O tiro ainda ecoava na cabeça de Catarina quando ela trancou a porta da laje. O coração dela batia mais rápido que o relógio velho pendurado na parede. Era como se o corpo estivesse ali, mas a mente ainda estivesse naquele quase-beijo… naquela quase tragédia… naquele quase tudo.
Ela encostou na parede e deslizou até o chão.
O toque dele ainda queimava no rosto dela.
O cheiro dele ainda estava preso na pele.
E a frase dele ainda cortava como lâmina:
“Esse toque não aconteceu.”
A avó apareceu na porta do quarto.
— Eu ouvi tiro.
— Foi lá embaixo.
— E tu?
— Nada… eu…
— Tu tá com essa cara de pecado por quê?
Catarina corou.
— Eu não tô com cara de nada.
— Tá sim.
— Não tô.
— Tu acha que eu nasci ontem?
Catarina quase riu, quase chorou.
— Ele te beijou? — Dona Nilva perguntou, direta.
— Não.
— Mas quase.
— …quase.
A avó suspirou fundo.
— Tu vai sofrer.
— Eu já tô sofrendo.
— Vai sofrer mais.
— Por quê?
— Porque homem que vive à beira da morte, menina… ama errado.
— Ele não ama.
— Ama sim, só não sabe.
— Não fala isso.
— E tu ama ele.
— Eu não amo!
— Ama sim.
— NÃO AMO.
— Então por que tá tremendo?
Catarina engoliu seco.
Porque V.K mexia com ela de um jeito que nenhum homem nunca mexeu.
Porque ela via nele o monstro que todos temiam… e o homem que ninguém tinha coragem de enxergar.
Mas ela não respondeu.
Porque não sabia responder.
Lá embaixo, na viela central, o clima era outro.
Tenso.
Ardente.
Violento.
V.K desceu correndo a escadaria com dois soldados atrás.
Os olhos dele estavam diferentes, mais escuros, mais perigosos. Não era só pela ameaça — era pela confusão na cabeça, a mesma que estava explodindo no peito dele desde que encostou o rosto no de Catarina.
Como se um toque tivesse aberto algo que ele passou anos tentando enterrar.
Ele parou no beco principal.
Tigrão veio na direção dele.
— Chefia, foi só um disparo. Ninguém acertou nada.
— Quem foi?
— Pareceu ser do lado do Rival.
— p***a…
— Mas também pode ter sido aviso do capitão.
V.K rosnou baixo.
— Ele não teria atirado assim. Ele fala primeiro, atira depois.
— Então deve ter sido o Rival.
— Deve.
— Tu quer que a gente vá lá confirmar?
— Não.
Tigrão franziu a testa.
— Não?
— Não. Eu vou sozinho.
— Chefia, tu tá ficando maluco.
— Não tô.
— Tá sim.
— Cala a boca.
V.K passou as mãos pelo rosto, nervoso, irritado, com raiva de algo que Tigrão não conseguia ver.
— Chefia… tu tá estranho desde que falou com a menina.
— Não começa.
— Tô falando.
— Cala.
— Não vou calar.
— Cala, c*****o!
Tigrão ergueu as mãos em rendição.
— Beleza, beleza. Mas tu tá… mexido.
— Eu tô irritado.
— Irritado com o quê?
— Com ela.
— Com a Catarina?
— Com ela.
— Por quê?
— Porque ela me faz sentir coisa.
Tigrão arregalou os olhos.
— Ah, não…
— “Ah, não” o quê?
— Tu se apaixonou.
— Cala essa boca.
— APAIXONOU SIM, CHEFIA.
— Tigrão…
— Eu sabia! Desde o dia que ela falou contigo sem medo eu—
V.K empurrou ele pela gola da camisa.
— Fala isso de novo…
— Que tu se apa—
V.K empurrou mais forte.
— FALA ISSO DE NOVO E EU TE CORTO NO MEIO.
Tigrão ficou quieto.
Mas o sorriso estava lá.
Porque ele conhecia o chefe.
Sabia reconhecer quando V.K estava com raiva…
E quando estava com medo de si mesmo.
E agora?
Agora era medo.
Não do inimigo.
Não da polícia.
Não da morte.
Medo de sentir.
V.K se afastou do grupo e entrou no depósito abandonado ao lado da boca.
Era o único lugar onde ele conseguia respirar sem ser observado.
Ele bateu a porta e apoiou as duas mãos na bancada.
Respiração pesada.
Maxilar travado.
A cena insistia em voltar:
Catarina tremendo diante dele.
Ele encostando a testa na dela.
O quase-beijo.
O calor.
O arrepio.
O desejo.
E a frase que ele disse depois, tentando se salvar:
“Esse toque não aconteceu.”
Mentira.
Aconteceu.
Aconteceu e ficou preso na pele dele como marca quente.
Ele fechou os olhos.
— p***a…
Ele tentou afastar o pensamento, mas as mãos lembravam da pele dela.
A boca lembrava do quase-beijo.
O peito lembrava do medo que ele sentiu quando achou que um tiro podia acertar alguém importante.
Alguém importante.
Ele nunca pensou isso na vida.
E pior:
Ele não sabia o que fazer com isso.
— Você tá me fudendo, Catarina… — ele murmurou. — Tá me fudendo sem nem tocar direito em mim.
O rádio estalou.
—“Chef! Perímetro fechado. Rival sumiu.”
