"Lua de Mel com Estátua de Arma"

1313 Words
Layla A noite chegou sem pedir licença. Deslizou sorrateira pelas bordas das janelas, escurecendo o céu com uma pressa que não me consultou, como tudo nesta semana. As cortinas pesadas foram puxadas por mãos femininas que não me pertencem — mãos rápidas, discretas, quase sem rosto — que desapareceram assim que os primeiros sinais da escuridão tocaram o horizonte. Mulheres-fantasma. Silenciosas como tradições antigas. Eficientes como segredos que a gente finge aceitar. As luzes do quarto se acendem devagar, tímidas, projetando uma penumbra dourada que dança nas paredes como uma lembrança morna de romance. Quase romântica. Quase. Se não fosse pelo fato de que eu estou sentada no meio da cama, com os joelhos dobrados, os cabelos em guerra e uma camiseta de marca que parece ter sido feita sob medida para humilhar minha conta bancária. Improvisado seria elogio. É um pijama de emergência, arrancado do closet real, e que provavelmente custa mais que meu notebook inteiro parcelado em doze vezes. Ah, e claro... estou segurando com as duas mãos uma estátua de mármore em forma de falcão imperial. Com força. Com intenção. Com um propósito que beira o homicídio legítimo. Elegante. Simbólica. Tradicionalíssima. E perfeitamente funcional para dar na cabeça de um príncipe abusado, caso ele entre aqui achando que essa noite vai ter “lua de mel”. — Tenta, Khaled. Vem com esse teu cheirinho de mogno e ego inflado. Vem tranquilo — murmuro, quase num tom de reza invertida, o olhar fixo na porta. — Vai sair daqui com uma águia entalada na testa. Porque uma coisa é casar-me à força, sob acordos políticos e olhares vazios. Outra, completamente diferente, é alguém achar que isso vem com “benefícios conjugais”. Como se meu corpo estivesse incluído na cláusula cinco do contrato. Até parece. Tô armada, tô indignada e, pra completar, tô com TPM. Que Allah tenha piedade dele. Porque eu não vou ter. O ar do quarto parece mais denso agora. Carregado. Há um silêncio denso que pesa sobre meus ombros como um manto. O tipo de silêncio que antecede desastres naturais... ou visitas inesperadas de sogras intrometidas. Eu conheço esse clima. Essa quietude traiçoeira. E estou pronta. Um olho na porta, outro na janela. Já revisei a rota de fuga três vezes. Pular da varanda, cair na areia, correr com o vento cortando o rosto. Posso morrer desidratada no deserto? Sim. Mas vou morrer com dignidade. Ou com a estátua ainda nas mãos. Minhas costas doem. Minhas pálpebras pesam. Mas me recuso a dormir. Não agora. Não enquanto ele ainda for uma possibilidade. Porque sei que ele vai aparecer. Homens como Khaled sempre aparecem. No momento exato em que a gente baixa a guarda. Ele tem cara de quem resolve tudo no grito... e no perfume. Aqueles que não pedem licença nem pra existir. Que confundem silêncio com aceitação. Que acham que o desconforto de uma mulher é só charme m*l interpretado. E então, o trinco gira. Devagar. A maçaneta gira como um aviso sussurrado. Ahá. Meu corpo inteiro entra em estado de guerra. Aperto mais firme a base da estátua, sem fazer barulho. Minhas pernas se preparam para um pulo. Minha respiração trava. A porta se abre. As luzes do corredor lançam um fio de claridade antes de sumirem com o clique. E como previsto, lá está ele. A própria desgraça em forma de príncipe. Camisolão de linho branco, aberto no peito — claro, porque modéstia não é parte da realeza. O cabelo bagunçado, mas de propósito. A barba por fazer, desenhada com a precisão de quem sabe o que faz com um espelho. E a expressão blasé de quem acredita ser bem-vindo em qualquer lugar, inclusive no inferno. A desgraça ainda tem carisma. — Layla — ele fala, com aquela voz que parece comercial de perfume