O aviso se espalhou pelo morro como fogo em palha seca:
— FECHOU! FECHOU! FECHOU! O MORRO FECHOU!
Portas bateram.
Crianças foram puxadas para dentro de casa.
Lampadazinhas penduradas foram apagadas.
As vielas ficaram escuras, silenciosas, prontas para engolir qualquer invasor.
Em segundos, a Vila Kennedy parecia outro mundo.
E no centro dele, V.K se movia como rei em território prestes a ruir.
— Tigrão!
— Tô aqui, chefia!
— Posição da tropa?
— Sete vindo pela lateral, mais uns dez pela principal.
— Rifles?
— Pesados.
— E os nossos?
— Já posicionei três na cobertura.
— Bota mais dois.
— Chefia…
— BOTA.
Tigrão correu.
V.K respirou fundo, regulando o ar, os ombros, a tensão.
Os olhos estavam diferentes — nada de dúvida agora. Nada de hesitação.
O monstro estava acordado.
Mas mesmo assim...
No fundo da mente dele, havia um nome repetido em silêncio:
Catarina.
Catarina.
Catarina.
Porque, mesmo enquanto ele organizava guerra, uma parte dele só queria saber se ela estava escondida, segura, viva.
Catarina viu tudo da fresta da janela.
Soldados correndo.
Armas sendo distribuídas.
Barreiras improvisadas de concreto sendo empurradas para os becos.
E o rosto de V.K no meio de tudo, mais duro do que ela já tinha visto.
Ela queria gritar para ele sair dali.
Queria arrastar ele da linha de frente.
Queria implorar para que escolhesse viver.
Mas tudo o que fez foi apertar a mão na madeira da janela até os dedos ficarem brancos.
— Tu vai infartar, menina. — disse Dona Nilva atrás dela.
— Eu tô com medo.
— Ainda bem. Medo mantém viva.
— E ele?
— Esse aí só fica vivo por sorte.
Catarina virou o rosto.
— Ele disse que não podia morrer hoje.
— Ah… disse, foi?
— Disse.
— E por quê?
— Não sei…
— Sabe sim.
— Não sei, vó!
— É por tu, menina.
Catarina fechou os olhos.
E chorou.
Lá embaixo, o rádio estalou:
—“CHEF! PRIMEIRO CONTATO À VISTA!”
V.K levantou o rosto.
—“CHEF! REPITO — PRIMEIRO CONTATO. VISUAL COM A TROPA!”
Outro soldado correu até ele.
— Chefia, tão subindo com escudo!
— E nós?
— Tamo com visão alta.
— Tamo bem então?
— Tamo vivo.
V.K esticou o pescoço e viu a formação descendo a principal:
— Escudo balístico.
— Fuzil HK.
— Lentes noturnas.
— Movimentação limpa.
— Sem barulho.
BOPE.
Treinados.
Letais.
— Tigrão!
— Tô aqui!
— Reforça a lateral e abre dois flancos falsos.
— Pra quê?
— Pra confundir.
— Eles vão perceber.
— É pra isso mesmo.
— Beleza!
Tigrão correu para repassar as ordens.
V.K olhou uma última vez para cima — para a laje onde sabia que Catarina estava.
E por um segundo, só um, o peito dele pesou.
Se ela morrer…
Eu mato o capitão.
Não era promessa.
Era instinto.
—“CHEF! TROPA PAROU!”
V.K franziu a testa.
— Pararam por quê?
—“Não sei! Estão… conversando entre eles!”
— Conversando?
—“Sim! Parecem esperando alguma coisa!”
Esperando.
E aí V.K entendeu.
— Eles não tão prontos pra invadir.
— Por quê? — perguntou Tigrão.
— Porque tão esperando ele.
— Ele quem?
— O capitão.
Tigrão xingou.
— p***a… então hoje é pessoal.
— Sempre foi.
— Mas hoje é mais.
— Hoje é guerra de família.
Tigrão respirou fundo.
— Chefia… tu quer mesmo enfrentar o pai da garota?
— Não.
— Ótimo!
— Quero matar.
— Ah.
Silêncio.
— Isso complica. — Tigrão murmurou.
— Complica pra ele.
— E pra gente?
— A gente dá jeito.
E então…
O som que ninguém queria ouvir ecoou:
— TÁ-TÁ-TÁ-TÁ-TÁ!
Tiro pesado.
Tiro aberto.
Tiro vindo da lateral.
V.K ergueu o braço.
