é dona de si, vai viver trancada nesse buraco. Agora... quando aceitar que é minha, que a regra aqui é minha, talvez... eu te deixe respirar um pouco. As lágrimas brotaram, mas engoli de novo, não queria dar esse gosto pra ele. Mas o meu corpo tremia sozinho. Ele se aproximou, puxou meu queixo com a mão pesada, me obrigando a encarar seus olhos escuros. — Você vai comer quando eu mandar, dormir quando eu mandar, abrir a boca quando eu mandar. É simples, princesa. Acha que consegue? Assenti rápido, sem pensar. — Fala. — ele ordenou. — Eu consigo... — murmurei baixo. — Mais alto. — Eu consigo! — repeti, nervosa, quase chorando. Ele riu de lado, satisfeito, e soltou meu queixo. Acabei a comida em silêncio, cada garfada era um peso na alma, mas eu sabia que precisava engolir. Quando terminei, ele pegou a bandeja, apagou o cigarro no cinzeiro improvisado no canto do quarto e caminhou até a porta. Meu coração disparou de novo. O desespero tomou conta. Eu não podia ficar ali, não aguentava mais aquele quarto fedorento, as paredes úmidas. Antes que ele saísse, corri até ele e, sem pensar, segurei firme na cintura dele. Ele congelou. Meu rosto encostou nas costas dele, os braços enrolados na cintura forte. Eu tremia, chorando, a voz saindo entrecortada. — Me tira daqui... — supliquei. — Eu já entendi... já entendi que você é o dono, que manda em tudo. Mas me tira desse quarto, por favor... eu preciso de um banho, de uma roupa limpa... não aguento mais. Ele tentou afastar minhas mãos. — Solta, garota. — a voz dele veio seca, irritada. — Você ficou maluca? O que acha que tá fazendo, p***a? Apertei ainda mais, não soltei. — Tô te impedindo de me deixar nesse lugar. Eu não aguento esse quarto, não aguento mais o mofo, o frio, a solidão... — falei rápido, nervosa. Ele riu baixo, irônico, e virou um pouco a cabeça, olhando por cima do ombro. — Cadê sua valentia agora, princesa? — ironizou. — Agora me solta! As lágrimas escorriam, molhando meu rosto. Eu sussurrei, quase sem voz: — Me promete que não vai me deixar nesse lugar... por favor. Eu faço o que você quiser. Minha voz quebrou, mas minhas mãos continuavam presas nele. Eu me sentia ridícula, humilhada, mas não me importava. A necessidade de sair dali era maior que qualquer orgulho. Por um instante, Caveira ficou parado. As mãos dele ainda seguravam meus braços, mas não puxaram com força. Eu senti o corpo dele endurecer, como se algo tivesse mudado no ar. Ele virou devagar, e quando os olhos dele encontraram os meus, um arrepio me percorreu. Não era só raiva que tinha ali. Era algo mais sombrio, mais intenso. Um olhar malicioso, carregado de promessa e ameaça ao mesmo tempo. E eu soube que tinha acabado de atravessar uma linha sem volta.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD