Os restantes dias decorreram sem nenhum contratempo.
Após estar de plantão toda a noite, já de madrugada, Aurora passou o turno a um camarada e depois de um banho rápido, vestiu-se à civil. Arrumou todas as poucas coisas que possuía na enorme mala tiracolo verde tropa e despediu-se das suas camaradas, sem grandes alaridos. Dirigiu-se ao posto de serviço do seu primeiro-sargento e disse assim adeus à tropa.
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AURORA
A mala estava pesada, mas nada com o qual eu não estivesse preparada. Dirigi-me para a paragem de autocarros e esperei. Assim que o autocarro chegou, guardei a mala no porão e procurei pelo meu lugar. Sentei-me junto à janela, tirei o telemóvel do bolso das calças e mandei uma mensagem à Clara.
"Já estou no autocarro a caminho daí. A viagem é de oito horas, mas paramos a meio caminho para almoçar durante uma hora. Chego aí por volta 17h. Não te esqueças de ir-me buscar. Beijo"
O lugar ao meu lado estava vazio. Agradeci por isso. Coloquei a tocar uma música calma nos auscultadores, encostei a cabeça ao vidro e tentei dormir. Estava exausta.
Decorridas umas horas, o meu telemóvel vibra no bolso. Era uma mensagem da Clara.
"Claro que não me esqueço de ti! Estarei lá à tua espera. Aproveita o tempo para dormires e descansares. Quando chegares vamos sair e não aceito um não como resposta."
Bufei ao ler a mensagem. "Sair? A sério?" Revirei os olhos. Não adiantava de nada ir contra a Clara. Ela adorava sair.
"Onde vamos?" - Perguntei. Podia não recusar, mas iria tentar obter o máximo de informações possíveis dela.
"Surpresa! Já paraste para almoçar?" - Respondeu.
Nesse mesmo instante o autocarro pára e o motorista anuncia que dispomos de uma hora para almoçar, antes de retomarmos a viagem. Saio do autocarro e dirijo-me a uma pequena padaria ali perto. Peço uma tosta e um sumo e respondo à mensagem da Clara.
"Paramos agora mesmo. Daqui a uma hora seguimos viagem. Vou desligar o telemóvel para conservar bateria. Quando estiver a chegar, mando-te mensagem. Beijo"
"Combinado. Beijo" - despediu-se e eu desliguei o telemóvel.
Decorrida uma hora, retomamos a viagem, e eu aproveitei para descansar o resto do caminho, embora estivesse sempre alerta. Hábito adquirido da vida militar. Em breve estaria de regresso. Como iria correr tudo? Não fazia a mínima ideia, mas também decidi não me preocupar com isso.
A 30 minutos do destino, ligo o meu telemóvel e mando mensagem para a Clara.
"Estamos um pouco atrasados, mas estou quase a chegar. Clara, lembrei-me de uma coisa... Como te vou reconhecer? Passou tanto tempo!"
"Estou igualzinha." - Torço o nariz ao ler.
"1.30m, com aparelho nos dentes e a usar laços da hello kitty?" - Escrevo e solto um riso baixinho.
"AHAHAH! Tens muita graça, tu. E que tal assim? Vou estar vestida com uma saia curta verde e um top florido."
" Muito melhor."
"Então e tu?
"Surpresa"- resolvi jogar o mesmo jogo que ela. Mas logo a seguir, achei que não seria uma boa ideia, não seria seguro. Mandei-lhe mais uma mensagem. - "calças de fato de treino cinzas e uma t-shirt preta simples".
"Ok. Já cá estou. Vemo-nos daqui a bocado. Beijo".
Guardei o telemóvel e fiz o resto da viagem a olhar pela janela.
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Aurora contempla o céu com as suas cores de final de tarde. Tenta assimilar tudo o que vê enquanto percorre a sua memória. Algumas casas estavam exatamente iguais, outras já precisavam de obras e algumas tinham sido transformadas em moradias mais recentes e modernas. A cidade tinha evoluído. Já não era tão pacata como se lembrava. Há mais estradas, mais tráfego e menos espaços verdes. No centro, vê um grande edifício que capta a sua atenção. Está identificado como PrimeShares. Será ali que vai trabalhar e começar um novo capítulo da sua vida. Ela respira fundo e sente uma calma reconfortante. "Conseguiste!", pensa para consigo mesma.
O autocarro chega à sua paragem final e do lado de fora, Aurora avista Clara.
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AURORA
Agarro em tudo e saio no meio das pessoas. Retiro a minha mala do porão e dirijo-me para a Clara.