— FLANCO DIREITO!
Soldados se moveram como água, ocupando posição.
O morro rugia.
Tiros ricocheteando nas paredes estreitas.
Poeira subindo.
Gritos sendo abafados pelo som das armas.
O morro estava vivo.
E furioso.
Catarina ouviu o barulho e agarrou a avó.
— VÓ!
— Calma, menina!
— Eles tão atirando!
— Claro que tão!
— Eu preciso ir lá—
— TU NÃO VAI DESCER!
Catarina recuou.
— Ele tá lá embaixo.
— Então reza pra bala não achar ele.
— Eu… eu tô tremendo.
— Vai tremer até isso acabar.
— Eu não sei se isso acaba.
— Sempre acaba… mas nunca do jeito que a gente quer.
Catarina olhou para a porta.
Uma parte dela queria correr até ele.
Outra parte sabia que seria suicídio.
E no fundo:
— Eu devia ter dito que sentia algo por ele. — ela murmurou.
Dona Nilva tocou o braço dela.
— Ele sabe.
— Não sabe.
— Sabe sim.
Lá embaixo, V.K comandava como general.
Cada ordem dele era executada com precisão.
— Tigrão, sobe pro telhado dois!
— Já tô indo!
— Miguel, bota fogo na parede velha!
— Vai derrubar?
— Vai atrasar a tropa!
— Beleza!
— Josué, flanco esquerdo!
— Tô fechando!
O cheiro de pólvora tomava o ar.
O rádio chiou alto:
—“CHEF! A TROPA REC UOU METADE! PARECE QUE TÃO REPOSICIONANDO!”
— Tão esperando o capitão. — V.K repetiu.
— Chefia…
— Eu sei.
— Ele vai tentar vir pelo meio.
— Eu sei.
— E vai tentar te matar primeiro.
— Eu sei.
Tigrão olhou para ele.
— E mesmo assim tu tá aqui, na frente.
— Onde mais tu queria que eu estivesse?
— Escondido.
— Não escondo.
— Protegendo a si mesmo.
— Não precisa.
— Não precisa por quê?
V.K olhou para cima.
Para a laje.
— Porque eu fiz promessa.
— Pra quem?
— Pra ela.
Tigrão respirou fundo.
— Tá apaixonado mesmo.
— Cala a boca.
Mas o sorriso estava lá — pequeno, quase imperceptível — mas real.
Mesmo no meio da guerra.
De repente, Tigrão apontou.
— CHEF! OLHA!
Lá embaixo, na subida da ladeira principal…
Uma viatura apareceu.
Só uma.
A porta abriu.
E o capitão saiu.
Catarina viu da janela.
O coração dela caiu.
— Pai…
V.K viu também.
Mas o rosto dele não mudou.
Frio.
Calculado.
Feroz.
O capitão ergueu um megafone.
— KEVIN!
— Filha da p**a… — murmurou Tigrão.
— Fica quieto. — disse V.K.
— KEVIN! EU SEI QUE VOCÊ TÁ ME OUVINDO!
Silêncio.
— EU VIM PEGAR O QUE É MEU!
V.K tocou a arma na cintura.
Devagar.
— Ele tá falando da garota. — Tigrão murmurou.
— Eu sei.
— E o que tu vai fazer?
— Proteger.
— Ela?
— A mim.
— E ela? — Tigrão insistiu.
V.K olhou para a laje por um segundo.
Só um.
Mas intenso o suficiente para fazer o coração dele doer.
— Se ela se meter… eu tiro ela daqui à força.
— E ela vai obedecer?
— Não.
— Aí tu tá ferrado.
— Sempre estive.
O capitão gritou de novo:
— SAI AGORA, KEVIN, OU EU ENTRO TE ARRASTANDO!
O morro inteiro esperou a resposta.
E ela veio.
Calma.
Baixa.
Cruel.
— ENTRA ENTÃO.
O capitão prendeu a respiração.
O BOPE avançou um passo.
V.K ergueu a arma.
Não para atirar.
Para mostrar que não correria.
O morro inteiro segurou o ar.
A guerra ia começar de verdade.
E, lá da laje, Catarina chorava:
— Não morre… por favor, não morre…
Mas ele não ouviu.
Ele estava ouvindo apenas o som do destino batendo à porta.
E estava pronto.
Para matar.
Para morrer.
Para proteger.
E para sentir.
Mesmo que fosse o sentimento errado, na hora errada, pela pessoa mais proibida do mundo.