importado. Baixa, profunda, escorregadia. — Espero que esteja confortável. — Tenta de novo — respondo, erguendo a estátua até a altura do peito. — Mas com mais sinceridade dessa vez. Ele entra. Como se nada o ameaçasse. Como se eu, a estátua, o universo — tudo fosse só uma composição estética para o seu ego desfilar. — Você é mais dramática do que eu imaginava — comenta, como se estivesse avaliando o valor artístico da tapeçaria. — E mais teimosa também. Dou dois passos para trás na cama. Meus joelhos afundam no colchão, mas mantenho a postura. O falcão continua comigo. — E você é mais ridículo do que eu pensava. Parabéns, Khaled, ultrapassou todas as metas de babaca do mês. Ele ergue uma sobrancelha. Inatingível. Sempre inatingível. Nem a ameaça de traumatismo craniano parece furar sua bolha de superioridade. — Está mesmo disposta a me agredir? — Você está disposto a invadir o espaço de alguém que claramente não quer a sua presença? — Eu sou seu marido. — Você é um acidente diplomático com pernas! Ele sorri. Um meio sorriso. Tortuoso, vagamente charmoso, do tipo que acende incêndios onde só havia fumaça. E isso me dá ainda mais vontade de jogar a primeira coisa que encontrar. De preferência, pontuda. Aquele homem é uma praga. Uma praga bonita, alta, com mãos grandes e voz grave. O tipo que o corpo da gente responde antes do cérebro terminar de gritar “cuidado!”. E isso... isso é perigoso. Ele se aproxima. Lento. Calculado. Como um animal selvagem que já marcou território. — Não se preocupe, Layla — diz, e a voz dele agora é quase um sussurro, escorregando pelos cantos do quarto. — Eu não vou te tocar esta noite. Esta noite. A forma como ele diz isso. Como se o tempo fosse só um detalhe. Como se eu fosse apenas impaciente. Como se o futuro já estivesse decidido e ele fosse apenas... gentil com meu presente. — Eu não sou um predador — continua, com os olhos fixos nos meus. — Só gosto de lembrar que posso pegar o que é meu. Quando eu quiser. — Pena que eu não sou um vaso da sua coleção — rebato, a voz firme, mesmo que minhas pernas já tenham perdido completamente o argumento. Ele para. Me observa com mais atenção. Como se algo em mim tivesse mudado. Como se eu tivesse crescido diante dele, mesmo com os ombros tensos e a estátua tremendo nas mãos. E isso me irrita. Me desnorteia. Me desmonta. — Você tem um fogo... perigoso. Mas divertido. — Você tem um ego... cancerígeno. Mas dá para operar. Ele ri. Aquele riso curto, abafado, rouco. De quem não leva nada a sério, nem o caos que deixa no rastro. E sim... se eu não estivesse com tanta raiva, talvez sorrisse também. — Está armada com uma estátua — ele aponta com o queixo. — Tem coragem. Isso me agrada. — Tem bom gosto também. A estátua é linda. Vai deixar sua testa bem decorada. — Boa noite, Layla. Ele se vira. Como se tivesse ganho. Como se tivesse deixado sua marca ali, no ar, no chão, na minha pele. Mas antes de sair, ele lança aquele olhar por cima do ombro. Aquele maldito olhar que vem com um leve arquear de sobrancelha e pausa — claro que pausa — bem nas minhas pernas descobertas. — Bonita escolha de pijama. Delicada. Provocante. Mesmo sem querer. Amanhã terá a escolha de alguns vestidos. Quero você linda e apresentável ao meu lado. E agradeça aos céus... há mulheres que fariam qualquer coisa para estar no seu lugar. A porta se fecha com um clique que ecoa pelo quarto inteiro. Eu respiro. Ofegante. Tremendo. Filho da... Por que ele é tão... tão tudo? — Desgraçado bonito — murmuro, ainda agarrada à estátua como se fosse meu talismã. E sim... vou dormir com ela debaixo do travesseiro. Porque amanhã ele pode voltar. “E se voltar… vai ser recebido com essa estátua no meio da testa. Com carinho.”
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