Reflexos Queimam

1068 Words
Mateo/ Gustavo As correntes estavam soltas, o porão vazio, a cama com o lençol frio, ela fugiu, ela me enganou, meu punho atravessou o espelho da parede, estilhaços cortaram meu rosto e pela primeira vez em anos, eu sorri de verdade, o sangue escorrendo era como um lembrete: Você deixou a cobra solta, Rodrigo, desgraçado inútil, traidor, ela não fez isso sozinha, nunca foi burra, Rodrigo sabia, ele sempre soube, desde o momento em que pisou aqui, com aquele olhar de quem já tinha me lido inteiro. — “Vocês querem brincar? então vão ver o que um homem traído de verdade é capaz.” Liguei para homens que eu mantinha fora do radar eEx-Yakuza, pescadores que vendiam d***a no cais, mercenários que cruzavam a fronteira com uma pistola em cada calcanhar. — “Achar, observar e não encostar.”— por enquanto. Márcia veio me visitar dois dias depois,de luto, não por alguém morto… mas pela imagem que tinha de mim. — “Você está repetindo tudo o que ela fez com você, Gustavo.” — “Não use esse nome.” — “Você sequestrou a desgraçada fez dela sua boneca e agora está surpreso que ela te deixou?” — “Ela NÃO ME DEIXOU ! ela está sendo manipulada.” Márcia cruzou os braços, não se abalou com meus gritos. — “Manipulada por quem? Por Rodrigo? ou pelo próprio sangue dela que está voltando?” Aquilo me congelou por dentro. — “Como você sabe do Thiago?” — “Porque você sempre esquece que o mundo gira sem você, Gustavo,Milena não é só uma mulher que você perdeu, ela é um furacão que você tentou engarrafar, e agora, ele vai varrer tudo.” Eu a expulsei de casa, mas as palavras dela ficaram vibrando na minha cabeça, como uma navalha girando: “Ela não é mais sua, nunca foi.” Naquela noite, não dormi, assisti às imagens da câmera de segurança do restaurante, Julieta sorrindo, Rodrigo de mãos nos bolsos, a conversa curta com um carro que ela pensava que ninguém tinha notado, ocarro tinha placa falsa, mas eu conhecia o modelo, era de fronteira, era de alguém que vive fugindo, ela me trocou por ele. “Quer brincar de guerra, Milena? vamos ver quem quebra primeiro.” Eu quero ela de volta, não porque ela é minha, mas porque sem ela, eu não sou nada, e eu não vou aceitar desaparecer, não agora,não com essa mulher renascendo das cinzas nas mãos de outro homem, se ela quer fogo…eu vou dar incêndio. Julieta Eu acordei gritando, suada, tremendo, o peito doía como se tivesse levado um tiro, mas tudo estava em silêncio, a cabana, a neve lá fora e Thiago, sentado no chão, com os olhos cravados em mim como se não tivesse dormido. — “De novo?” — “Era uma bebe... chorando… e sangue pelo chão…” — “Você estava com ela?” — “Não sei. Mas sentia que era minha.” Ele se aproximou devagar, me entregou um copo com chá. — “Você está voltando.” — “Voltando de onde?” — “De você mesma.” Passamos o resto do dia em silêncio, Thiago cozinhou como fazia quando éramos crianças mesmo que eu não lembrasse disso, algo dentro de mim reconhecia o gesto, era como se meus dedos soubessem o caminho até a colher, como se minha boca já soubesse o gosto do tempero dele. — “Você se lembra de mim, Milena?” — “Às vezes, mas é como se eu estivesse olhando de fora.” Ele me entregou um álbum, fotos antigas, desbotadas, numa delas, eu estava ao lado de um menino igual a ele, com olhos cheios de mundo, e outro… de cabelo liso, sorriso de malandro — Gustavo. — “Ele… ele era nosso amigo?” — “Era.” — “E depois?” — “Ele se destruiu.” Foi como se alguém puxasse meu coração pra dentro de um poço gelado, senti o cheiro do sangue, o gosto do vômito, o som abafado,minhas falas enboladas, um homem sobre mim, as mãos dele alisando meu corpo, o nojo, a impotência, a taça de chá caiu no chão, me encolhi, as imagens vinham como flashes entrecortados ,um quarto escuro,um arma na mão, um corpo no chão. — “Eu matei alguém?” — “Milena…” — “Diz!” —Thiago respirou fundo. — “Sim, você matou muitos, alguns por sobrevivência, outros… porque não havia mais saída.” Eu corri até o banheiro, tranquei a porta, vomitei, e pela primeira vez em anos, chorei sem entender por quê. “Eu tive uma filha?” “Eu fui um monstro?” “Alguém ainda me ama?” Mais tarde, ele me deixou sozinha, no quarto escuro, acendi a única vela do criado-mudo, fitei a chama, e vi…o rosto do Bruno. Sangue em suas mãos,eu mole nos seus braços, sua roupa coberta de sangue “Eu te salvei.” “Eu te perdi.” “Eu morri.” Acordei no chão, de novo,desnorteada, e dessa vez, Thiago me segurava nos braços, como fazia quando eu era criança. — “Você está acordando, irmã.” — “Mas e se eu não gostar do que eu sou?” — “Então a gente destrói, e reconstrói do nosso jeito.” Foi ali, naquele momento, que senti a primeira fagulha voltar, a Milena que sobrevivia, a que enganava, a que planejava, a que amava com fúria e queimava tudo ao redor, ela não voltou inteira, mas ela estava ali, e com ela, um pensamento gelado: “Se eu estou aqui… então Gustavo também está vindo.” Eu preciso me preparar, antes que ele me ache, ou antes que eu vá até ele. Acordei com o som da chuva, ela escorria pelo telhado como se o céu estivesse chorando o que eu ainda não conseguia, Thiago dormia no sofá, uma faca embaixo do travesseiro, sempre alerta. Sempre pronto, levantei,caminhei descalça até o espelho da sala,me encarei por longos minutos,toquei o rosto,era meu,mas não era, então fechei os olhos…e ela veio,uma criança pequena, olhos escuros, intensos,uma risada que ecoava como sinos,um cheiro doce de sabonete,o som de um piano ao fundo e… o sangue no chão, meus olhos se abriram num sobressalto, ofegante, trêmula. “Ela… existiu.”
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