Alcova.

1438 Words
Capítulo- II. Alcova " A sepultura de muitos está aberta enquanto seus corações ainda pulsam " Cadu O avião sobrevoa uma região pequena, na minha opinião, quase inóspita. Um novo refúgio — ou devo dizer que se enquadra em um novo esconderijo? Não sei o que me define melhor. O que eu sinto sobre essa mudança? Nada. Não sinto nada. Há tempos não sei o que é ter escolhas ou vida social. Creio que seja melhor assim. — A casa é grande e arejada, não sentirá diferença alguma do apartamento de São Paulo. — Olho na direção da minha mãe; ela sustenta um sorriso que não é verdadeiro, porque seus olhos espelham o nervosismo. — Vou viver em ponte aérea, mas será melhor. Não podemos mais sustentar a vida que tínhamos. — Meu pai opina. — Aqui terá alguma liberdade, Cadu. — Liberdade? — digo, erguendo uma sobrancelha. — Sim, andar a cavalo, conhecer a fazenda, afinal, ela é sua. — Minha mãe completa. — Igarapé é pequena, pode andar por aqui sem receio algum. Fazer amigos. — A esperança é algo que humilha. — Não preciso e não quero amigos. — digo, seco. O silêncio se instala dentro da aeronave. Olho pela janela para um ponto cheio de casas com suas telhas cinzas, cor de barro, envolvidas por um maciço verde. — Iremos pousar dentro de sete minutos. — avisa o piloto. Meus pais não entendem que, por onde eu for, onde eu andar e viver, nada irá mudar. Continuarei sendo o mesmo. Uma herança maldita, uma marca feita pela b***a e que se perpetua de geração em geração. — Lugar bem propício, não acham? Para enterrar-me. — Não diga besteiras, Cadu! Não vamos enterrar ninguém. Você vai viver. — E quem garante isso? — pergunto com sarcasmo. — Eu! Eu garanto! Eu, sua mãe, garanto que você vai viver. Viemos até aqui atrás de solução. — Solange esgazeia os olhos em minha direção. — Meu problema não tem solução. A senhora sabe disso melhor do que eu. — rebato, seco, sem emoção na voz. — Para todos os problemas há uma solução. — Erick arruma os óculos sobre a ponte do nariz e fala com propriedade. Bufo, sabendo o que isso quer dizer. — O que encontraram dessa vez? — indago, tendo conhecimento de que ambos se dedicam a pesquisas de múltiplas vertentes para poder encontrar alguma lacuna que possa ser a chave para a “solução” do meu “problema”. Ambos se olham cúmplices. Dou um esgar de sorriso. — Não encontraram, não é mesmo? Estão apenas testando alguma hipótese. Dando tiros no escuro, gastando suas forças em algo que não será resolvido. Olho pela janela para a quantidade abastada de verde. Fecho meus olhos. “É um novo recomeço sem ter nada de novo.” Nada vai mudar. Meu viver não tem sentido. Estou quase como um andarilho. — Podíamos acabar com isso. Sabe que podíamos dar um fim e... — Não! Eu não aceito isso! — minha mãe berra. — Não tem que aceitar. Eu sofro, e vocês também. Esse seu querer está fazendo m*l a nós todos. Nada vai mudar, mãe. Essa vida que levo não tem sentido algum. — Não mudou de opinião! Você é meu filho e, nessa desgraça de mundo, tem que existir uma saída! Tem que existir! Vai existir! — Eu não creio. Somente palavras não me farão ter uma vida longínqua. Eu não sonho mais, não sinto o prazer que muitos têm de sonhar. Há muito deixei de fazê-lo. Meu pai limpa as lágrimas que descem pelo rosto. — Por amor a você, eu concordo que... — Cala a boca, Erick! Cala a boca! Ou eu juro que jogo você para fora desse avião! — Ele sofre, Solange, e isso está me arruinando como pai. — E a mim, não? Me sinto culpada, entende? Culpada! No entanto, não vou perder meu filho, isso nunca! Recebemos o aviso de pouso. Afivelo o cinto. O impacto das rodas na pista de barro é sentido; nossos corpos balançam. Meu corpo, que aguenta tantas modificações, aguenta os estalos dos ossos debaixo da minha pele; meu estômago, que recebe de tudo quando minha mente não é minha e a racionalidade não importa. — Chegamos! Olho para minha mãe, retiro o apetrecho de segurança. Desembarcamos