A Primeira Batida

1528 Words
A tensão desceu pelo morro como poeira suspensa no ar. Invisível, mas presente em cada esquina, cada portão fechado, cada olhar rápido que moradores trocavam sem dizer palavra alguma. Catarina sentia isso mesmo dentro da laje da avó. O silêncio que normalmente anunciava o anoitecer agora parecia silêncio de luto. — Vó… — Não me pergunta nada. — Mas eu— — Eu disse pra não perguntar. Dona Nilva andava de um lado para o outro, inquieta, segurando o terço como se fosse âncora. — Tu viu aquele carro, Catarina. — Eu vi. — Então tu sabe. — Eu sei que é o meu pai. — E tu sabe que ele não sobe aqui pra fazer carinho em ninguém. Catarina baixou os olhos. A verdade é que ela nunca entendera o pai. Nem quando era criança. Nem quando virou adulta. E agora, olhando para o que estava prestes a acontecer, entendia ainda menos. Por que ele subiria ali? Por que desafiar um morro inteiro? Por que provocar aquele homem? — Vó… — Hm? — Ele não veio atrás de mim. — Não. — Então ele veio atrás de quem? Dona Nilva parou, respirou fundo e disse: — Do homem que tu encarou ontem na minha laje. — O V.K. — É. — Mas por quê? — Porque teu pai tem raiva. Raiva antiga. Raiva funda. Raiva que tu não faz ideia. Antes que Catarina pudesse insistir, um estalo forte ecoou lá fora. Não era tiro. Era aviso. Um assobio. Sinal de que soldados estavam se posicionando. Sinal de que alguma coisa — algo grande — estava prestes a começar. Catarina correu para a janela. Viu homens correndo, armados, entrando nas vielas laterais. Viu rádios acesos. Viu portas se fechando. Viu motos sendo escondidas. — Meu Deus… — Fecha essa janela! — Dona Nilva ordenou. Mas Catarina não conseguiu. Porque no centro da rua principal, descendo com passos longos e postura de comando absoluto, vinha ele. V.K. Sem camisa, apenas bermuda escura, tatuagens marcadas pelo suor, rádio preso na mão, olhar concentrado como de predador. Um soldado se aproximou dele: — Chefia! Tem movimento na subida cinco! — Já botei homem lá? — Já. — Então segura. — E se for o BOPE? — Se for… a gente devolve. Outro rádio chiou: —“Chef, tem barulho de lataria descendo por trás da praça!” — É caminhão deles. — Tigrão disse. — Ou é só pra assustar. — V.K respondeu. — Tu acha que eles vêm? — Acho. — Hoje? — Hoje. Ele falou aquilo com certeza absoluta. Catarina viu a determinação no rosto dele e sentiu algo apertar o peito. Não era pena. Não era medo. Era algo no meio. Algo que ela não sabia explicar. E talvez nunca quisesse. Na rua, Tigrão encostou no ombro do chefe. — Chefia… o morro tá fechado. — Tá mesmo? — Tá. — Todo mundo dentro das casas? — Quase. — Quem tá na rua? — Só os teus homens. — Então tá pronto. O rádio apitou de novo: —“V.K! Dois carros subindo! Marca preta na porta!” — É o BOPE. — Tigrão disse. — É. Ele respirou fundo. — Avisa geral. — Avisa como? — Solta fogos. — Agora? — Agora. Tigrão sinalizou. Segundos depois, estampidos cortaram o céu em direção ao alto. Não era festa. Era código. O morro inteiro entendeu. Catarina entendeu também. — Vó… ele vai enfrentar o BOPE? — Vai. — Mas isso é loucura! — Aqui é lei deles contra lei dele. — Mas ele vai morrer! — Se ele morrer… metade desse morro cai junto. Catarina arregalou os olhos. — O que você quer dizer? — Quero dizer que tem homem ali que só respira porque ele manda respirar. — Isso é errado. — É. — É perigoso. — É. — É injusto! — Também é. — E você acha normal? — Eu não acho nada. Dona Nilva olhou fundo nos olhos da neta. — Mas tu tá dentro disso agora. Gostando ou não. Catarina engoliu seco. Lá embaixo, do outro lado da rua, dois carros pretos surgiram. Subiram devagar. Faróis cortando a poeira. Motor baixo. Sinistro. Tigrão rosnou: — Filhos da p**a… — Calma. — V.K disse. Os carros pararam a uma distância calculada. Portas se abriram. Homens de preto, fardas pesadas, armas de calibre grosso. As costas marcadas com o símbolo que todo morro odiava: BOPE O caveira brilhava no colete como aviso de morte. Um dos policiais tirou o capacete. — V.K!!! — gritou. — Aparece aí, covarde! O Don deu dois passos para