Capítulo- IV. Tensão
" O lobisomem, símbolo de dualidade, nos lembra que todos nós temos sombras a enfrentar, revelando a luta entre luz e escuridão."
Jaylene
Duas semana depois...
Nunca antes a rua de casa ficou tão movimentada. Os carros passam em alta velocidade, levantando aquela cortina de poeira. As janelas da nossa casa precisam ficar sempre fechadas, porque os móveis vivem cobertos por uma camada grossa de pó.
Certo dia, à tarde, fui jogar milho para as galinhas quando passou um carro todo preto, de vidros escuros — desses bonitos que a gente vê nos comerciais de televisão. Dudu estava aqui, gurejando o meu irmão, e nós duas ficamos de olhos compridos vendo o carro passar feito um foguete.
— Aquilo tem asas? — Dudu perguntou.
— Acho que não — respondi, apertando as pálpebras por causa da poeira.
— Se não tiver, quem estiver dentro vai ser despedaçado se o carro colidir contra uma árvore! Estamos comendo poeira, Jaylene!
Confesso que quis rir, mas não pude. Comecei a tossir por conta do pó vermelho. Literalmente, estávamos comendo poeira.
— Que diacho! Esse pessoal novo é abusado! — reclamou Dudu, piscando várias vezes para limpar a visão.
— Mãe outro dia ficou virada na fera. Os lençóis brancos estavam na corda quando esse carro passou e levantou esse mundaréu de pó — falei, balançando a lata de milho para chamar as galinhas.
— Fiquei sabendo pela Samela que a família dos Cusper...
— Casper, Dudu, minha nossa! — sorri, e a menina deu de ombros.
— É isso aí! Tiveram na casa do padre Paulo. Dona Divina, que trabalha lá, contou para a minha madrinha, que contou para a minha mãe. Disse que são gente chique, que cheira a “faz-me-rir” de longe — falou, fazendo sinal com o dedo, indicando dinheiro.
— É mesmo? O que eles foram fazer lá? — perguntei curiosa.
— Dona Divina não soube dizer. Só falou que o padre Paulo se fechou no escritório dele com o casal de ricaços.
— Hummm... — pensei que pudesse ser algo sobre doações e essas coisas que pessoas abastadas sempre fazem.
— Jaylene, vamos amanhã à pracinha tomar um sorvete, olhar os meninos. Gustavo falou pra mim que o Emílio vai estar lá. — Meu coração saltou de alegria.
— Jaylene tem compromisso amanhã, Dudu — cortou minha mãe —, o terço das mulheres. A menina devia ir também, faz bem pra cabeça, pra não ficar pensando bobajada.
Minha mãe tratou logo de esmagar as minhas esperanças. Fiquei apreensiva, com medo de ela ter escutado a conversa toda. Se tivesse ouvido, eu tinha certeza: ficaria de olho em cada passo que eu desse. Contudo, não fez comentário posterior. Para mim, um grande alívio.
O dia se foi e outro chegou. Durante a manhã fui à escola, e lá pelo meio-dia retornei para casa. O tempo estava gostoso para andar de bicicleta — nublado e abafado —, então resolvi tentar algo que sempre quis, mas nunca tive coragem: andar sem as mãos no guidom.
Depois de quase cair umas duas vezes, consegui manter o equilíbrio. Estava sorrindo, toda boba com meu feito, quando um carro bonito, branco, surgiu em alta velocidade. Meus olhos ficaram enormes, e não tive tempo de voltar as mãos para o guidom. Levei um baita tombo dentro do mato. O carro passou feito uma flecha. Levantei na força da raiva, peguei um pedaço de barro que vi por perto e arremessei na direção do veículo. Não acertou, mas bem que poderia. Esse pessoal se sente dono da rua. Fui embora com o sangue quente.
À noite, meu pai nos levou até a igreja. Minha mãe e eu descemos da charrete e arrumamos a saia dos vestidos.
— Marluce, enquanto você e a menina estão na igreja, vou dar uma chegada na oficina do Bartolomeu. Faz tempo que o carro está no conserto. Tô achando que ele tá é pegando o dinheiro e ainda não mexeu em nada — disse meu pai, preocupado.
— Vá, Tião. Diga que, se ele não arrumar, vamos levar pra outro. Se tivesse chovendo, não poderíamos vir pra oração do terço.
— Diacho de demora! Isso não tá certo! São três meses e nada! — resmungou contrariado.
Atravessamos a rua, subimos a escada e adentramos a igreja. Colocamos nossos véus — isso, além de nos diferenciar das demais mulheres, me deixava com vergonha.