Ele ignorou.
A cabeça dele estava longe.
— Eu não posso sentir isso. — ele falou pra si mesmo.
— Não posso.
Mas podia.
E estava sentindo.
Ele abriu os olhos e bateu a mão na mesa com força.
— c*****o!
O grito ecoou no chão de cimento.
Era raiva.
Mas também era medo.
E também era desejo.
E também era algo que ele não sabia nomear — porque nunca permitiu que existisse.
Catarina, sem conseguir ficar parada, abriu a porta da laje e saiu.
Precisava respirar.
Precisava entender o que estava acontecendo com ela.
Quando chegou na escada, viu dois soldados conversando.
— Ele tá estranho.
— Tá é muito estranho.
— Desde a laje da velha?
— Desde que quase beijou a menina.
— Ele quase beijou?
— Quase não… QUASE.
— p**a merda…
— E agora desconfia dela.
— Normal, né? Filho de polícia…
— Normal nada. A cara dele quando vê ela…
— Eu vi. Muda tudo.
— E isso é perigoso.
Catarina parou de respirar.
Eles continuaram.
— Perigoso pra ele.
— Perigoso pra nós.
— Perigoso pra ela.
— É, porque se ele resolver que ela traiu…
— Aí já era.
O sangue dela gelou.
Ela se afastou antes que notassem sua presença.
Ela sabia que V.K tinha dúvidas.
Mas ouvir isso da boca dos soldados era como levar um tiro no peito.
— Ele acha que eu posso trair? — ela murmurou, a voz falhando.
A dor era estranha, pesada, inesperada.
Ela encostou no muro.
— Eu não fiz nada pra ele duvidar de mim… — sussurrou. — Nada.
Mas o morro não funcionava com lógica.
Funcionava com sobrevivência.
E, para ele, confiar era morrer.
V.K saiu do depósito minutos depois, mais controlado.
Mas não menos confuso.
Tigrão veio ao seu lado.
— Chefia… tem visita.
— Quem?
— A menina.
V.K travou.
— Onde ela tá?
— Lá fora.
— Por que ela veio?
— Sei lá… mulher é bicho sem sentido.
V.K caminhou até a porta do depósito.
Catarina estava lá.
Sozinha.
Assustada.
Linda.
Ele odiou o efeito.
— Que p***a tu tá fazendo aqui? — ele perguntou, a voz baixa.
— Eu precisava falar com você.
— Já falamos.
— Não o suficiente.
— Catarina…
— Não me afasta.
Ele respirou fundo.
— O que tu ouviu?
— Nada.
— Fala.
— Nada, V.K.
— Tô perguntando pela última vez.
— Eu ouvi soldados falando.
Ele estreitou os olhos.
— Falando o quê?
— Que você acha que eu posso te trair.
Silêncio.
Catarina continuou:
— E isso dói.
O peito dele travou.
— Eu… não sei o que pensar. — ele disse, sincero demais.
— Então pensa comigo aqui.
— Catarina—
— EU NÃO VOU TE TRAIR.
— O morro não funciona assim.
— EU NÃO SOU MORRO.
— Eu sei.
— ENTÃO ME OLHA COMO GENTE!
Ele se aproximou.
— Eu olho.
— Não olha.
— Olho sim.
— Não.
— Olho…
Ele respirou fundo.
— …até demais.
Um silêncio pesado caiu entre eles.
Ele estendeu a mão.
Ela hesitou.
Mas ele tocou o braço dela, leve, como se tivesse medo de quebrar.
— Catarina…
— O quê?
— Traficante também sente.
O mundo dela girou.
Ele completou:
— E é por isso que tu me assusta mais do que a polícia.
Era verdade.
A mais nua que ele já disse.
Ele sentia.
Ele temia sentir.
Ele tentava negar sentir.
E sentia mesmo assim.
Catarina ergueu o rosto, devagar.
— Você sente… o quê?
— Não sei.
— Sabe sim.
— Não sei.
— V.K…
Ela tocou a mão dele.
Ele fechou os olhos como se aquilo queimasse.
— Eu sinto coisa demais. — ele finalmente admitiu. — E coisa demais aqui mata.
Ela sorriu triste.
— Então a culpa não é minha.
— É sim.
— Por quê?
— Porque tu entrou onde não devia.
Ela deu um passo pra frente.
— E você… entrou onde não devia também.
Ele abriu os olhos.
Escuros.
Quentes.
Perigosos.
— Eu entrei. — ele disse. — E agora não sei sair.
Ela tomou coragem:
— Então não sai.
Ele encostou a testa na dela outra vez.
Dessa vez, mais firme.
— Catarina…
— V.K…
— Se tu me destruir…
— Eu não vou.
— Tu vai sem querer.
— E se eu salvar?
Ele sorriu de canto, triste e bonito.
— Aí eu não sei o que faço.
Um novo tiro ecoou ao longe.
Ele se afastou rápido.
— Eu tenho que ir.
— Eu sei.
— Fica na tua laje.
— Tá.
— Se morrer…
— Você não vai morrer.
— Se morrer…
Ele segurou o rosto dela uma última vez.
— …eu volto pra te assombrar.
Ela sorriu.
Ele sorriu também.
E então sumiu na viela.
Deixando Catarina com a certeza:
Ele sentia.
Ele tinha medo de sentir.
E esse medo era o começo do caos.