O Peso dos Olhares e dentro da toca do lobo

1241 Words
Damiana acordou com o som da rua ganhando vida. Crianças correndo, panela batendo, alguém vendendo pão na viela. A luz do sol entrava fraca pelas frestas da madeira da janela improvisada. Era um novo dia, mas o medo ainda pulsava em sua pele. Levantou devagar, alisou o hábito e ajeitou o véu. Respirou fundo. Precisava manter a fé. Precisava lembrar quem era. Mesmo ali, naquele lugar onde tudo parecia estar de cabeça pra baixo. Ao sair do quartinho, deu de cara com uma mulher jovem, de shorts jeans e top justo, encostada na parede com os braços cruzados e olhar afiado. — Então é você a freira que o D.F. tá escondendo — disse, com um meio sorriso irônico. — Bom dia — Damiana respondeu, com educação. — Ele nunca esconde mulher. Ainda mais freira. Você deve ser especial. Damiana sentiu o incômodo nas palavras. Aquelas palavras tinham veneno. Mas preferiu não rebater. — Só estou de passagem. — Aqui, ninguém passa. Fica ou some. Vai ver, você veio pra ficar... A mulher deu um último olhar e saiu rebolando pela viela. Damiana ficou parada, com um aperto no peito. Sentia-se uma intrusa. E pior: uma intrusa sendo observada de todos os lados. D.F. assistia tudo de cima, do terraço. Tinha olhos em todo o morro. E sabia que o comentário da Vanessa, a ex dele, ia espalhar rápido. O morro era um organismo vivo, e qualquer novidade se espalhava como fogo em palha seca. — Vai dar problema manter ela aqui — disse Capilé, ao lado dele. — As mulheres do morro já tão comentando. Dizem que você amansou. D.F. bufou. — Elas que se fodam. — Mas a freira não vai aguentar isso, chefe. Ela é limpa. Vai ser engolida. D.F. ficou em silêncio. Acendeu outro cigarro. Aquela mulher tinha surgido como um erro de rota. Um acidente. Mas agora, parecia inevitável. — Traz ela pra minha casa hoje. Não quero mais ela espalhada por aí. Capilé franziu a testa. — Vai botar a freira debaixo do seu teto? — Vai ser mais seguro. — E mais perigoso pra você. D.F. jogou a fumaça pro céu, sem responder. No fim da tarde, Capilé voltou até a casa onde Damiana estava. Bateu palmas e esperou. — D.F. mandou você pra casa dele. Ela hesitou. — Por quê? — Vai ser melhor. Mais seguro. Lá ninguém encosta. Damiana sentiu o estômago revirar. Não queria. Mas também não tinha opção. Ali, não existia “não”. A casa de D.F. era no alto da favela, com vista ampla para o morro e o mar ao fundo. Era simples, mas imponente. Entrar ali era como entrar no coração da selva — e ela sentia isso em cada passo. Ele a recebeu no portão. Estava sem camisa, com uma bermuda preta, tatuagens no braço e no peito. Damiana desviou o olhar. Aquilo a deixava nervosa. Confusa. — Já prepararam um quarto pra você. Vai ficar aqui até resolver como sair. — Por que está me ajudando? D.F. fechou o portão e se aproximou, parando a poucos passos dela. — Eu não sei. — Isso não é resposta. — É a única que eu tenho. Ela sentiu o corpo arrepiar. Queria acreditar que era só gratidão. Que era só instinto de proteção. Mas... havia algo a mais naquele olhar. Algo que queimava. Que arranhava suas certezas. — Se eu ficar aqui... o que vão pensar? — Que você é minha. Damiana o encarou, o coração disparado. — Mas eu não sou. — Ainda não — ele respondeu, virando as costas e entrando. Ela ficou ali, parada, com o mundo girando ao redor. Sabia que estava entrando num território onde nada era claro. Onde o certo e o errado se misturavam. E onde a fé dela seria colocada