Aviso de Guerra

1634 Words
O morro acordou cedo naquele dia. Mais cedo do que o normal. Era como se as vielas murmurassem entre si uma verdade que ninguém queria dizer em voz alta: tinha algo errado no ar. Catarina abriu a porta da laje e encontrou Dona Nilva sentada no degrau, olhando para baixo com o cenho franzido. — Que foi, vó? — Não sei. — Aconteceu alguma coisa? — Vai acontecer. Catarina já estava aprendendo que, na Vila Kennedy, esse tipo de frase nunca era exagero. Ao longe, rádios apitavam. Soldados desciam e subiam rápido demais. As motos estavam mais agitadas. Os cachorros latiam mais do que o habitual. — Vó… quem controla tudo isso? — O Don. — E ele sabe que tem algo errado? — Ele sente. Antes de todo mundo. Catarina mordeu o lábio. Queria tirar aquele homem da cabeça, mas parecia impossível. Desde que ele carregou o balde para ela, a forma como a vila reagia a cada movimento dele ficou mais clara. V.K não era só um líder. Ele era o eixo. E quando o eixo tremia… tudo tremia junto. Mais tarde, enquanto ajudava a avó a guardar algumas compras, Catarina percebeu um movimento estranho na porta. Dois soldados pararam na entrada da viela, observando. — Dona Nilva! — chamou um deles. — A senhora tá bem? — Tô, meu filho. — Avisaram pra não descer a rua hoje. — Por quê? — Ordem do chefe. Os olhos do soldado se moveram discretamente para Catarina antes de voltar para Nilva. — E essa moça aí… é tua neta, né? — É sim. — Então cuida dela. Ele saiu antes que Catarina perguntasse qualquer coisa. — Vó, por que ele disse isso? — Porque tu já tá na mira. — Mira de quem? — Do Don. — Por que todo mundo acha isso? — Porque ele tá olhando. — Ele olha pra todo mundo. — Não daquele jeito. Catarina virou o rosto, irritada. — Eu não quero problema. — Problema já te achou, menina. À tarde, Catarina decidiu varrer a laje, tentando se distrair. A brisa punha vida nas plantas velhas da avó. Era quase um momento de paz, até o barulho de uma moto potente subir a viela. Ela olhou por cima do parapeito. Era ele. V.K. Sozinho. Sem Tigrão. Sem escolta. Ele subia a viela com uma expressão dura, mais dura do que a do dia anterior. Parecia carregando o mundo nos ombros — e pronto para esmagar quem encostasse. Quando chegou perto da laje, ele levantou os olhos. Encontrou os dela. E parou. Não por hesitação. Mas como se o olhar dela fosse um obstáculo físico. Ele subiu os três últimos degraus. Catarina não recuou. De novo. — Deveria estar dentro de casa. — ele disse, sem rodeios. — Por quê? — Porque eu falei. — Isso não é motivo. Ela virou as costas, continuando a varrer. V.K estreitou os olhos, irritado e… intrigado. — Catarina. Ela parou. Virou-se. — Que foi? — Desce da laje. — Não. — Eu não tô pedindo. — Eu percebi. — Desce. Agora. — Você sempre dá ordem assim pra todo mundo? — Sim. — E todo mundo obedece? — Sim. — Então você deve ficar muito irritado comigo. Um músculo pulsou na mandíbula dele. — Tu ainda não entendeu. — O quê? — Tem carro suspeito rondando o morro. — E daí? — E daí que tu pode tomar tiro. — Por quê? — Porque aqui tiro não escolhe direção. — Então você tá… preocupado? Ele respirou fundo, claramente perdendo a paciência. — Eu não tô preocupado. Tô prevenindo. — Tem diferença? — Tem. — Qual? Ele encarou ela por longos segundos, como se buscasse a palavra certa e não achasse. — Eu não quero ninguém morrendo na minha área por burrice. — Tá me chamando de burra? — Tô. — Porque não quero descer? — Porque tu não entende onde tá. Ele deu um passo à frente. Depois outro. Agora estavam perto demais. — Aqui não é brincadeira, Catarina. — Eu sei disso. — Não sabe. — Sei sim. — Então por que tu não tem medo? — Porque você não me dá medo. Ele piscou devagar, como se processasse o impacto. — Isso não é bom. — Por quê? — Porque todo mundo devia ter. Os dois ficaram ali, presos um no olhar do outro, até o rádio de V.K chiado cortar o momento. —“Chef! Movimento na subida três! Carro branco voltou!” V.K semicerrou os olhos. — Fica dentro da tua casa. — Eu— — Cala a boca e entra. Ela ia retrucar, mas ele ergueu um dedo, ordenando silêncio. — Entra. — Não vou— — ENTRA. A voz dele foi tão firme que Dona Nilva veio à porta no mesmo instante. — Menina, entra. — Mas vó— — Entra! Catarina entrou, irritada. Mas quando olhou pela