Palavras no papel.

1760 Words
Capítulo- III. Palavras no papel. " Nenhum coração é feito de papel, nenhuma boca é ponta de caneta, mas o coração escreve todas as palavras que a boca deixa escapar." Jaylene Olho para o caderno onde desenhei um coração, com o nome de Emílio e o meu dentro dele. Suspiro, encantada. Ontem, depois da missa, minha mãe não me deixou colocar o rosto para fora da igreja, a não ser para voltarmos para casa. Fiquei inquieta ao ver Fabiana se aproximar de Emílio. Fabiana, além de ser minha prima, tem inveja de mim. Não me esqueço que, no Natal do ano passado, meu pai me comprou um conjunto cor-de-rosa de saia e blusa. Ela estava aqui com a tia Rosa, não teve como — a menina viu meu presente, porque meu pai é desses que, quando presenteia alguém, gosta que a pessoa abra o embrulho na frente dele. Meu pai diz que o prazer dele é ver nos olhos da pessoa o brilho da felicidade em ganhar algo dado de coração. Eu fiquei muito feliz, estava querendo muito uma roupa daquela cor. Pois bem, quando fui para a escola, a Fabiana esteve aqui e inventou para minha mãe que iria pegar algo no meu quarto que tinha me emprestado e que eu não devolvi. Minha mãe deixou a menina entrar. Fabiana estourou uma caneta azul em cima do meu conjunto, manchou a roupa com tinta azul. Chorei tanto quando cheguei e encontrei o conjunto enrolado e jogado no fundo da gaveta. Minha mãe, nervosa, foi bater na casa da tia Rosa, que defendeu Fabiana com unhas e dentes. Quem ficou no prejuízo fui eu, que perdi a roupa. Desde então, minha mãe não fala com tia Rosa, que é irmã do meu pai, e eu desvio o caminho quando vejo Fabiana. Amargo ao lembrar da cena dela encostando a cabeça no ombro dele. Sobe uma gastura danada! — Oh de casa! — escuto a voz da Dudu. Pulo da cama, me aproximo da janela e vejo a menina parada perto da cerca, apoiada na bicicleta. Corro porta afora. — Melhorou da cólica, dona Jaylene?! Para ir à aula era um “ai, ai, ai” daqui e de lá, agora para ficar de prosa com a tal Dudu não sente dorzinha nenhuma, não é? — minha mãe ralha, conforme passa pela cozinha. — Mãe, o remédio fez efeito. Poxa, a senhora sabe que eu não gosto de caçar aula — digo, calçando o chinelo. — Acho bom, dona Jaylene! Acho bom! Corro pelo quintal na direção do portão. Me aproximo, afobada. — Oi, Dudu! — digo, sorrindo e me aproximando da minha amiga. Dou um abraço na menina. — Você não foi à escola, vim aqui saber se está tudo bem — pergunta, esticando o pescoço, procurando por meu irmão. — Te aquieta, Dudu, meu irmão não está aí. Estão na roça — digo, apontando para um tronco que fica debaixo do pé de jamelão, na lateral esquerda da casa. Dudu empurra a bicicleta enquanto seguro o portão de madeira. Assim que ela passa, fecho o portão e a acompanho para baixo da sombra da árvore. Dudu abaixa o descanso da bicicleta, enquanto arrumo o vestido para me sentar no tronco. Algumas galinhas estão soltas pelo quintal, ciscando. — Menina, tu viu a tua prima toda danada pra cima de Emílio? — comenta, depois de se sentar ao meu lado. Pego uma folha seca no chão e corto-a em pequenos pedaços com minhas unhas. — Nem me fale! Fiquei com tanta raiva — comento, remoendo as lembranças. — Pensei que tu ia falar alguma coisa com a oferecida — olho na direção de Dudu. — Você só pode estar sem juízo, Dudu. Se eu fizesse escândalo dentro da igreja e por causa de homem, meu pai ia arrancar o meu couro — espicho os olhos para não ser pega falando sobre Emílio. — Eu não deixaria! Furaria os olhos daquela fulana de r**o quente. Sabe que o nome da sua prima rola na boca dos outros feito bala na boca de banguelo — rio com o comentário de Dudu. — Tia Rosa diz que é fofoca desse povo mexeriqueiro — fecho os olhos para sentir a brisa balançar meus cabelos. O cheiro das flores dos pés de laranja perfuma o ar. — Claro que vai dizer, é filha dela e... olha, Jaylene, um helicóptero! — Dudu corre para a beira da cerca para mirar a máquina voadora. Me aproximo devagar da cerca de arame farpado. — Ontem vimos um avião quando íamos para a igreja — comento, vendo a máquina sobrevoar ao longe. — É, o povo de Igarapé ficou agitado, e sabe como é cidade pequena: o comentário rolou solto e ainda está na boca do povo. Todo mundo curioso para saber quem são os donos da fazenda que fica na rua do Arvoredo. Seu Túlio disse até o sobrenome deles, algo como “cuspe”... não, não é “caspa”, diacho! É algo com “CA”! — Dudu se enrola e eu caio na gargalhada. Se tem alguém que confunde nomes ou não registra na memória algo que tenha alguma importância, é ela. — Não ri, Jaylene! Não tenho culpa se esses ricos têm frescura até com os nomes. Gente cheia