O Sopro da Verdade

1426 Words
O eco do último tiro ainda vibrava no ar quando o morro inteiro ficou quieto. Quieto de um jeito estranho — como se até o céu estivesse prendendo a respiração. Catarina se agarrou ao peitoril da laje. — V.K… O coração dela batia tão rápido que parecia que ia arrebentar as costelas. Dona Nilva virou o rosto. — Não olha! — Eu tenho que olhar! — Menina, tu vai enlouquecer! — Já enlouqueci! Lá embaixo, a fumaça se dissipava devagar. Aos poucos. Como véu sendo levantado. Primeiro, Catarina viu Tigrão, ajoelhado atrás de um muro, olhando para algo à frente. Depois, soldados recuando devagar, arrastando um dos feridos. E então… ela viu ele. V.K. De pé. Respirando pesado. O braço sangrando. O peito subindo e descendo rápido. Vivo. — Graças a Deus… As pernas dela quase cederam. Mas a cena ainda não estava completa. Porque, a poucos metros dele, o capitão aparecia atrás do escudo balístico do BOPE, cercado por dois policiais. Ele também estava vivo. Mas o ódio nos olhos dele queimava mais que qualquer sangue derramado no chão. V.K olhou para cima, para a laje. Para ela. Catarina sentiu o mundo parar. Os olhos dele diziam uma coisa só: Eu tô aqui. Eu tô vivo. Eu não podia morrer ainda. O peito dela encheu de algo que não conseguia nomear. Só sabia que era forte. Forte demais. Tigrão cutucou o ombro de V.K. — Chefia… tu levou tiro! — Não levou. — Levou sim! — Só raspou. — Tá sangrando pra c*****o! — Vai parar. — Não é assim que funciona, não! V.K puxou a camisa e olhou o ferimento. — Já vi pior. — Mas não precisava ver esse. — Acontece. Tigrão revirou os olhos. — Tu gosta de morrer, né? — Ainda não. — Ainda? — Ainda. O capitão gritou lá de baixo: — KEVIN! V.K levantou o rosto, cansado. — O que é? — ISSO FOI SÓ O COMEÇO! — Ah, eu sei. — Você não vai ganhar! — Eu não tô aqui pra ganhar. — Tá aqui pra quê?! — Pra sobreviver. O capitão rosnou. — EU VOU TE ENTERRAR! — Vai ter que subir mais um pouco. Tigrão segurou o braço de V.K. — Chefia… ele tá ficando sem controle. — Sempre esteve. — Ele vai tentar subir de novo. — Ele quer a filha dele. — Ele não vai subir. — Por quê? — Porque ele é covarde. Sobe atrás dos outros. O capitão pareceu ouvir. E respondeu: — EU NÃO PRECISO SUBIR! — Eu sei. — disse V.K, com frieza. — Tu manda os outros morrer por tu. A frase cortou a rua como navalha. O capitão travou. Por um segundo, só um, ele perdeu a máscara. E naquele único segundo, Catarina entendeu algo: Seu pai não era o herói que dizia ser. A tropa recuou um pouco, reorganizando a formação. Tigrão enxugou o suor da testa. — Chefia… isso não acabou. — Eu sei. — O que a gente faz? — Fecha tudo. — Já fechamos. — Fecha mais. Tigrão arregalou os olhos. — Mais do que já tá? — Mais. — Vai virar um labirinto aqui dentro. — É pra isso mesmo. V.K olhou para cima de novo. Catarina ainda estava lá. Ainda olhando. Ainda tremendo. Ele respirou fundo. — Tigrão. — Fala. — Sobe lá. — Lá onde? — Na laje dela. — FAZER O QUÊ?! — Ver se ela tá bem. — Tu tá louco? — Tô mandando. — Chefia, se eu subir lá, a avó dela me bate com a vassoura. — E daí? — Dói! — Vai assim mesmo. Tigrão bufou. — Eu vou virar carteiro agora? — Vai virar o que eu mandar. — p***a… Mas antes que Tigrão começasse a subir, um dos soldados correu até eles, ofegante. — Chefia! Achamos algo! — O quê? — Um áudio. — Que áudio? — No rádio de um dos nossos. V.K franziu o cenho. — Mostra. O soldado entregou o rádio quebrado. — Tava no chão. Achei quando fui arrastar o garoto ferido. — E é de quem? — Do j**a. Japa. O menino que tinha tomado tiro mais cedo. Catarina lembrou dele — tão jovem, tão assustado, ainda tentando respirar. V.K apertou o rádio quebrado. — Liga