Capítulo- II. Alcova
" A sepultura de muitos está aberta enquanto seus corações ainda pulsam "
Cadu
O avião sobrevoa uma região pequena, na minha opinião, quase inóspita. Um novo refúgio — ou devo dizer que se enquadra em um novo esconderijo? Não sei o que me define melhor.
O que eu sinto sobre essa mudança? Nada. Não sinto nada. Há tempos não sei o que é ter escolhas ou vida social. Creio que seja melhor assim.
— A casa é grande e arejada, não sentirá diferença alguma do apartamento de São Paulo. — Olho na direção da minha mãe; ela sustenta um sorriso que não é verdadeiro, porque seus olhos espelham o nervosismo.
— Vou viver em ponte aérea, mas será melhor. Não podemos mais sustentar a vida que tínhamos. — Meu pai opina. — Aqui terá alguma liberdade, Cadu.
— Liberdade? — digo, erguendo uma sobrancelha.
— Sim, andar a cavalo, conhecer a fazenda, afinal, ela é sua. — Minha mãe completa.
— Igarapé é pequena, pode andar por aqui sem receio algum. Fazer amigos. — A esperança é algo que humilha.
— Não preciso e não quero amigos. — digo, seco.
O silêncio se instala dentro da aeronave.
Olho pela janela para um ponto cheio de casas com suas telhas cinzas, cor de barro, envolvidas por um maciço verde.
— Iremos pousar dentro de sete minutos. — avisa o piloto.
Meus pais não entendem que, por onde eu for, onde eu andar e viver, nada irá mudar. Continuarei sendo o mesmo.
Uma herança maldita, uma marca feita pela b***a e que se perpetua de geração em geração.
— Lugar bem propício, não acham? Para enterrar-me.
— Não diga besteiras, Cadu! Não vamos enterrar ninguém. Você vai viver.
— E quem garante isso? — pergunto com sarcasmo.
— Eu! Eu garanto! Eu, sua mãe, garanto que você vai viver. Viemos até aqui atrás de solução. — Solange esgazeia os olhos em minha direção.
— Meu problema não tem solução. A senhora sabe disso melhor do que eu. — rebato, seco, sem emoção na voz.
— Para todos os problemas há uma solução. — Erick arruma os óculos sobre a ponte do nariz e fala com propriedade.
Bufo, sabendo o que isso quer dizer.
— O que encontraram dessa vez? — indago, tendo conhecimento de que ambos se dedicam a pesquisas de múltiplas vertentes para poder encontrar alguma lacuna que possa ser a chave para a “solução” do meu “problema”.
Ambos se olham cúmplices. Dou um esgar de sorriso.
— Não encontraram, não é mesmo? Estão apenas testando alguma hipótese. Dando tiros no escuro, gastando suas forças em algo que não será resolvido.
Olho pela janela para a quantidade abastada de verde. Fecho meus olhos. “É um novo recomeço sem ter nada de novo.”
Nada vai mudar. Meu viver não tem sentido. Estou quase como um andarilho.
— Podíamos acabar com isso. Sabe que podíamos dar um fim e...
— Não! Eu não aceito isso! — minha mãe berra.
— Não tem que aceitar. Eu sofro, e vocês também. Esse seu querer está fazendo m*l a nós todos. Nada vai mudar, mãe. Essa vida que levo não tem sentido algum.
— Não mudou de opinião! Você é meu filho e, nessa desgraça de mundo, tem que existir uma saída! Tem que existir! Vai existir!
— Eu não creio. Somente palavras não me farão ter uma vida longínqua. Eu não sonho mais, não sinto o prazer que muitos têm de sonhar. Há muito deixei de fazê-lo.
Meu pai limpa as lágrimas que descem pelo rosto.
— Por amor a você, eu concordo que...
— Cala a boca, Erick! Cala a boca! Ou eu juro que jogo você para fora desse avião!
— Ele sofre, Solange, e isso está me arruinando como pai.
— E a mim, não? Me sinto culpada, entende? Culpada! No entanto, não vou perder meu filho, isso nunca!
Recebemos o aviso de pouso. Afivelo o cinto. O impacto das rodas na pista de barro é sentido; nossos corpos balançam.
Meu corpo, que aguenta tantas modificações, aguenta os estalos dos ossos debaixo da minha pele; meu estômago, que recebe de tudo quando minha mente não é minha e a racionalidade não importa.
— Chegamos!
