4 - Caidinho

1670 Words
Avery Coloquei um bolinho sobre a mesa de ferro forjado do lado de fora do café. Meu amigo Quinn, dois anos mais velho do que eu, levantou os olhos, surpreso. — O que é isso? — ele perguntou. — Um presente da fada da sala de descanso — respondi, puxando uma cadeira e me sentando ao lado dele. — É pra me agradecer? — ele arqueou uma sobrancelha, como se eu tivesse lhe entregue algo suspeito. — Não vai te matar — garanti com um sorriso. — Estamos almoçando — ele me lembrou, olhando ao redor. — E se eles virem isso? — Não existe nenhuma lei contra bolinhos, existe? — perguntei, erguendo uma sobrancelha em desafio. — Trazer comida de fora pra dentro de um restaurante... — ele tentou argumentar. Balancei a cabeça com um suspiro. — Tinha uma caixa enorme deles no hospital. Achei que você fosse gostar de um. — Ok — ele cedeu, colocando o bolinho de lado com falsa indiferença. Não passou nem dois minutos e ele já estava desdobrando o papel pelas laterais, quebrando o bolinho em pedacinhos com os dedos. Sabia que ele não resistiria. Já estava marcado: melhor amigo. Quinn trabalhava na universidade, eu no hospital. Nossos locais de trabalho ficavam a cinco quarteirões um do outro, então tentávamos almoçar juntos sempre que possível. Infelizmente, minha escala me mantinha ausente a maior parte do tempo. Não havia pausas regulares durante os plantões. Eu não podia simplesmente pedir para os pacientes esperarem enquanto eu saía para um café com meu amigo. Quinn entendia. Nunca reclamava. Escolhíamos esse café porque era conveniente pra ele. Se eu não aparecesse, ele comia e voltava pro trabalho sem drama. Era exatamente isso que me fazia valorizar tanto nossa amizade. — Ele não vai manter o cargo por muito tempo — disse Quinn de repente. Percebi que tinha me distraído. Tentei rebobinar a conversa mentalmente, mas não consegui. Sabia que a universidade vivia cheia de política interna. Imagino que ele estivesse falando de algum professor ou coordenador em apuros. Durante minha pós-graduação, achei que minha vida era corrida. Mas hoje vejo que tive sorte. Como médico, eu podia definir meu próprio horário. Trabalhava no hospital, mas também tinha meu consultório. Não dependia de mais ninguém para pagar as contas — e definitivamente não precisava ficar em pé de guerra com um reitor. Deixei Quinn continuar falando. Sabia que ele não tinha muita gente com quem dividir essas frustrações. Eu era o ombro certo — imparcial, confiável. Mas um momento depois, precisei interrompê-lo. — Tá vendo aquelas meninas ali? — perguntei, inclinando o queixo discretamente em direção à mesa ao lado. Quinn parou no meio da frase e virou o rosto, tentando acompanhar meu olhar. — Não olha de uma vez — eu adverti. — Você quer que eu olhe ou não? — ele perguntou com ironia. — Olha... mas sem parecer que tá olhando — sussurrei. Ele revirou os olhos e me mostrou o dedo do meio, me fazendo rir. Eu não conseguia desviar o olhar das duas mulheres sentadas à mesa. Pareciam amigas de longa data. Uma era loira, a outra morena, ambas jovens, talvez na faixa dos vinte e poucos anos. A morena estava mais visível de onde eu estava. Ela falava sobre o emprego — era babá de uma família rica da região de Dublin. Pelo sotaque, percebi que era americana. Conheci muitos americanos no hospital. Médicos de intercâmbio, estudantes, residentes. A maioria era simpática. Diferente da fama que os filmes davam, nunca encontrei um que fosse grosseiro ou egocêntrico. Pensei que talvez ela tivesse vindo da Califórnia, ou quem sabe de Nova York. Estava curioso. Quinn finalmente conseguiu espiar discretamente e me lançou um sinal com o polegar. Balancei a cabeça negativamente. — Ela é muito jovem pra mim — murmurei, meio decepcionado. — Bobagem — retrucou ele. — O que eu teria pra conversar com ela? — questionei, mais pra mim mesmo. — E quem disse que você precisa conversar? — ele rebateu, dando um sorrisinho malicioso. Lancei um olhar fulminante para ele. Quinn era mais impulsivo do que eu. Dormia com quem queria, quando queria. Não se importava com trivialidades como "o que ela pensa sobre política externa" ou "quais são os hobbies de infância dela". Segundo ele, se a atração existia, não precisava de muito mais. Às vezes, eu o invejava. Era tudo tão simples na cabeça dele. Já eu, complicava tudo com essa mania de querer conhecer a pessoa antes de dar o próximo passo. Quinn era bissexual, e me contou isso há anos. Uma vez ele até disse, brincando (ou não), que se eu desse mole, ele me levaria pra cama. Respondi que era uma honra, mas que não ia rolar. Depois disso, nunca mais tocamos no assunto. Eu respeitava quem ele era — e ele me respeitava de volta. — Vai lá falar com ela — Quinn me encorajou. — Não posso — respondi. — Claro que pode. O que você tem a perder? — Não é medo — insisti. — Então deixa que eu vou — ele ameaçou, com um brilho travesso nos olhos. — Não. Deixa elas em paz — rosnei, protetor. — Como quiser — ele deu de ombros. — Um dia a gente ainda vai ter sinal, você vai ver. Olhei em volta, procurando a garçonete. Ela havia voltado para dentro, deixando todos os clientes à própria sorte. A maioria já estava comendo, e percebi que Quinn tinha razão: provavelmente deveríamos pedir algo também. Se eu voltasse ao trabalho sem colocar nada no estômago, sabia que me arrependeria mais tarde. Assim que a garçonete reapareceu, fiz um sinal para ela se aproximar. Se ela notou o bolinho na mesa, não comentou. — Um Uísque— disse Quinn. — Faça dois — pedi em seguida. — Dois uísques — ela repetiu, anotando no bloquinho sem levantar os olhos. — Acho que fui eu que monopolizei a conversa até agora — comentou Quinn. — E você? O que está acontecendo? — Nada demais — respondi, tentando soar convincente. Mas a verdade é que eu não conseguia tirar os olhos daquela garota. Havia algo nela que me despertava um instinto profundamente protetor. Talvez fosse o formato delicado do queixo, ou o nariz pequeno e arrebitado. Fosse o que fosse, eu não parava de imaginar como seria tê-la nos braços, protegê-la de tudo. Quinn acenou a mão na frente do meu rosto. — Você tá caidinho. — Talvez — admiti, sem negar. Forcei-me a desviar o olhar. A última coisa que eu queria era que ela percebesse que estava sendo observada. Um momento depois, ela e a amiga começaram a se levantar. As duas olharam para seus celulares por um instante e, como se estivessem brincando de “passa e repassa”, digitaram algo nos aparelhos uma da outra e devolveram. Percebi, então, que talvez eu tivesse me enganado sobre a natureza da relação delas. Não pareciam amigas antigas — pareciam estar se conhecendo agora. Observei discretamente enquanto elas se movimentavam, passando pela nossa mesa e depois por outra. A morena — a que me chamara atenção — quase roçou o quadril no meu braço ao passar. Por um segundo, juro que senti o tecido do jeans dela deslizar levemente contra a manga da minha camisa. Uma espécie de música muda, só para mim. E então, ela se foi. Fiquei sentado em silêncio com meu melhor amigo, sentindo uma pontada de frustração. Provavelmente, nunca mais a veria. Quinn estava certo — eu deveria ter dito algo. Qualquer coisa. Mas me contive. Eu era mais velho. O que teríamos em comum? Ela era babá; eu, médico. Pareciam dois mundos. Um abismo. Quinn sempre dizia que isso não importava. Se há atração, o resto se resolve depois. Talvez ele estivesse certo, e eu estivesse me prendendo demais às ideias de diferença, responsabilidade, idade, papéis... Se eu soubesse, se tivesse a menor pista de que ela também estava interessada, talvez tivesse jogado a cautela ao vento. Talvez tivesse me levantado e dito algo simples como “Oi”. Mas agora era tarde demais. Minha chance — se é que houve uma — tinha ido embora com ela. Voltei-me para Quinn e contei os detalhes da minha última crise no hospital. Não deveríamos falar sobre os pacientes, claro, mas todo mundo falava. Sem nomes, sem dados pessoais. Só o suficiente para desabafar, para colocar pra fora. Quinn me ouvia atentamente, como sempre. Quando nossos sanduíches chegaram, ele pegou o dele e disse: — Queria ter a sua vida. — Eu estava pensando exatamente a mesma coisa — respondi, mordendo o meu. — Eu trocava com você agora mesmo — provocou ele, com um sorriso de canto. — Pode apostar — falei, e não estava brincando. Se eu tivesse metade da ousadia do Quinn, largaria aquele emprego difícil na universidade. Ele tinha dinheiro suficiente para não precisar daquilo. Se fosse eu no lugar dele, usaria o tempo para viajar, conhecer mulheres interessantes... viver. Claro, teria que lidar com o fato de que ele também dormia com homens, mas, sinceramente? Nem isso parecia um obstáculo tão grande diante da liberdade que ele possuía. Se estivéssemos num filme barato de comédia, seria agora que um bolinho da sala de descanso lançaria um feitiço e trocaria nossos corpos. Mas estávamos na vida real. Cada um com suas escolhas — e suas consequências. Terminamos o almoço, pagamos a conta e nos despedimos. Voltei caminhando para o hospital sem pressa, ainda pensando naquela mulher. Aquela desconhecida de olhos vivos e voz calma. Aquela que, por um breve instante, me fez desejar que minha vida fosse diferente. Talvez ela nem ligasse para a diferença de idade. Talvez me achasse interessante. Talvez... Mas não adiantava se perder em suposições. O momento tinha passado. Eu tinha pacientes esperando, e só algumas horas do dia para resolver tudo o que precisava ser feito. Ainda assim, por um tempo, fiquei torcendo para vê-la de novo. Mesmo sabendo que provavelmente não aconteceria.
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