Minha mãe sempre disse que o uso do véu durante a oração do terço é símbolo de respeito e reverência a Deus. Citou até a passagem bíblica de 1 Coríntios 11, onde Paulo fala sobre a importância do véu como sinal de autoridade e respeito.
— Vamos, Jaylene. Coloque o véu. O ato de cobrir a cabeça ajuda a criar um espaço mais sagrado e propício à meditação e à oração — disse, assim que nos posicionamos no primeiro banco.
Abri a bolsa e retirei o véu. Outro hábito que minha mãe tem é não me permitir cortar o cabelo, por isso ele é longo, indo até o quadril. Cresci ouvindo minha mãe dizer que, em 1 Coríntios 11:15, Paulo menciona que “se a mulher tem cabelo comprido, isso é uma glória para ela, pois o cabelo lhe foi dado como véu.” Dona Marluce recitava sempre quando ia pentear meus fios.
Hoje não corto mais por costume, embora ache que minha mãe tem uma visão antiquada.
O terço começou, e seguíamos junto com nossa líder, dona Juciara — uma senhora de sessenta anos, muito ativa.
De repente, durante uma corrente de oração, senti falta de algumas vozes. Estava de olhos fechados, então os abri. Vi algumas mulheres virando a cabeça na direção da porta de entrada da igreja. Ouvi o som de saltos batendo contra o piso. Achei estranho, porque nenhuma de nós, do grupo do terço das mulheres, usa salto pra vir à igreja no meio da semana.
Olhei por cima do ombro e vi uma senhora alta, muito branca, cabelos escuros, vestida com roupas de alfaiataria — modelo fino, elegante — andando de cabeça erguida pelo corredor. Era uma figura nova na cidade. Aqui em Igarapé vêm muitos turistas; alguns visitam a igreja pra conhecer a arquitetura, tirar fotos, registrar um momento. Mas nos terços das oito da noite, nunca aparece turista.
— Aquela ali é a senhora Casper — ouvi um burburinho vindo do banco atrás do meu.
Ergui as sobrancelhas.
“Ah... então essa é a dona da fazenda que fica na Rua dos Arvoredos”, pensei, sem parar de mover os lábios na oração, enquanto minha mãe seguia compenetrada, deslizando conta por conta do rosário.
A tal senhora Casper sentou-se no primeiro banco da fileira oposta à nossa. Seus olhos percorreram o altar. Vi seu cabelo totalmente alinhado, preso em um coque francês polido — refinado, atemporal, sinônimo de elegância e sofisticação.
Sei disso porque leio tutoriais na internet tentando fazer algo novo no meu cabelo, mas nunca consegui esse coque por causa do comprimento dos meus fios.
A mulher elegantemente pegou sua bolsa escura — combinando com a roupa —, que parecia ser de couro de crocodilo ou jacaré, craquelada, com cara de coisa cara. De dentro, retirou um saquinho de veludo e, então, vi surgir um terço lindo, todo de prata, com pequenas bolinhas azuis.
Ela baixou a cabeça e começou a mover os lábios em oração, enquanto várias mulheres espichavam os olhos na direção dela.
O terço daquele dia foi atípico: a intenção era orar, mas toda a atenção se voltou para a senhora Casper. Obviamente, não de todas — eu, depois de olhá-la, voltei a me concentrar. Minha mãe nem percebeu sua entrada. Mas algumas cochicharam o terço inteiro, fazendo especulações sobre os Casper.
No fim, aconteceu algo inusitado: o padre Paulo apareceu. Ele nunca pisa na paróquia no dia do terço das mulheres — sempre comparece no dos homens. Com muita sutileza, depois de nos saudar com um “boa noite” entre sorrisos, apresentou a senhora Casper.
Ela deu um sorriso singelo; seus olhos passearam por todas nós e, de repente, pararam em mim.
— A senhora Casper quero apresentá-la às senhoras que fazem parte da nossa comunidade e da nossa igreja — disse o padre. — Essa de vestido rosa é a senhora Lauriete; aquela de blusa com a imagem de Nossa Senhora é a senhora Valentina; essa gestante se chama Flaviana; perto dela está a senhora Celestina e a senhora Matilda; na ponta esquerda do segundo banco está a senhora Divina Catarina e a senhorita Luiza. Mais atrás, no terceiro banco, a senhora Rosa com sua filha Fabiana. E aqui, no primeiro banco, a senhora Marluce e sua filha Jaylene.
