Santo Domingo

1644 Words
Capítulo- I. Santo Domingo. " O mundo guarda mais mistérios do que sabemos, homem que vira lobisomem, mulher que e bruxa, no final todos dizem que tudo isso são meras lendas. Não é quando você fica cara a cara com um." Jaylene Igarapé é uma cidade encantadora, porém não é conhecida por oferecer locais feitos para proporcionar diversão aos jovens. Aqui impera a tranquilidade e a riqueza de suas belezas naturais. Essa cidade é um ótimo refúgio para quem quer sair da correria das cidades grandes. Por aqui, as festas são em sua maioria de cunho religioso. Temos em janeiro a festa de São Sebastião, com procissão e missa; em junho, a festa do Divino Espírito Santo; em dezembro, a festa de Nossa Senhora da Conceição. E também o carnaval, com blocos na rua e muita folia. Mas esse último... se eu ousar pôr o pé na rua durante essa época, meu pai me tira o couro fora. Me olho no espelho, apreciando a formosura do vestido que ganhei da minha madrinha. Ele é amarelo, florido. Gosto dessa cor, acho que me deixa bonita. Vou até meu simples guarda-roupa de três portas, pego minha caixa de sapato e retiro dela a sandália de tiras finas, de cor marrom. Hoje é domingo, dia de ir à igreja. E como moramos bem longe do centro da cidade, no sítio da minha família, precisamos sair cedo, porque vamos de charrete e o caminho é bem comprido. Passo a mão pelo meu corpo, me sentindo bonita e, principalmente, ansiosa para encontrar Emílio. Meu pai não pode nem desconfiar que estamos trocando alguns olhares. Emílio é um moreno bonito, de sorriso largo. Não posso negar que, quando ele passa e olha para mim, sinto umas coisas estranhas dentro da minha barriga. Fico morta de vergonha, sequer consigo retribuir o olhar. Por isso, só dou pequenas olhadas de canto quando ele não está prestando atenção. — Vamos, Jaylene! Fica fazendo hora na frente desse espelho! — ouço minha mãe me apressar. — Não estou fazendo hora não, mãe, só penteando o cabelo. — digo, pegando o meu véu e saindo apressada do quarto. Quando chego à sala, meus irmãos estão sentados no sofá, devidamente trajados para a missa. Meu pai vem da cozinha com um copo de água gelada na mão. — Levem casacos, a noite é fria. — diz, apontando na direção dos meus irmãos e na minha. — Carece não, pai, a noite vai ser abafada. — responde Ranyel, erguendo-se do sofá. — Romero, tu guias a carroça. Da última vez, Ranyel deixou o cavalo escapar e me estragou o varão da carroça. — meu pai diz, ao terminar de engolir a água. Deixamos a nossa casa para trás. Subimos, minha mãe e eu, na charrete; meu pai guia com cuidado. Mesmo assim, devido aos buracos da estrada de chão, vamos sacudindo pelo caminho. — Senhor Domiço e Dona Leila venderam o sítio e compraram uma casa na cidade, homi. Tu bem podia fazer o mesmo. Daí a gente saía dessa lonjura. — ouço minha mãe comentar. É o sonho de Dona Marluce morar na cidade. — Faço isso e vamos viver de quê? Se ajuíza, mulhe! Aquele pedaço de chão é o nosso sustento e o dos nossos filhos. Este ano vai dar bom: as plantações tão bonitas que dá gosto. E, no final de ano, os leitões saem feito água. — Os meninos estão crescendo, Tião. Logo a gente cai velho e, morando naquela lonjura, vamos ficar esquecidos. — Envelhecer na roça é riqueza, Marluce. Não vê que o pessoal da cidade vem se embrenhar aqui atrás de paz? Vamos todo mundo orar e agradecer por termos o que eles não têm: paz. De repente, um barulho faz com que meu pai puxe as rédeas do cavalo. Ficamos procurando de onde vem o som, até que surge no céu um avião. Eu fico de boca aberta olhando a máquina. É raro uma dessas surgir por aqui, só acontece quando algum fazendeiro vem ver suas terras. — Quem será, Tião? — minha mãe pergunta, olhando a aeronave passar baixinho. — E eu que sei, mulhe? Deve ser algum fazendeiro. Quem sabe é o senhor Deodalto, da fazenda Campina Verde. — responde meu pai, espremendo os olhos na direção do bicho que passa por cima de nós. — Né não, pai. Ontem fui lá na cidade comprar umas coisas pra ajeitar o canto das galinhas e vi o senhor Deodalto passar na caminhonete com dona Chiquinha. — Ranyel fala, passando por nossa charrete. — É? Então não sei quem é. Deve de ser algum bacana da cidade, convidado de algum fazendeiro. Essa gente da cidade adora vir pra roça, dizem que é pra tirar o estresse. — Ouvi falar que são os Casper, os donos daquela fazenda que tem o casarão branco que fica lá pras bandas da Rua Arvoredo. Foi na mercearia do seu Túlio que o zum-zum-zum rodava de boca em boca. — completa