todos. Somos recebidos pelo caseiro e sua esposa. Ambos não têm filhos — isso foi meu pai quem comentou. Meus olhos pairam no casal: gente simples. Ele usa uma calça bege cheia de remendos, camisa amarela desbotada com botões frontais e, na cabeça, um chapéu de feltro bem surrado. A mulher tem um lenço na cabeça, saia abaixo dos joelhos e camisa de algodão com estampa de flores. Ele dá um passo, trazendo consigo um sorriso sertanejo no rosto. Ela mostra-se tímida, olhar no chão. — Boas noites, sou o Cladeumar, o caseiro. — se apresenta, de forma que parece que meus pais não sabem quem ele é ou qual sua função dentro da fazenda. — Boa noite, senhor Cladeumar. Recordo do senhor. Essa é minha esposa Solange e meu filho, Carlos Eduardo. O homem estende a mão na direção da minha mãe e depois da minha. Seu aperto é rápido, logo começa a falar sobre a fazenda e os demais funcionários. Meu pai lhe dá total atenção. Estou olhando para o horizonte, sabendo que dentro de dias não tardará a lua cheia a preencher esse céu. — Então? Gostou? — Tem espaço. — falo, para não dizer que tanto faz, afinal, trocar de estado não muda em nada a vida cheia de aflições e agonias que temos. — Vamos. Os carros chegam dentro de dois dias. Por enquanto teremos que usar o carro da fazenda. Solange gesticula levemente com a cabeça na direção da caminhonete, que exibe um logo enorme no capô e nas portas. — Dona Solange, essa é a minha esposa, Cremilda. — olho para a senhora que aparenta seus quarenta e poucos anos. — Prazer, Cremilda. — ouço o nome estranho. — Prazer é todo meu, dona Solange, seja bem-vinda. Limpei a casa inteira, abri pela manhã as janelas para tirar o cheiro de ambiente fechado. Fiz a janta — coisa simples, não sei dessas comidas chiques da cidade —, preparei com todo carinho. — Nós agradecemos a atenção. O sorriso de Solange em direção a Cremilda é amplo. Viro meu rosto, querendo mesmo é saber onde será a minha alcova de contenção. Passo pelas duas, vejo que a mulher olha-me, perdendo o brilho do sorriso. Entro na caminhonete e fecho a porta. Puxo uma respiração profunda. A noite avança e, com ela, o findar de mais um dia e a aproximação de outro, que deixará cada vez mais perto a virada. Recosto a minha cabeça no encosto. — Poderia ter sido um pouco educado, Cadu. — ouço a voz de Solange. Sorrio sem humor. — Ser educado para, em qualquer noite, eu os ferir? Quero distância de qualquer pessoa. — deixo claro, com tom seco, qual é o meu desejo. — Não fale isso! Quer que eles ouçam? Sinceramente, Cadu! — a repreensão vem cheia de medo. — Não será preciso. Em breve, esse povoado no meio do nada irá falar sobre mim. — meu olhar frio fixa-se nos de minha mãe. Ela engole em seco. Eu retorno à posição em que estava anteriormente. — É assim que as feras são: chegam de mansinho e, se tiver uma porta aberta, sem ferrolho, o caos está feito. — Cadu! Suspiro. O olhar dela não mente; teme que eu seja descoberto. Teme que eu trilhe os mesmos passos de outros que vieram antes de mim. Ouço o barulho da conversa se aproximando, depois o som de portas sendo abertas. Abro levemente as pálpebras: a mulher do caseiro senta-se ao meu lado. — Fica assim não, menino. Sei que deixar aquela cidade bitelona que é São Paulo não deve estar sendo fácil pro rapaz... Era só o que me faltava: alguém querendo puxar conversa. Olho em sua direção. — Deve ter deixado alguma namorada e amigos, mas aqui os rapazes são de bem, são gente simples. Tenho certeza de que o menino vai se enturmar. As danadinhas de Igarapé são bonitas, vai arrumar prenda rapidim. — Não tenho interesse em me enturmar com caipiras, e duvido muito que alguma matuta dessa região esteja à altura do meu gosto. A mulher perde a cor da face; a palidez é notória. Rapidamente desvia o olhar, virando a cabeça em direção à janela que está ao seu lado. “Não gosto de pessoas intrusas.”
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