frente, sem medo. — Covarde é tu que precisa de dez pra subir um morro. — Hoje tu cai! — Só se Deus puxar. — Ou se eu puxar. V.K sorriu de canto. — Tu não acerta nem parado. Os policiais se posicionaram. Soldados do morro apontaram armas. O clima ficou tão pesado que até o vento parou. Até que alguém — ninguém soube quem — disparou o primeiro tiro. O barulho rasgou o ar. E a guerra começou. Catarina levou um susto tão grande que caiu para trás quando o primeiro disparo ecoou. Dona Nilva puxou a neta pelo braço. — PRA DENTRO! — VÓ, ELE— — PRA DENTRO, MENINA! Elas se jogaram atrás do sofá. Tiros ecoavam como trovões. Rajadas curtas. Gritos. Radios chiando. Passos apressados. — Meu Deus! — Catarina colocou as mãos na cabeça. — Meu Deus, meu Deus! — Fica baixa! O vidro da janela estourou. Catarina gritou. Dona Nilva a abraçou com força. — Fica comigo! Não se mexe! — Eu tô com medo! — Agora tu sabe o que é guerra. — Eu quero sair daqui! — Não sai. Quem sai, morre. As duas se encolheram no chão enquanto o som da guerra explodia lá fora. V.K estava na linha de frente. Entre cada disparo, ele avançava. Sabia onde pisar. Sabia onde recuar. Sabia onde matar. Tigrão gritava ordens. — PEGA A LATERAL! — FECHA O FUNDO! — NÃO DEIXA SUBIR! — NÃO DEIXA PASSAR! Os policiais avançavam com escudos. Os soldados do morro revidavam pelos becos. Era caos. Caos real. Caos sanguíneo. V.K virou para Tigrão: — Botaram mais homem? — Botaram! — Quantos? — Uns vinte! — Cala eles! Ele correu para o canto da rua, se posicionou atrás de uma mureta e disparou. Um tiro certeiro. O policial caiu. — Chefia, tá vindo mais! — f**a-se! Continua! Tiros dançavam no ar como gritos de morte. Estilhaços caíam no chão. Em meio a tudo isso, V.K olhou para o alto por um segundo. E viu. Viu a janela da laje quebrada. Viu a cortina balançando. Viu a silhueta de Catarina escondida atrás do sofá. Algo nele estremeceu. Um segundo apenas. Mas suficiente para perceber: Ela não devia estar ali. E ele a colocou ali. Não diretamente. Mas a presença dela naquele morro agora fazia parte da guerra também. E isso incendiou algo dentro dele. — Tigrão! — gritou. — Fala! — Segura eles! — Tu vai pra onde?! — Pra onde eu quiser! Ele saiu da cobertura, ignorando tiros que passaram perto demais. Correu pela lateral da rua, subiu a viela estreita e entrou na escada que levava às lajes. O coração batia rápido. Não era medo. Era urgência. Urgência de garantir que ela estava viva. Urgência de garantir que a guerra do pai dela não tirasse ela dele — embora ele ainda nem tivesse ela. Quando chegou no topo, chutou a porta da laje da Dona Nilva. — CATARINA! Ela levantou o rosto, assustada, olhos arregalados, respiração curta. Ele a viu. Viva. E o peito dele aliviou de um jeito que ele nunca admitiria. — QUE MERDA TU TÁ FAZENDO COM A JANELA ABERTA?! — ele gritou. Catarina chorava, tremendo. — EU NÃO SABIA— — TU PODE TER TOMADO TIRO! — EU TÔ COM MEDO! — ENTÃO FICA NO CHÃO! Dona Nilva gritou de volta: — NÃO GRITA COM A MINHA NETA, SEU DEMÔNIO! V.K respirou fundo, aproximando-se. Se ajoelhou ao lado de Catarina. Pegou o rosto dela com as mãos. — Olha pra mim. Ela olhou. Os olhos dele estavam intensos, escuros, perigosos. — Enquanto eu tiver vivo, tu não morre. — Mas… — Olha pra mim, p***a! Ela olhou. E pela primeira vez, viu algo além do monstro. Viu medo. Não medo dele morrer. Medo dela morrer. — Eu vou te tirar daqui. — Não! — Dona Nilva gritou. — Aqui é minha casa! — E vai continuar sendo! — Eu não saio! — Então sai ela! Catarina sufocou um soluço. — Eu não posso sair… — Pode. — Ele vai achar— — f**a-se o que teu pai acha. — Ele vai matar— — Tem que passar por mim antes. E o olhar dele confirmou algo que Catarina já temia: Aquilo não era só proteção do morro. Era proteção dela. E isso…era o começo do fim de qualquer distância entre os dois. A guerra continuava lá embaixo. E nada — absolutamente nada — seria igual depois dessa noite. Porque agora, V.K não estava lutando só pelo território. Estava lutando por alguém. E isso mudava tudo.
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