Romero. — Casper? Quem são? — pergunto, curiosa. — Gente rica que nunca pisou aqui. Dizem que a fazenda foi comprada há muitos anos, reformaram tudo, mas nunca apareceram. Dona Mariquinha disse que são de fora do Brasil. — cochicha minha mãe, como se as pessoas do avião pudessem nos ouvir. — Deixa de ser boba, mulher! Cair na conversa daquela velha fofoqueira... Mariquinha, quando morrer, vai precisar de dois caixões: um pro corpo e outro pra língua. Agora vamos embora, que a missa nos espera. Não gosto de chegar atrasado. — meu pai coloca o cavalo pra andar, enquanto eu continuo olhando pra trás, vendo o avião seguir com suas luzes piscando, tão bonito. — Mãe, a senhora alguma vez andou de avião? É bom? — pergunto, curiosa. Tem que ter muita coragem pra ficar dentro de um bichão daqueles. — A única viagem que fiz foi de trem. Avião, nunca. E nem tenho coragem. Deus não deu asas pros humanos, só pernas. — responde, fazendo o sinal da cruz. A conversa morre pelo estradão. Chegamos na cidade com a noite deixando as estrelas brilharem no alto. Meus olhos percorrem a cidade iluminada, a praça cheia de jovens e algumas famílias, crianças correndo. É o povo se preparando para ir à missa. É a programação de domingo da região. — Pega o véu e cubra a cabeça, menina. Vamos honrar o nosso Senhor Jesus Cristo. — diz minha mãe. — Sim, mãe. — respondo, com um nervoso gostoso no estômago. Emílio disse que viria à igreja. Falou na terça-feira, quando foi até o sítio comprar ovos caipiras. Confesso que queria conversar mais, mas não pude: minha mãe apontou pro quintal e mandou eu entrar. — Que tanto você olha, menina? Tá procurando alguém, é? — meu pai estreita o olhar, desconfiado. — A Dudu... ela disse que viria à missa. — digo algo que não deixa de ser verdade, embora eu quisesse mesmo ver o Emílio. — Não gosto de você agarrada com essa Dudu. A menina é muito pra frente. — diz minha mãe, torcendo o bico. Mamãe encrencou com Dudu depois que viu a menina espichando os olhos pro Ranyel. E ele, que não é bobo, tratou de largar alguns beijos nela, escondido dos nossos pais e dos dela. Se essa história explode, as terras de Igarapé vão gemer. — Chega de conversa. É hora de entrar na casa de Deus. Vamos ter respeito. Concordamos e entramos quietos e silenciosos na Igreja Matriz de Santo Antônio. Atravessamos a faixa de pedestres e depois subimos os degraus, alcançando o interior do santo templo. E foi ao erguer a cabeça que senti meu coração balançar: sentado na segunda fileira de bancos, à direita, perto do corredor central, vi Emílio. Tive que conter o sorriso que ameaçava fugir e se instalar em meu rosto. Ontem, não dormi pensando nele. Emílio olha por cima do ombro bem no exato momento em que minha mãe me arrasta pela manga do vestido para sentarmos na fileira do lado oposto. A vergonha me cobre. No entanto, o sorriso que ganho de Emílio faz qualquer vergonha se anular. Sinto meu rosto aquecer. — Que raios tu tem, menina! Não tá me ouvindo? Senta logo! — recebo a repreensão da minha mãe. — Calma, não posso sair pisando nos pés dos outros, mãe. — Pede licença, Jaylene, e senta logo. Seu pai tá esperando, minha filha. Saio do torpor, me apresso em sentar. — Emílio tá aí, Ranyel. — diz meu pai, apontando na direção do amigo do meu irmão. — O senhor Jonas também. Ele esteve lá no sítio querendo ovo galado pra tirar pintinhos. Vai colocar na chocadeira. — completa. — Sei disso. Emílio tava construindo um galinheiro, ele me contou. — comenta meu irmão. — Esse menino é um rapaz de bem, bom igual aos pais. Vai ser um homem honrado. — diz minha mãe. Meu coração aquece. Sustento um sentimento por Emílio desde os meus treze anos. No entanto, nunca tive coragem de falar com ele. Alguns anos se foram e, no início deste ano, depois de sair da escola e ir pra casa, a corrente da minha bicicleta soltou e ficou presa entre a catraca. Não consegui soltá-la de forma alguma. Tive que empurrar a bicicleta; a roda travada fazia o peso ser maior. Foi quando Emílio vinha passando e me ajudou. Recordo que fiquei gelada, com os pulmões quase sem ar. E ali, no meio de uma estrada de terra, debaixo de uma árvore, nossos olhares se cruzaram pela primeira vez. Achei que fosse desmaiar com o tanto que meu coração bateu acelerado. Emílio me ajudou, trocamos algumas palavras e, quando subi na bicicleta, ganhei aquele beijo no rosto. Foi mágico. Desde então, estou sempre procurando pelos olhos dele. Emílio vai ser o meu namorado, noivo e marido. Pai dos meus filhos.
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