O RECOMEÇO DE MALU

1456 Words
O tempo havia seguido seu curso com a suavidade de uma maré calma. Já não existiam gritos nas madrugadas, nem olhos espreitando pelas janelas. O passado de dor e fuga de Laura e Malu havia se transformado em lembrança distante, uma história que o tempo foi apagando aos poucos — embora jamais esquecida. Quinze anos haviam se passado desde aquela noite terrível em que Eduardo perdeu a vida e a paz finalmente pousou sobre as duas. Agora, Malu tinha trinta anos e vivia em Antália, uma cidade costeira na Turquia que parecia ter sido desenhada para a paz. As ruas de pedra, o som das ondas quebrando nas rochas e o cheiro do mar formavam o cenário perfeito para a nova vida que ela havia construído. A mulher que nasceu das cinzas Malu crescera sob a sombra do medo, mas também sob a luz do amor incondicional da mãe. Laura lhe ensinou o valor da coragem, a força da bondade e o poder de recomeçar. Ela estudou com afinco, formou-se em Psicologia, especializando-se em traumas e recuperação emocional. Talvez, inconscientemente, buscasse curar nos outros as dores que um dia teve. Laura, agora com quase cinquenta anos, administrava uma pequena pousada à beira-mar, cercada de flores, livros e memórias boas. As duas moravam perto, mas Malu tinha sua própria casa, um pequeno sobrado branco com varandas cheias de buganvílias roxas que desciam em cachos coloridos. Todos os dias, antes de ir para o consultório, Malu passava para tomar café com a mãe. Era o ritual que as mantinha conectadas. — Você ainda faz o café mais gostoso do mundo — dizia Malu, sorrindo. — E você ainda reclama da vida sem precisar — respondia Laura, com um riso leve. Essas pequenas rotinas eram o bálsamo que sustentava ambas. O vazio discreto Apesar de ter uma vida tranquila e respeitada, algo ainda faltava em Malu. Ela tinha amigos, trabalho, estabilidade — mas não havia ainda sentido aquele amor que transformava, aquele olhar que parecia ver a alma. Às vezes, observava casais caminhando pela orla e se perguntava se aquele sentimento existia mesmo, ou se era apenas coisa de filme. Ela sempre dizia a si mesma que não precisava de ninguém para ser feliz — mas o coração, teimoso, insistia em sentir falta de algo. Laura percebia isso. Uma tarde, enquanto as duas caminhavam pela praia, a mãe lhe disse com carinho: — O amor chega quando a gente para de procurar, filha. Mas é preciso manter o coração aberto, entende? — Acho que o meu fechou há tempos — respondeu Malu, rindo sem graça. Laura segurou a mão dela. — O seu coração é o mais bonito que conheço. Ele só está guardando espaço para quem realmente mereça entrar. Malu sorriu, emocionada. Aquela frase ficaria ecoando por semanas em sua mente. O encontro inesperado Foi em uma tarde de verão, num café à beira-mar, que Malu o conheceu. O nome dele era Deniz, um arquiteto turco de trinta e três anos, que tinha acabado de se mudar de Istambul para Antália em busca de uma vida mais tranquila. Ele entrou no café distraído, com uma pasta de desenhos debaixo do braço e um olhar sereno que contrastava com o movimento ao redor. Quando os olhares se cruzaram, foi como se o tempo se suspendesse por um instante. — Posso me sentar aqui? — perguntou ele, com um sorriso tímido. — O resto das mesas está ocupado. — Claro — respondeu Malu, um pouco surpresa. A conversa começou banal, sobre o calor, o café e o mar. Mas aos poucos, as palavras foram se encaixando como se já se conhecessem há muito tempo. Deniz falava com calma, e seu olhar tinha uma profundidade tranquila, algo que fazia Malu se sentir em paz. Ele não perguntava demais, não forçava i********e. Apenas escutava — e isso, para ela, era novo. Nos dias seguintes, voltaram a se encontrar. Primeiro por acaso, depois de propósito. Caminhavam pela praia, trocavam livros, riam de bobagens. Laura logo percebeu que algo estava diferente. — Você anda sorrindo com os olhos — disse ela um dia. — Quem é ele? Malu corou. — Ninguém… só um amigo. — É sempre “só um amigo” até o coração entender que é amor — respondeu Laura, com aquele tom