Como Clara tinha mudado! Já não era uma criança. Tinha-se transformado numa rapariga linda. Doze anos se tinham passado, mas aqueles olhos cor de avelã e aquele jeito alegre dela continuavam intactos.
Com a minha enorme mala ao ombro, corro na sua direção. Deixo a mala cair no chão e abraço-a, levantando-a no ar.
_ Oh Hércules! - chama-me a rir, surpreendida. - Vais amarrotar a minha roupa toda. - fala enquanto me retribui o abraço.
Deixo-me estar assim, abraçada, sem apertar demasiado. Ela também não se importa. Estou quase a deixar fugir uma lágrima. Há muito que já não chorava. No meu íntimo, pensei que já não fosse capaz disso. Sem que ela perceba, reprimo a lágrima. Afasto-me, quebrando o abraço.
_ Aurora, estás tão diferente.
_ Isso é bom ao mau?
_ Não sei bem. Não consigo perceber com essas roupas. - olha-me de alto a baixo.
_ Bem... Agora, já me podes dizer para onde vamos? - mudo de assunto. Sei bem que escolhi um conjunto bastante simples, mas fiz uma viagem de algumas horas de autocarro e... preciso urgentemente de comprar praticamente todo um guarda-vestidos completo, pelo que aquele comentário não me soa como uma crítica, mas mais uma constatação de um facto.
_Vamos a um bar. Quero apresentar-te a algumas pessoas. - responde Clara. - Mas primeiro, vamos a minha casa. Jantamos, mudamos de roupa e depois vamos festejar o teu regresso!
A sua alegria é contagiante.
Coloco a minha mala na bagageira e sento-me no lugar do pendura. Seguimos para sua casa.
No caminho lembro-me de algo.
_ Clara, espera! Vamos para tua casa? E os teus pais?
_ Primeiro de tudo, já não somos crianças para nos dizerem com quem devemos ou não de andar. Segundo, eu já lhes disse que estavas de regresso, precisavas de um sítio onde dormir e que ofereci a minha cama. Terceiro, eles saíram após o almoço e disseram que jantavam fora, por isso, tem calma. Está tudo bem.
_ E eles não fizeram perguntas? - olhava incrédula para Clara.
_ Estás a gozar? Foi cá um interrogatório. - Clara ri-se. - Até tu tremias se tivesses a ser interrogada daquela maneira. - Rimos as duas. - Mas já passou muito tempo e tu teres ido para a tropa e recebido aquela medalha ajudou imenso!
_ Tu também lhes contaste isso?
_ Claro! Já agora... trouxeste a medalha contigo, certo?
_ Sim. Porquê? - desconfiei.
_ Podemos precisar dela para apresentar como prova da tua inocência.
Começamos a rir às gargalhadas. A Clara é mesmo leve e fez-me sentir mais tranquila.
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CLARA
Quando vi Aurora já foi tarde demais. Já estava envolvida no seu abraço apertado. Surpreendeu-me ao levantar-me do chão. Aurora sempre foi mais forte que eu. Eu era a mais "franganita" das duas, a mais frágil. Compensava isso, com as minhas capacidades de socialização e com a minha maneira de estar na vida, super feliz. Quando Aurora foi mandada para longe, senti-me sozinha, porque, apesar de estar sempre rodeada de pessoas, eu nunca tive a mania, nunca me achei a última bolacha do pacote, e grande parte disso deve-se à Aurora. Ela sempre foi a minha âncora. A cordinha no meu pé, que me mantinha em terra segura. Com ela afastada, a minha luz quase se apagou. Mas felizmente para mim, mantivemos contacto.
_ Oh Hércules! Vais amarrotar a minha roupa toda. - digo, retribuindo-lhe o abraço. É ela quem o quebra.
_ Aurora, estás tão diferente.- digo.
_ Isso é bom ao mau?
_ Não sei bem. Não consigo perceber com essas roupas. - olho-a. É uma meia verdade. Embora esteja a usar roupas que não a favorecem, o seu rosto é lindo. O seu cabelo comprido moreno, a seu rosto bem marcado e os seus olhos verdes... mesmo sem maquilhagem, ela é linda. E hoje vou fazer com que sinta isso.
Após lhe dizer que vamos a um bar, depois de jantarmos e de nos prepararmos na minha casa, seguimos viagem no meu carro. A meio do caminho lembra-se de que os meus pais não gostam dela e que a minha casa é, na verdade, a deles. Tranquilizo-a com meias verdades, ocultando a parte dos avisos sem qualquer fundamento que eles me fazem e o prazo que me deram para que ela saia da nossa casa. Eles não confiam inteiramente nela. Mas eu sim! Por isso, resolvi não lhe contar. Não vai fazer qualquer diferença.