Olho para minha mãe, retiro o apetrecho de segurança. Desembarcamos todos. Somos recebidos pelo caseiro e sua esposa. Ambos não têm filhos — isso foi meu pai quem comentou.
Meus olhos pairam no casal: gente simples. Ele usa uma calça bege cheia de remendos, camisa amarela desbotada com botões frontais e, na cabeça, um chapéu de feltro bem surrado. A mulher tem um lenço na cabeça, saia abaixo dos joelhos e camisa de algodão com estampa de flores.
Ele dá um passo, trazendo consigo um sorriso sertanejo no rosto. Ela mostra-se tímida, olhar no chão.
— Boas noites, sou o Cladeumar, o caseiro. — se apresenta, de forma que parece que meus pais não sabem quem ele é ou qual sua função dentro da fazenda.
— Boa noite, senhor Cladeumar. Recordo do senhor. Essa é minha esposa Solange e meu filho, Carlos Eduardo.
O homem estende a mão na direção da minha mãe e depois da minha.
Seu aperto é rápido, logo começa a falar sobre a fazenda e os demais funcionários.
Meu pai lhe dá total atenção. Estou olhando para o horizonte, sabendo que dentro de dias não tardará a lua cheia a preencher esse céu.
— Então? Gostou?
— Tem espaço. — falo, para não dizer que tanto faz, afinal, trocar de estado não muda em nada a vida cheia de aflições e agonias que temos.
— Vamos. Os carros chegam dentro de dois dias. Por enquanto teremos que usar o carro da fazenda.
Solange gesticula levemente com a cabeça na direção da caminhonete, que exibe um logo enorme no capô e nas portas.
— Dona Solange, essa é a minha esposa, Cremilda. — olho para a senhora que aparenta seus quarenta e poucos anos.
— Prazer, Cremilda. — ouço o nome estranho.
— Prazer é todo meu, dona Solange, seja bem-vinda. Limpei a casa inteira, abri pela manhã as janelas para tirar o cheiro de ambiente fechado. Fiz a janta — coisa simples, não sei dessas comidas chiques da cidade —, preparei com todo carinho.
— Nós agradecemos a atenção.
O sorriso de Solange em direção a Cremilda é amplo. Viro meu rosto, querendo mesmo é saber onde será a minha alcova de contenção.
Passo pelas duas, vejo que a mulher olha-me, perdendo o brilho do sorriso. Entro na caminhonete e fecho a porta.
Puxo uma respiração profunda. A noite avança e, com ela, o findar de mais um dia e a aproximação de outro, que deixará cada vez mais perto a virada.
Recosto a minha cabeça no encosto.
— Poderia ter sido um pouco educado, Cadu. — ouço a voz de Solange.
Sorrio sem humor.
— Ser educado para, em qualquer noite, eu os ferir? Quero distância de qualquer pessoa. — deixo claro, com tom seco, qual é o meu desejo.
— Não fale isso! Quer que eles ouçam? Sinceramente, Cadu! — a repreensão vem cheia de medo.
— Não será preciso. Em breve, esse povoado no meio do nada irá falar sobre mim. — meu olhar frio fixa-se nos de minha mãe.
Ela engole em seco. Eu retorno à posição em que estava anteriormente.
— É assim que as feras são: chegam de mansinho e, se tiver uma porta aberta, sem ferrolho, o caos está feito.
— Cadu!
Suspiro. O olhar dela não mente; teme que eu seja descoberto. Teme que eu trilhe os mesmos passos de outros que vieram antes de mim.
Ouço o barulho da conversa se aproximando, depois o som de portas sendo abertas. Abro levemente as pálpebras: a mulher do caseiro senta-se ao meu lado.
— Fica assim não, menino. Sei que deixar aquela cidade bitelona que é São Paulo não deve estar sendo fácil pro rapaz...
Era só o que me faltava: alguém querendo puxar conversa.
Olho em sua direção.
— Deve ter deixado alguma namorada e amigos, mas aqui os rapazes são de bem, são gente simples. Tenho certeza de que o menino vai se enturmar. As danadinhas de Igarapé são bonitas, vai arrumar prenda rapidim.
— Não tenho interesse em me enturmar com caipiras, e duvido muito que alguma matuta dessa região esteja à altura do meu gosto.
A mulher perde a cor da face; a palidez é notória. Rapidamente desvia o olhar, virando a cabeça em direção à janela que está ao seu lado.
“Não gosto de pessoas intrusas.”