O carro deslizou pelas avenidas iluminadas da cidade, e eu encostei o braço na janela, sentindo a brisa da noite entrar pelo vidro aberto. Nada de luxo exagerado, mas o meu possante era novo, confortável, cheio de tecnologia que eu ainda estava aprendendo a mexer. Era o tipo de conquista que eu nunca imaginei ter tão cedo, e sempre que girava a chave, uma ponta de orgulho me atravessava.
Não era nenhum carrão de milionário, claro, mas também estava longe de ser a lata-velha que a maioria dos vizinhos achava que eu dirigia até pouco tempo atrás. Eu tinha feito por merecer. Sangue, suor e noites sem dormir me trouxeram até ali. O ronco suave do motor me lembrava disso.
Quando dobrei a esquina que levava até o meu apartamento, pensei como a vida tinha mudado. Não, eu não era pobre como muita gente gostava de pintar. Eu tinha um teto decente, paredes que eu mesmo decorei com meu gosto simples — quadros minimalistas, uma estante improvisada cheia de livros que eu relia sempre que a cabeça precisava descansar. Um sofá novo ocupava a sala, confortável o suficiente pra eu capotar depois de um dia cansativo.
Era um lar. Um lar pequeno, mas meu.
Estacionei o carro na vaga e subi, jogando a mochila no chão da sala assim que a porta se fechou atrás de mim. Suspirei fundo, abrindo alguns botões da camisa. Estava cansado, mas uma sensação de pertencimento me invadiu. Aqui, ninguém me julgava. Aqui, ninguém me cobrava.
Peguei o celular e, como de costume, vi que tinha perdido três chamadas dela. Minha avó. Ri sozinho, balançando a cabeça. Quando eu não atendia, ela ficava brava, dizia que eu “sumia do mapa” e que um dia ia me dar um susto, aparecendo na porta do meu prédio sem avisar.
Apertei o botão verde e esperei. Não demorou muito para a voz mais cheia de vida que eu conhecia atravessar a linha:
— Até que enfim, né? Pensei que tinha virado importante demais pra atender a velha aqui.
— Ô, vó… — falei, jogando o corpo no sofá, já sorrindo. — Trabalhei até mais tarde, foi corrido.
— Corrido? Corrido vai ser o chinelo voando na tua cara quando eu te encontrar. — A risada dela ecoou alta, contagiante. — Tu some, menino. Some que nem meu troco na feira!
— A senhora ainda vai na feira, vó? Não acredito.
— Claro! E pechincho mais que todo mundo. Esses feirantes me veem chegando e já sabem: ou fazem desconto, ou eu boto apelido neles que pega.
Dei risada alto, já imaginando a cena. Minha avó era um furacão. Fanfarrona, sem vergonha e cheia de tiradas que deixavam todo mundo desconcertado. O engraçado é que ela só se soltava mesmo comigo. Pros outros, era rabugenta, pegava no pé das minhas tias, reclamava da vizinhança, inventava apelidos maldosos pros desafetos. Mas comigo, era como se ela virasse outra pessoa.
— E quando vai vir pra cá, vó? — perguntei, mexendo no controle remoto, sem nem prestar atenção na TV. — Já falei que aqui é tranquilo, a senhora ia gostar.
— Gostar? Eu ia era morrer de tédio nesse teu prédio cheio de gente muda. Aqui, pelo menos, eu xingo as tuas tias, e elas respondem. É meu entretenimento diário. — Ela riu de novo, e eu não pude deixar de rir junto. — Fora que aí tu não tem nem estrutura pra me bancar, menino. Vai me deixar comendo macarrão instantâneo todo dia?
— A senhora sabe que eu me viro.
— Sei… se virar é uma coisa, se entortar é outra. — A risada dela veio acompanhada de uma tosse leve, e eu franzi a testa. — Tá ouvindo, né? Essa tosse só piora. Mas não me preocupo, não, porque ainda vou viver mais que essas tuas tias invejosas.
Suspirei, fechando os olhos. Essa era a parte difícil. Eu queria que ela viesse. Queria tê-la perto, cuidar de verdade. Mas ela sempre desconversava, usava humor pra mascarar a realidade. Lá, pelo menos, tinha gente por perto — mesmo que fossem as tias chatas, como ela dizia. Aqui, eu ainda não podia prometer estabilidade.
— Um dia eu vou te trazer, vó. Custe o que custar.
— E eu vou dar trabalho, hein. Vou fazer escândalo no mercado, reclamar dos preços, botar apelido no teu síndico.
— E vai pegar no meu pé?
— No teu, nunca. — A voz dela suavizou, quase carinhosa. — Tu é o único que não me tira do sério.
Fiquei em silêncio por alguns segundos, sentindo o peso e o alívio dessas palavras. Minha avó era tudo que eu tinha de mais verdadeiro. Ela podia brincar, ser fanfarrona, mas eu sabia que por trás da risada havia uma mulher que carregava uma vida inteira de dureza.
— Te amo, vó.
— Eu também, menino. Mas não pensa que vou deixar barato se tu sumir de novo. Vou atrás de ti, nem que seja de bengala.
Rimos juntos, e depois de alguns minutos de conversa sobre nada e sobre tudo, desligamos.
Fiquei olhando pro teto, o celular ainda na mão. A solidão do apartamento parecia menor depois de falar com ela. Eu tinha carro, tinha um lar, tinha conquistas que ninguém podia tirar de mim. Mas o que me mantinha de pé era aquela voz do outro lado da linha, me lembrando que eu não estava sozinho.
E, no fundo, talvez fosse isso que me dava coragem pra encarar tudo que ainda vinha pela frente.