de “não me toques”. — Âra, Dudu! É Casper, Romero disse ontem — digo, olhando ao longe a máquina descer. — É estranho, não? Faz anos que ninguém deles pisa por esses bandas e, de repente, estão aqui, com direito a aeronave e tudo! — nossos olhos estão fixos no horizonte. — Sei lá, às vezes a violência nessas cidades os afugentou. O povo reclama que aqui é muito pacato, mas temos paz, o que esses ricos em suas casas bonitas na cidade não possuem — me viro para retornar ao nosso banco. O sol está ardendo a pele. — Só falta a sua prima se jogar em cima do dono da fazenda — Dudu solta, e eu sorrio. — Jaylene, vem estender a roupa! — grita minha mãe, saindo pela porta. — Oi, tia Marluce! Tudo bem com a senhora? — Dudu saúda minha mãe, que olha em nossa direção com desconfiança. — Oi, Dudu! — Jay, estou indo, minha mãe vai zangar. Falei que não ia demorar. Diz ao seu irmão que deixei um beijo. Pode escrever: eu serei a sua cunhada — sussurra e dá uma piscadela. — Te aquieta, Dudu — dou uma bronca na menina, que pega a bicicleta e sai pelo portão, sorrindo. Vejo minha amiga montar na bicicleta e partir. Passo a corrente no portão e apresso meus passos para estender a roupa antes que dona Marluce comece a esquentar meus ouvidos. — Estava de fofoca com a Dudu, Jaylene? Oh, Deus não gosta disso, e nem eu — dona Marluce, como sempre desconfiada, tenta assustar. — Tinha mexerico nenhum, não, mãe. Estávamos falando sobre o povo novo que está na fazenda da rua dos Arvoredo. Dona Marluce enxuga as mãos no avental e se aproxima devagarzinho. — Dudu falou o que o povo anda comentando? — nossa, depois a mexeriqueira sou eu. — Dizem que são os Casper — respondo, pegando os pregadores da cestinha de bambu. — Âra! Isso seu irmão falou — parece incomodada porque não tem assunto novo. — Então? — indago, sacudindo uma toalha depois de espremê-la bem para retirar o excesso de água. — Esperança é ouvir que alguém viu eles. São gente de fora, natural a curiosidade — dá de ombros. — Desceu um helicóptero para aquelas bandas da fazenda dos Casper — comento, esticando o tecido na corda de fio encerado. — Verdade?! Como era? — pergunta, esticando os olhos para o céu. — De uma cor escura, mãe. Não deu para reparar nos detalhes, estava longe — pego no balde uma calça que reconheço ser de Ramiro. — Minha nossa, e eu não vi! Mas também, é um bando pra fazer bagunça, e eu sozinha pra arrumar! — reclama, pegando a vassoura de mato para varrer o quintal. — Âra, mãe, eu ajudo, sô! — replico, irritada. — Eu sei, minha filha. Falo dos teus irmãos e do teu pai, bando de homens desorganizados. A mãe do seu pai não soube criar ele. O homem chega da roça e quer entrar em casa de bota! Pobre dos meus tapetes e do meu piso encerado. — É, mas Romero e Ranyel não são filhos da vó — não seguro a língua. — Oh, tu cala a tua boca, menina, ou ficará sem os dentes — ameaça, e eu fico quieta. Termino de estender a roupa, entro e sigo para o meu quarto. Encosto a porta e volto ao meu caderno. Quero escrever alguma coisa para Emílio; Dudu pode entregá-lo para mim. Penso por alguns minutos em como começar a abordagem. Não quero parecer uma oferecida, mas também não quero ser muito tímida. — Minha Nossa Senhora, como é que se fala de amor? — sussurro, batendo a ponta da caneta nas folhas do caderno. Penso que devo ser o mais honesta possível com os meus sentimentos, talvez ele consiga compreender. "Emílio, espero que essas palavras lhe encontrem bem. Deus enviou Jesus para falar de amor e de amar. Depois, criou os poetas, porque eles escrevem o amor em forma de poesia, eternizam momentos e sentimentos. E eu escrevo para você, para que saiba do que carrego em meu coração. Numa pequena oração, onde as contas do terço passam por meus dedos, eu peço por ti, peço por nós e para que algum dia seu coração venha a se iluminar por mim. Pelo Sagrado Coração de Jesus e Coração de Maria, eu hei de honrar o que sinto eternamente. Gosto de ti, Emílio, mas é tanto que chega a doer. Com carinho, Jaylene." Sorrio ao colocar o ponto final depois do meu nome, mas logo o susto me pega quando minha mãe empurra a porta do meu quarto sem bater. Fecho o caderno o mais rápido que posso. O olhar sempre desconfiado de dona Marluce paira sobre mim. — Que diacho tu tá fazendo, menina? — Trabalho, mãe. Esqueci e aproveitei pra pôr em dia. — Jaylene, não quero que se descuide dos estudos. Ainda hei de ver um filho meu com diploma de doutor — os olhos dela brilham; temo que se frustre. — Venha pro café. Teu pai e teus irmãos chegaram. Ergo-me da cama, deixando minhas palavras presas na folha do caderno.
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