Thiago estava de pé na mesma hora.
— “Quem?”
— “Minha filha.” — Ele se aproximou devagar.
— “Você está lembrando dela?”
— “Não sei o nome, mas eu senti, ela era minha, e eu a deixei.” — Ele não respondeu, mas vi nos olhos dele que aquilo… ele já sabia.
— “O pai era o Fábio?”
— “Sim.”
— “Ele era bom comigo?”
— “Mais do que você permitia, mas… sim.” — Eu sentei no chão, de novo, fraca como uma folha no vento, as lembranças vieram em espasmos, Fábio sorrindo, suado, tirando minha blusa, uma cicatriz no peito dele, a sensação do corpo dele me protegendo, depois…o tiro, o grito, a morte, e em seguida, outra lembrança, Bruno segurando minha mão, meu sangue quente entre nós, ele gritando meu nome, eu… sorrindo, e tudo ficando escuro.
— “Eu morri, Thiago?”
— “Quase, mas alguém te tirou do país antes que morresse de verdade.”
— “Gustavo.”
— “Sim.”
Fiquei em silêncio por alguns segundos, o nome dele era uma faca girando no peito.
— “Ele não me salvou, Thiago, ele me roubou.” —Thiago assentiu sem palavras; mais tarde, ele me entregou uma caixa de madeira, dentro, uma pistola pequena prateada, com um nome gravado na lateral: "Maria"
— “Você a batizou com esse nome, ela tinha olhos de Fábio, mas o resto é você.” — As lágrimas vieram, secas, sem grito.
— “Onde ela está?”
— “Bruno a criou, ela está segura.” — Meu coração quase parou.
— “Ele… está vivo?”
— “Sim, mas ele acha que você está morta.”
A dor me atravessou como uma lança, e junto dela… um eco, um choro de criança…os dedinhos segurando o meu, eu caí de joelhos.
Thiago ajoelhou comigo,encostou a testa na minha.
— “Você tem direito de voltar,mas vai ter que sangrar mais uma vez.”
— “E se ele não me perdoar?”
— “Então você vai fazer como sempre fez, irmã, vai erguer a cabeça…e reinar sozinha.” —Do lado de fora, um corvo passou voando, era um sinal, Gustavo estava chegando, e dessa vez…eu não correria.
Narrado por Thiago
Eu senti o cheiro de pólvora antes de ouvir o motor, quatro carros, subindo pelas estradas escondidas da montanha, devagar,calados, mas nada que chega com tanto silêncio traz boas intenções, eu estava limpando a espingarda quando ouvi o passo leve da Milena atrás de mim.
— “Ele vem, não é?”
— “Não, ele já chegou.” —Ela se ajoelhou ao meu lado, pela primeira vez desde que nos reencontramos, ela estava plena, olhos duros, lábios secos, dedos firmes, Milena tinha voltado, não inteira, mas suficiente pra m***r.
— “Você quer fugir?” — perguntei !
— “Não, quero que ele me veja, quero que ele saiba que fui eu que deixei ele chegar tão perto.”
Montei as armas, ela preparou o campo, sabíamos que não era uma guerra completa, não ainda, mas era um aviso“Você não me possui mais.” os passos vieram primeiro, depois os estalos no mato, e então, o vulto, Mateo surgiu entre as árvores com dois homens armados, fardas escuras, armas de precisão, silêncio absoluto, Milena caminhou até a beira da varanda da cabana, sozinha, de vestido branco, pés descalços, o cabelo solto como se estivesse indo ao altar ,mas nos olhos dela havia morte.
— “Gustavo.”
— “Julieta.” — ele sussurrou, quase com ternura, ela desceu os degraus devagar, cada passo ecoava entre os troncos como uma contagem regressiva.
— “Eu me lembro.” — ela disse.
— “Do quê?”
— “De tudo.” —Gustavo empalideceu, ocharme morreu ali mesmo, diante daquela mulher que já não era sua.
— “Você me sequestrou do Brasil, apagou minha história, e me fez amar uma mentira.”
— “Eu te salvei!” — ele berrou.
— “Você me moldou pra te caber, e ainda assim, eu transbordava.” — Ele avançou dois passos ergueu as mãos, como se ainda pudesse tê-la de volta.
— “Você é minha.”
— “Não mais.”
Ela sacou a pistola. “Maria” e mirou direto no peito dele, os homens dele ergueram as armas,mas foi quando eu entrei na cena, pela lateral da cabana, que tudo ficou claro, nós não viemos pedir paz, vi a hesitação nos olhos de Gustavo, ele me reconheceu e naquele instante, a sombra do medo passou por ele.
— “Thiago?”
— “Ela tem nome e não é Julieta.”
— “Ela não lembra de você como eu lembro.”
— “Ela não precisa, porque agora, ela lembra de si.”
O primeiro tiro foi de advertência, Milena atirou no chão próximo aos pés de Gustavo.
— “Você não vai morrer hoje.”
— “Por que não?” — ele rosnou.
— “Porque isso seria simples demais, você vai viver sabendo que perdeu, que tudo que construiu… caiu e quem cortou os fios fui eu.”
Ela recuou devagar, os olhos dele molhados, o rosto pálido.
— “Um dia, Milena… você vai implorar pra voltar.”
— “Duvido, mas se acontecer… espero que eu tenha coragem de te enterrar com minhas próprias mãos.”
Nós recuamos pra dentro da cabana, ele ficou parado ali por minutos, respirando ódio, antes de sumir com os capangas, a montanha voltou ao silêncio, mas sabíamos que aquilo era só o primeiro capítulo da guerra real; mais tarde, ela sentou ao meu lado, com a pistola no colo.
— “Eu vou voltar pro Brasil.”
— “Tem certeza?”
— “Minha filha tá lá, meu nome tá lá, minha alma tá enterrada naquele solo.”
Assenti, e pela primeira vez, desde a infância, chamei ela como nunca mais havia chamado.
— “Mila.”
— “Hm?”
— “Você não está sozinha.” — Ela sorriu, e mesmo suja, cansada, com os olhos inchados…parecia mais viva do que nunca.