Rodrigo
Encontrei o rastro dela num ponto de ônibus em Santa Felicidade,um lugar onde Milena jamais pisaria… a menos que quisesse exatamente isso,passar despercebida,mas não pra mim,fui eu quem a viu sangrar no Chile,fui eu quem a carregou até o carro, com o rosto desfigurado, o corpo quebrado, mas a alma intacta, e fui eu também quem a deixou nas mãos do irmão Thiago, antes de ela desaparecer até de mim, e agora ela tá aqui,de volta à cidade onde tudo começou,circulando nas sombras,espiando a própria filha na escola… sem coragem (ou sem permissão) pra se revelar,não aguentei,peguei o carro,esperei o momento certo,ela saiu da banca onde costumava comprar cigarro,mesmo com os óculos escuros e o cabelo mais curto, eu conhecia cada passo daquele corpo,cada movimento,cada silêncio,estacionei o carro bruscamente,desci,ela parou no mesmo instante,me olhou,por um segundo, pensei que ela fosse fugir,mas não,ela apenas suspirou e disse:
— “Demorou.” —Ficamos cara a cara, parados na calçada vazia, o vento arrastando folhas pelo asfalto, a cidade roncando ao fundo.
— “Por que você fugiu de mim também?” — perguntei,Milena desviou o olhar,puxou o cigarro do bolso,acendeu com calma,como se não devesse nada a ninguém.
— “Porque eu precisava.”
— “Você quase morreu, Milena,eu te salvei,te tirei do inferno que aquele desgraçado do Gustavo armou,te levei até teu irmão,e o que eu ganho? silêncio,desaparecimento.”
Ela tragou,longo,frio.
— “Você acha que me salvou, Rodrigo?” — ela perguntou, com a voz baixa.
— “Você só me devolveu pra um mundo onde eu ainda precisava lutar.”
— “Você podia ter me dito alguma coisa,eu achei que tivesse feito parte do teu plano,mas parece que fui só mais uma peça.”
— “Não fala besteira.” — ela cortou, seca.
— “Você foi a única peça que não quebrou quando tudo caiu,é por isso que eu sumi,porque você me conhece demais,e eu não podia deixar você me ver do jeito que eu estava.”
Me aproximei,ela não recuou.
— “E agora? você tá aqui por quê? só pra espiar tua filha? ou tem algo maior acontecendo?”
Milena encarou o horizonte, o cigarro queimando até quase os dedos.
— “Você acha mesmo que eu voltaria pra essa cidade sem motivo?”
— “Sim,acho que você faria qualquer coisa por vingança,ou por amor,ou pelos dois.”
Ela sorriu torto.
— “Vingança e amor são coisas parecidas, Rodrigo,as duas te fazem m***r,as duas te fazem morrer.”
— “E o que você quer agora?” — perguntei.
— “Ficar? sumir de novo? aparecer pra tua filha como se fosse milagre?”
Ela jogou a bituca no chão, pisou com força,respirou fundo.
— “Agora… eu quero liberdade,quero decidir quando eu volto,como eu volto,e pra quem.”
— “Bruno vai te reconhecer.”
— “Talvez.”
— “Ele ainda te ama, Milena.”
— “Eu sei.”
— “E você?”— Ela fechou os olhos por um segundo,e eu vi ,pela primeira vez em anos,uma rachadura naquele escudo de gelo.
— “Eu não sei mais quem eu amo,mas eu sei de quem eu fujo,e isso… já me diz muita coisa.”— Fiquei em silêncio,Milena deu dois passos em direção ao carro.
— “Obrigada por tudo no Chile,você foi o único que não quis nada em troca.”
— “Isso não é verdade.” — respondi, firme.
— “Eu queria que você ficasse viva,só isso.”— Ela parou,virou o rosto pra mim.
— “E eu fiquei,mas agora…eu preciso ser outra coisa.”
— “O quê?” — Ela sorriu de lado, enigmática, o tipo de sorriso que precede caos.