sábio que só o tempo traz. A cura do amor O relacionamento entre Malu e Deniz cresceu de forma serena, sem a pressa dos romances tempestuosos. Ele respeitava os silêncios dela, e ela admirava a sensibilidade dele. Era como se ambos entendessem que a verdadeira paixão nasce da paz, não da tormenta. Certa noite, sentados sob o luar na sacada da casa de Malu, ele disse: — Eu percebo que você já enfrentou muita dor. Dá pra ver nos seus olhos… mas também vejo força. Ela o olhou, tocada. — A dor ensina. Mas às vezes deixa marcas que demoram a cicatrizar. Deniz segurou a mão dela. — Eu não quero apagar nada do seu passado. Só quero te mostrar que o futuro pode ser leve. Aquelas palavras foram como um sopro de esperança. Pela primeira vez, Malu sentiu que podia confiar em alguém sem medo. Um novo começo Com o tempo, o amor se firmou. Deniz conheceu Laura, que o recebeu com olhos atentos, como toda mãe que deseja proteger a filha. Mas bastaram poucos minutos de conversa para que ela percebesse que aquele homem era diferente. — Ele tem o mesmo olhar que Emir tinha — disse Laura depois, emocionada. — Calmo, mas firme. Malu sorriu. — E eu me sinto segura com ele, mãe. Pela primeira vez, não tenho medo. Os meses seguintes foram repletos de momentos felizes. Malu e Deniz viajavam pela costa, visitavam ruínas antigas, tiravam fotos, riam como duas almas que haviam se encontrado depois de muito tempo perdidas. Em uma dessas viagens, nas ruínas de Éfeso, ele ajoelhou-se diante dela e disse: — Você é o lar que eu procurava. Quer casar comigo? Malu levou a mão à boca, os olhos marejados. — Sim… mil vezes sim. O vento quente da tarde os envolveu, e o eco da promessa parecia se misturar às antigas pedras do lugar, testemunhas silenciosas de um novo começo. O casamento O casamento foi simples, íntimo e cheio de emoção. A cerimônia aconteceu na praia, com o pôr do sol pintando o céu em tons de dourado e lilás. Laura chorava discretamente, orgulhosa e grata. Emir, que ainda mantinha contato com as duas, veio especialmente de Istambul para estar presente. Quando viu Malu vestida de branco, disse com os olhos brilhando: — Sua mãe venceu o medo… e você venceu a dor. Isso é o amor em sua forma mais pura. Malu o abraçou com carinho. — Você sempre foi parte da nossa família. Laura, ao ver a filha dizendo “sim”, sentiu o coração leve. Era como se todas as cicatrizes do passado se transformassem em flores. A vida renascida Anos depois, Malu e Deniz abriram juntos uma pequena clínica de terapia e design, unindo as paixões de ambos: o cuidado com o ser humano e a beleza dos espaços. Laura vivia perto, cuidando da pousada e dos netos — gêmeos, uma menina e um menino, com os olhos claros da mãe e o sorriso sereno do pai. O lar que um dia fora refúgio de medo agora era repleto de risos infantis, cheiro de bolo e música suave. Certa tarde, enquanto observava os netos brincando na areia, Laura olhou para o horizonte e sussurrou: — Obrigada, Deus. Por ter transformado nossa dor em força, e nossa fuga em liberdade. Malu se aproximou, abraçando-a por trás. — Mãe… tudo que sou, aprendi com você. Laura sorriu, as lágrimas escorrendo devagar. — E tudo que eu sonhei, vejo em você. O encerramento Naquela noite, enquanto o sol se punha lentamente, Malu sentou-se com Deniz na varanda, as crianças dormindo e o mar refletindo o brilho das estrelas. — Às vezes ainda sonho com o passado — disse ela, pensativa. — Mas já não sinto medo. Só gratidão. — Porque você venceu — respondeu ele. — E agora o amor é o que resta. Ela o olhou com ternura. — O amor e a paz. Deniz sorriu, beijando-lhe a testa. — E é tudo o que precisamos. Ao longe, o som das ondas se misturava ao riso suave das lembranças. O medo havia partido, o amor havia chegado, e a vida — essa mesma que um dia lhes roubou tanto — agora lhes devolvia em dobro o que tinham perdido. Laura observava pela janela, o coração cheio de paz. Sua filha era feliz, o passado estava enterrado, e a história delas enfim chegava ao merecido final feliz.
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