à prova como nunca antes. Mas o pior... era que, mesmo sabendo disso, ela entrou. E fechou a porta atrás de si. O quarto que D.F. preparara para Damiana era simples, mas limpo. Lençóis brancos, cortina fina, um crucifixo pregado na parede. Alguém, talvez ele mesmo, tentara fazê-lo parecer... respeitável. Ela ficou ali por um tempo, de pé, observando tudo. O silêncio da casa era estranho, denso, como se as paredes escondessem histórias que preferiam não ser contadas. Rezou em silêncio. Não por segurança — mas por clareza. Na cozinha, ouviu barulhos. Cheiro de café. Foi até lá. D.F. estava sentado à mesa, de costas, tomando café e escrevendo algo num papel. Sem camisa. Os músculos das costas dele se contraíam a cada movimento. O silêncio entre os dois era incômodo e intenso. — Tem café se quiser — disse, sem olhar. Ela hesitou, mas se aproximou, sentou-se à mesa. Ficaram assim por longos minutos. Ele rabiscando. Ela o observando, disfarçadamente. — O que está escrevendo? — Códigos. — Códigos? Ele virou o papel pra ela. Eram números, letras, abreviações. — Organização do morro. Entregas, vigilância, rota de avião, horário de giro da polícia... — Parece... uma empresa. Ele riu, amargo. — É. Mas sem imposto, sem lei. Só regra. — E quem quebra a regra? — Paga com sangue. Damiana ficou em silêncio. — Você já... matou alguém? D.F. olhou nos olhos dela. Não desviou. — Sim. — E dorme depois disso? — Quando não durmo, não é por remorso. Ela engoliu em seco. — Por quê então? — Porque o morro nunca dorme. E eu não posso ser o primeiro a fechar o olho. Nos dias seguintes, Damiana tentou manter sua rotina. Acordava cedo, rezava, lia a Bíblia. As crianças do morro começaram a se aproximar dela. Curiosas. Encantadas. Ela contava histórias, ouvia problemas, fazia orações. Logo, até algumas mães apareceram pedindo conselhos. A presença dela incomodava alguns, mas transformava outros. — A freira tá mudando o clima do morro — disse Capilé, desconfiado. D.F. observava de longe. Cada gesto dela. Cada palavra. Não era amor. Ainda não. Era fascínio. Curiosidade. Vontade de entender como alguém tão puro conseguia sobreviver num lugar tão sujo. — Ela é o oposto de tudo que você já teve — Capilé comentou. — É por isso que eu ainda não mandei ela embora. — Ou por isso que você devia mandar logo. Numa noite quente, a luz caiu. Um apagão deixou a favela mergulhada na penumbra. Damiana estava sentada no terraço quando D.F. apareceu, com uma lanterna na mão. — Você tem medo do escuro? — Só quando ele vem de dentro. Ele sentou ao lado dela. — Eu nunca conheci ninguém como você, sabia? Ela sorriu de leve. — E eu nunca conheci alguém como você. Ficaram em silêncio. A favela aos poucos sendo engolida pela noite. Apenas os sons do morro: um tambor aqui, um cachorro ali, passos rápidos em alguma viela. — Você não deveria estar aqui — ele disse, sério. — Você é boa demais pra isso. — Talvez Deus tenha me trazido pra cá por um motivo. — Eu não acredito em Deus. — Mas Ele acredita em você. Os olhos dele brilharam na escuridão. Não era emoção. Era dor antiga. Ferida aberta. — Você é perigosa, freirinha. — E você? Ele sorriu, devagar. — Eu sou o perigo. Mas naquela noite, quando ela voltou pro quarto e ele ficou sozinho no terraço, D.F. percebeu algo que o deixou inquieto: Pela primeira vez, ele sentia medo. Não da polícia. Nem dos rivais. Medo dela. Medo do que ela podia fazer com o coração dele.
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