janela, viu a intensidade no rosto de V.K mudando. Ele não era só o homem que dava ordens. Era o homem que protegia o território inteiro como se carregasse uma guerra nas costas. Ele desceu a viela correndo, falando no rádio: — Fecha rua três. — Fechada, chef. — Avança dois homens pela lateral. — Já foi. — E bota um na laje da Nilva. — Na laje? — É. Catarina ouviu aquilo e sentiu o estômago revirar. Ele estava colocando segurança… por causa dela? Na rua de baixo, o clima era de guerra silenciosa. Tigrão chegou ofegante. — Chefia, o carro branco deu meia-volta. — Onde? — Na boca velha. — p***a. — É o BOPE? — Não sei. — Quer que eu arme os homens? — Ainda não. V.K observava cada detalhe ao redor — portas fechadas, lanternas apagadas, motos afastadas. Quando o morro ficava quieto assim, era sinal de que alguém estava prestes a atacar. — Tu falou com Vasila? — ele perguntou. — Falei. — E aí? — Disse que hoje tem operação. — Onde? — Não falou. — Então é aqui. Tigrão limpou o suor da testa. — Chefia… tem morador na rua ainda. — Manda entrar todo mundo. — E quem não entrar? — Bota pra dentro. Na marra. Quando V.K falava assim, ninguém discutia. Na laje, Catarina observava escondida atrás da cortina. — Menina… sai da janela! — a avó avisou. — Eu tô só olhando. — O morro tá pra guerra. — Você acha que é com ele? — A guerra sempre é com ele. Catarina fechou a cortina devagar, mas o coração estava acelerado. Por quê? Ela não tinha motivo nenhum pra se importar com aquele homem. Era perigoso, mandão, irritante… e completamente fora do mundo dela. Mesmo assim… Quando viu V.K posicionando os homens, a sensação de que algo r**m estava vindo tomou conta dela. Mas algo muito mais inquietante também aconteceu: Ela percebeu que o olhar dele, quando subiu a viela para colocá-la em segurança, não era só de Don mandando em morador. Era um olhar que dizia: “Eu não quero tu machucada.” E esse pensamento ficou na cabeça dela por minutos que pareceram longos demais. O rádio de Tigrão apitou: —“Chef, carro suspeito invadiu a rua dois! Tá subindo!” — Filha da p**a… — V.K rosnou. — Chefia, vai rolar troca? — Se ele não parar… vai. — E tu acha que para? — Nunca para. V.K levantou o queixo, avaliando. — Posiciona atirador na laje da bica. — Posicionado. — Manda o resto fechar o beco seis. — Fechado. — Tigrão? — Fala. — Tu vem comigo. — Sempre. Eles correram. Catarina, mesmo proibida, abriu um palmo da janela. Viu o carro branco subindo devagar demais. Devagar de quem quer chamar atenção. Devagar de quem não tem pressa… porque tem proteção. E viu V.K andando no meio da rua como se fosse dono do asfalto. Porque era. Tigrão murmurou: — Chefia… é o carro do capitão. — Eu sei. — Quer recuar? — Nunca. Catarina ouviu. E sentiu algo dentro dela congelar. — Vó… — O que foi? — O carro… — Que carro? — O carro do meu pai. Dona Nilva fechou os olhos. — Então segura firme, menina. — Por quê? — Porque se teu pai subir… Ela respirou fundo. — …hoje o morro sangra. Lá embaixo, V.K parou no meio da rua. O carro branco estacionou em frente a ele. O vidro abaixou. Do outro lado… o capitão Roldão. O pai de Catarina. — Kevin. — ele disse. — Roldão. — Tá bonito aqui. — Tá no lugar errado. — Vim só ver como anda o pedaço. — Não é sua área. — Tudo é minha área quando tem bandido. — Então tu vai ter trabalho. — Sempre tive. O capitão sorriu. Não era um sorriso gentil. Era de ameaça. — Diz aí, Kevin… Os olhos dele percorreram o morro. — …alguma novidade por aqui? — Nada que te interessa. — Tem certeza? — Sempre tenho. Roldão inclinou o rosto como quem sente cheiro de mentira. — Então tá. — Vai embora, capitão. — Hoje eu vou. Roldão afundou o pé no acelerador. — Mas amanhã? — Amanhã tu não volta. — V.K disse. — Ah, eu volto. — Não volta vivo. O carro arrancou. E o silêncio que ficou não era silêncio de paz. Era silêncio de guerra anunciada. Tigrão engoliu seco. — Chefia… fudeu. — Fudeu. — Ele veio por causa de quê? — De quem. V.K levantou o rosto, olhando para a laje onde Catarina estava. E soube. Soube na hora. O pai dela vinha por ele. E talvez… por ela também. Ele respirou fundo. — Tigrão… — Fala. — Hora de fechar o morro. — Já? — Agora. E com essa ordem, a Vila Kennedy entrou oficialmente em estado de guerra.
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