essa merda. — Chefia… o rádio tá quebrado. — LIGA. O soldado apertou o botão. Chiado. E então… Uma voz surgiu. Não era do j**a. Não era de policial. Não era de soldado. Era uma voz que V.K reconhecia. Uma voz que Catarina conhecia desde que nasceu. A voz do capitão. —“…repito: elimina o moleque. Ele viu demais.” O coração de Catarina caiu. O mundo dela virou fumaça. O áudio continuou: —“Atira no peito e diz que foi fogo cruzado. Ninguém vai questionar.” Catarina levou a mão à boca. — Não… não… não… O soldado reproduziu de novo. —“Elimina o moleque.” V.K fechou os olhos. Lento. Doloroso. — Ele mandou matar o j**a… — Tigrão murmurou. — Mandou. — Chefia… — Mandou matar um garoto de 16 anos. — Chef… — Um garoto que tava trabalhando pra mim, mas era menino. Catarina caiu de joelhos na laje. — Meu pai… matou… Dona Nilva se aproximou devagar. — Menina… — Vó… — Eu tô aqui. — Ele… ele mandou matar o garoto… — Eu sei. — Eu… não quero acreditar… — Então não acredita. — Mas é verdade! — Infelizmente, é. Catarina chorou de um jeito que parecia quebrar o peito dela por dentro. Por toda a vida, o pai tinha dito: “Eu protejo.” “Eu cuido.” “Eu sou a lei.” Mas agora, ali, era impossível fugir: Ele era tão c***l quanto o homem que Catarina estava começando a amar. Talvez até pior. V.K abriu os olhos. Olhos duros. Olhos frios. Olhos de quem tinha encontrado um novo motivo para lutar. — Tigrão. — Fala. — Sabe o que isso significa? — Sei. — Sabia. — O capitão passou o limite. — Passou. — Vai matar ele? — Vou. Tigrão rosnou um “p***a” baixo. — Isso vai trazer guerra eterna. — Já tá tendo guerra eterna. — E a menina? — A menina… Ele olhou para cima outra vez. Catarina agora estava desmoronada, chorando na laje. E aquilo rasgou algo dentro dele. — A menina vai saber quem o pai dela é. — Isso vai destruir ela. — Eu sei. Tigrão ficou em silêncio. — Chefia… — O que foi? — Eu nunca te vi assim. — Assim como? — Misturando guerra com sentimento. — Nem eu. V.K fechou os dedos ao redor do rádio quebrado. — Prepara todo mundo. — Vai começar outra fase da guerra? — Não. — Então o quê? V.K ergueu o rosto, sombrio. — Vai começar o acerto. Na laje, Catarina tentou se levantar, mas as pernas não responderam. — Eu fui enganada a vida inteira. — ela sussurrou. — Foi, menina. — Ele… matou um garoto. — Mandou matar. — Isso muda tudo. — Sempre muda. Catarina enxugou o rosto com as mãos trêmulas. — Vó… — Fala, minha filha. — Eu… eu acho que o V.K é melhor que meu pai. — E é. — Você fala isso assim? — Falo. — Mas ele é bandido. — E teu pai é o quê? — … Silêncio. Catarina olhou para o beco. E naquele instante, enquanto enxugava as lágrimas, algo dentro dela endureceu. Algo cresceu. Algo mudou. — Vó… — Hm? — Eu não vou ajudar meu pai nunca mais. Dona Nilva fez o sinal da cruz. — Então tu escolheu teu lado. Catarina engoliu seco. — Não foi ele que eu escolhi. — Então quem? Catarina respirou fundo. — Eu escolhi a verdade. Lá embaixo, V.K se virou para seu time. — Avisa geral: ninguém dorme. — Ninguém dorme. — Eu quero vigia dobrada. — Feito. — E quero o capitão vigiado. — Como? — Eu quero saber cada passo dele. Tigrão ergueu a sobrancelha. — Pra atacar quando, chefia? — Quando a hora chegar. — E quando é essa hora? V.K olhou para cima uma última vez. — Quando ela souber de tudo. Porque agora a guerra tinha outra motivação. Não era morro contra polícia. Era verdade contra mentira. Dor contra poder. Justiça contra o sangue de inocentes. E naquela madrugada sufocante, uma decisão caiu sobre o morro como tempestade: O capitão tinha acendido um inferno. E V.K seria o homem que iria apagar — ou incendiar tudo de vez.
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