Estiquei o olhar e vi que o belo par de olhos verdes da mulher parava sobre nós.
— É um prazer conhecê-las — disse a senhora Casper, com voz sutil, polida e baixa, totalmente diferente do linguajar do povo daqui, que fala alto e gesticulando.
Padre Paulo olhou pra mim e sorriu. Retribuí. Tenho um carinho imenso por ele — foi quem fez meu batismo, minha primeira comunhão e também o meu crisma.
A senhora Casper, depois da apresentação, retirou-se junto com o padre. Nem deu brecha pra que as mulheres se aproximassem. Talvez não quisesse ser bombardeada por perguntas, já que a curiosidade sobre ela e sua família era enorme.
Minha mãe e eu nos despedimos de todos e saímos da igreja. O caminho pra casa era longo, e o vento frio que entrava pelas portas da igreja indicava chuva.
Vários dias se passaram. Vieram outras rodas de terço, mas a senhora Casper nunca mais apareceu. Isso levantou um monte de especulações — diziam que ela não queria se misturar com os pobres. Eu não julguei. Talvez não tenha se sentido bem. Cada um é livre pra escolher.
Até que, hoje pela manhã, meus pais foram convocados pelo padre Paulo pra comparecer à paróquia. Não entendemos nada quando o celular do meu pai tocou e era ele. Nos entreolhamos, curiosos.
E a curiosidade ainda está em mim — tanta que não consigo prestar atenção na aula de matemática.
— Dormindo, Jaylene? — pergunta a professora Tâmara. Ergo o olhar sem graça.
— Hã... não, professora — respondo, com o rosto ardendo.
— Tem certeza? Então responde pra mim: um tanque retangular de água tem as seguintes dimensões: dois metros de comprimento, um e meio de largura e um de altura.
1. Qual é o volume total do tanque em metros cúbicos?
2. Se o tanque estiver cheio até a metade, quantos metros cúbicos de água ele conterá?
Meu corpo gela por inteiro, parece que a alma me abandona. Sorrio nervosa, tentando pensar na resolução.
— Não sabe, né? Estava com a cabeça nas nuvens em vez de prestar atenção na explicação! — recebo aquela bronca que faz todas as cabeças virarem pra mim.
A professora faz um gesto com os dedos diante dos olhos e depois aponta pra lousa. Balanço a cabeça afirmando.
— Para calcular o volume de um tanque retangular, precisamos usar a fórmula:
Volume = comprimento × largura × altura.
E, para a segunda parte, basta dividir o volume total por dois.
O sinal toca e sinto um alívio tremendo.
“Não sei pra que complicam a matemática... ainda bem que dessa vez não teve letras” — penso, guardando o material.
— Jaylene, o que deu em tu, menina? Parecia desligada — comenta Dudu.
— Me distraí, foi isso — sussurro, olhando de esguelha pra professora.
— Preciso que faça um favor pra mim... — olho pra amiga.
— Qual?
— Quero que você entre... — as palavras somem quando vejo Romildo de pé na porta da sala. Estranho: meu irmão nunca vem aqui. Penso que algo aconteceu, jogo o caderno na mochila e me apresso.
— Tchau, Jay! Nos vemos depois — diz Dudu, sabendo que eu não falaria mais nada sobre o tal favor.
— O que houve? Por que está aqui? — pergunto, saindo da sala e entrando no corredor.
— Pai me pediu pra te buscar. Não quer você andando solta por aí. — Estranho o que ele diz.
— Andando solta? Mas eu só venho pra escola, não fico batendo perna na cidade! — sinto uma gastura danada. — É fofoca com meu nome? Se for, é coisa da Fabiana, aquela garota...
— Não é fofoca, Jaylene. É cuidado. Você já é moça, e tem gente estranha em Igarapé.
Suavizo os pensamentos.
— Ah, é isso... Pai tá com medo do quê?
— Já falei, é cuidado — repete Romildo.
— Como vai a Carolina? Faz tempo que vocês não aparecem. Pai e mãe vivem falando disso — dou um puxão de orelha leve no irmão.
— Tô trabalhando muito, minha irmã. E quando chega o fim de semana, quero ficar quieto em casa com a minha esposa.
— Entendo... mas não esquece da gente, tá bom?
— Sim, rapa de tacho — responde, me abraçando de lado, rindo. Mas percebo uma tensão vibrando em Romildo.
Saímos da escola, e dessa vez vou pra casa no Corsa vermelho dele. Minha “magrela” segue conosco, pendurada no porta-malas.