— “Algo que nem Deus reconheça.” — E então, ela se foi,fiquei parado, vendo o carro dela sumir na neblina das ruas antigas de Curitiba, e soube, no fundo da minha alma, que Milena não está aqui só por saudade,nem só por amor,ela está aqui por acerto de contas,com o passado,com o presente,e talvez… com ela mesma,e isso me assusta,porque Milena ferida…era perigosa,mas Milena livre? é o tipo de tempestade que engole cidades.
Narrado por Milena
Fazia cinco dias que eu passava por aquela esquina, sempre no mesmo horário,escondida entre o vidro fumê, com o cabelo preso e os óculos escuros que disfarçavam metade da minha alma,ela sempre saía do portão da escola com a mesma mochila azul,o cabelo preso num r**o de cavalo,os passos leves, rápidos, livres,minha Maria,Rodrigo me encontrou ali outra vez, claro,agora ele sabia onde me achar,mas diferente de antes, ele não exigiu respostas,só entrou no carro,sentou ao meu lado,ficou em silêncio por longos minutos, olhando para a escola, assim como eu.
— “Você vai falar com ela?” — ele perguntou, sem me encarar.
— “Ainda não.”
— “Então por que me chamou?”
— “Porque quero que ele saiba que estou aqui.”— Rodrigo virou o rosto devagar.
— “Bruno.?” — Eu confirmei com um gesto sutil,ele respirou fundo.
— “Usar a filha pra atingir o pai,isso é digno da antiga Milena.”
— “E se eu te dissesse que não é sobre ele?”
— “Mentira.”
— “Talvez seja.”
— “Você ainda ama ele, né?”
— “Não sei o que é amar mais,eu só sei que tudo que eu toco… ou morre, ou vira arma.” — Rodrigo sorriu de canto.
— “Menos ela.”
— “Ela é minha redenção.” — respondi baixo.
— “Ou minha ruína.” — O sinal tocou,o portão se abriu,as crianças começaram a sair correndo, gritando, rindo,e ali estava ela.
O sinal tocou,o portão se abriu,as crianças começaram a sair correndo, gritando, rindo,e ali estava ela ,Maria, Bruno chegou minutos depois, estacionando o carro mais à frente, saiu com aquele jeito firme, sóbrio, como quem carrega o mundo nas costas,Maria correu até ele,ele se abaixou, abraçou a filha, ela falou algo,ele sorriu,foi ali que meu peito apertou de um jeito que fazia tempo que não acontecia,a vontade de gritar o nome dela…de correr até ela e dizer “Filha, sou eu. A mamãe tá aqui.” mas eu não fiz, eu nunca faço.
— “Você pode fugir, Milena…” — Rodrigo murmurou.
— “…mas ela vai te reconhecer um dia,e não vai entender por que você não correu pra ela antes.”
Eu ia responder,mas foi ela quem quebrou o mundo:
— “Mamãe?”
A voz dela, a voz dela atravessando o vidro fechado do carro,atravessando o disfarce,atravessando meu peito,me virei de susto,ela estava parada no meio da calçada, olhando direto pra mim, Bruno a chamou, confuso.
— “Filha? O que foi?” — Ela não respondeu,só apontou.
— “Ali,aquela moça,eu conheço ela.” — Bruno seguiu o dedo da filha,olhou em nossa direção,e por um segundo eterno…nossos olhos se encontraram,Rodrigo engatou a ré.
— “Milena, diz o que fazer.”
— “Vai.” — sussurrei.
— “Agora.”
Ele acelerou,vi Bruno vindo em nossa direção, com o olhar arregalado, carregando Maria nos braços,mas já era tarde,viramos a esquina,e o mundo voltou a ficar em silêncio,no banco do passageiro, chorei em silêncio,pela primeira vez em anos, eu chorei como mãe,Rodrigo não disse nada,mas seus olhos diziam tudo, a partir de agora…não há mais como se esconder.