Encostei no SUV preto, tentando dar uma disfarçada no calor que já grudava a camisa social no meu corpo. Puxei o ar fundo, ajeitei a manga dobrada e fiquei observando o movimento da avenida pela vitrine. Essa era a parte da rotina que eu gostava: reparar nas pessoas que passavam, imaginar pra onde iam, e também esperar a próxima oportunidade de venda.
Na loja, todo mundo sabia que, quando uma cliente mulher entrava, quem ficava na linha de frente era eu. Não porque os outros não soubessem vender — o Valdir, por exemplo, era ótimo de papo — mas porque tinha uma coisa em mim que atraía. Eu não precisava fazer esforço. Bastava dar um sorriso meio torto, olhar nos olhos e pronto: já tinha quebrado a resistência de metade das clientes.
— Betão, vai lá que entrou “material do seu tipo” — gritou o Djalma, outro vendedor, de trás do balcão, rindo com aquele ar malandro.
Revirei os olhos, mas ajeitei a postura. Sempre a mesma brincadeira. Quando levantei a cabeça, vi que ele tinha razão. Uma mulher de uns trinta anos, morena, salto alto, vestido justo, tinha acabado de entrar na loja. Dava pra sentir de longe que ela estava mais interessada em ser atendida do que no carro em si.
— Bom dia! — cumprimentei, me aproximando com meu tom mais profissional, mas ainda leve. — Posso ajudar em alguma coisa?
Ela sorriu daquele jeito que não deixava dúvida. — Acho que você pode me ajudar em muitas coisas… mas, por enquanto, quero ver um carro.
Eu ri, sem graça, mas entrei no jogo. — Então vamos começar pelo carro, depois a gente conversa sobre o resto.
Ela se aproximou de um hatch branco e perguntou coisas óbvias, tipo se o carro tinha ar-condicionado, direção hidráulica… qualquer um que tivesse lido a plaquinha saberia. Mas o que ela queria mesmo era esticar a conversa.
— E você, trabalha aqui faz tempo? — perguntou, se apoiando de propósito no carro, inclinando o corpo.
— Uns cinco anos já. Esse pátio é praticamente minha segunda casa.
— Então você deve ser bom no que faz.
— Bom não. O melhor. — Sorri, piscando o olho, do jeito que eu sempre fazia pra quebrar o gelo.
Ela riu, claramente gostando da confiança. Mas aí eu já mudei o rumo, porque não misturo trabalho com essas coisas. Se a cliente fechar compra, ótimo. Se não fechar, paciência. Eu não ia dar brecha pra confundir as coisas.
Depois de uns vinte minutos de conversa, percebi que ela não estava interessada em levar nada. Saiu com um “eu penso e volto depois”, e eu sabia que aquele “volto depois” era mais sobre me ver de novo do que sobre o carro.
Assim que ela foi embora, o Djalma voltou a cutucar:
— Rapaz, se eu tivesse metade desse teu charme, já tinha me aposentado.
Dei uma gargalhada. — Vai nessa, Djalma. O segredo é parecer que não tá nem aí.
E era isso mesmo. Eu nunca corria atrás, nunca forçava. As coisas simplesmente aconteciam.
Aquele dia ainda renderia outras histórias. Teve uma senhora de uns sessenta anos que me chamou de “meu neto loiro” e queria me apresentar pra filha dela, que morava em Curitiba. Teve um cara que trouxe a esposa pra ver uma caminhonete e a mulher passou a conversa inteira olhando pra mim em vez do carro, a ponto de o marido ficar sem graça. Nessas horas eu tinha que ser rápido, desviar o olhar, falar só com o cliente homem pra não arrumar confusão.
Mas a que mais me marcou foi uma moça de uns vinte e cinco anos, que entrou no final da tarde. Ela parecia meio perdida, toda desarrumada, como se tivesse vindo direto do trabalho. Camisa social amassada, cabelo preso de qualquer jeito, uma pasta de documentos debaixo do braço.
— Boa tarde… eu tô procurando um carro pequeno, popular, que não gaste muito.
— Claro, tem vários assim. — Levei ela até um Gol prata, modelo 2015, bem conservado. — Esse aqui é econômico, manutenção barata, ideal pra cidade.
Ela ouviu tudo atenta, mas percebi que, a cada vez que eu sorria, ela desviava o olhar, mordia o lábio.
— Posso… posso fazer uma pergunta pessoal? — disse de repente, sem jeito.
— Pode.
— Você é casado?
Eu ri, balançando a cabeça. — Não, não sou.
Ela soltou um “ah” baixinho, como quem confirmava uma suspeita. Depois ficou vermelha. — É que… você não parece do tipo que ficaria solteiro.
— É que eu não sou fácil de prender. — Brinquei, cruzando os braços. — Até hoje ninguém conseguiu me laçar.
Ela riu nervosa, mas acabei desviando a conversa de novo pro carro. Não queria que ela se sentisse envergonhada. No fim, não fechamos negócio naquele dia, mas eu sabia que ela ia voltar. O brilho no olhar dela quando me deu “tchau” dizia tudo.
Quando a porta da loja se fechou atrás dela, fiquei pensando nisso. Era sempre assim: mulher que aparecia, se encantava, queria algo mais. Eu, por outro lado, nunca me prendia a ninguém. Não por maldade, mas porque… sei lá. Acho que eu nunca encontrei alguém que fizesse meu coração disparar de verdade. Até agora, era tudo diversão, casinhos passageiros, nada sério.
Enquanto isso, a vida seguia no mesmo ritmo: acordar cedo, vir pra loja, brincar com os colegas, vender o máximo possível e ir pra casa. Era isso. Simples, previsível, até um pouco monótono.
Mas, naquele dia, quando fechei a loja mais tarde, trancando a porta de vidro e jogando a chave no bolso, eu não fazia ideia de que meu destino estava prestes a cruzar com o de alguém que ia virar tudo de cabeça pra baixo.
E essa pessoa ia entrar justamente pela porta da frente daquela loja, como qualquer cliente comum.