O Coração que Ele não quer Ter

1629 Words
A manhã chegou com um silêncio incômodo, um tipo de paz que não era paz — era apenas o intervalo entre duas tempestades. Na Vila Kennedy, os moradores sabiam reconhecer quando algo estava prestes a acontecer. O jeito como os homens da boca caminhavam rápido, como as motos eram escondidas atrás das casas, como os rádios chiavam sem parar… tudo dizia a mesma coisa: O BOPE ia voltar. E o morro inteiro estava segurando a respiração. Catarina acordou com a avó chamando seu nome. — Menina. — Hm? — Vem aqui um instante. Catarina levantou preguiçosa, ainda pensando na conversa da noite anterior. A imagem de V.K encostado na varanda, dividido entre o desejo e o controle, ainda estava presa na cabeça dela — e aquilo mexia de um jeito que ela não queria admitir. Descalça, ela saiu do quarto. Dona Nilva estava na porta, encarando algo lá embaixo. — O que é? — Catarina perguntou. — O morro mudou. — Mudou como? — Olha. Catarina se aproximou e viu um soldado plantado na entrada da viela. Outro na escada lateral. Dois na esquina. Todos armados. Todos atentos. — Isso é por causa da guerra? — É por causa de ti. — De mim? — Da conversa que tu teve hoje cedo. O coração de Catarina acelerou. — Ele falou alguma coisa? — Não precisou. — Como assim? — Homem apaixonado não precisa falar pra mostrar. Catarina arregalou os olhos. — Vó, ele não tá apaixonado. — Não ainda. — Nem vai— — Vai sim. — Você fala como se fosse certo. — É. — Por quê? — Porque tu é a única que não abaixa a cabeça. Catarina suspirou, irritada. — Eu não quero isso. — Tu não manda no que ele sente. — Eu não quero sentir nada também. — Então para de olhar pra ele como tu olha. A avó entrou para pegar o café. Catarina ficou ali, respirando fundo. Um soldado a viu e abaixou a cabeça em respeito — algo que ninguém fazia com novata. Todos ali já sabiam que ela tinha virado assunto. Ela murmurou: — Eu preciso sair daqui. Mas, antes que pudesse se mover, o som grave da moto dele ecoou pela viela. E seu corpo paralisou. V.K subiu devagar, sem pressa, como quem tem o morro inteiro sob os pés. A camisa ligeiramente levantada pela arma na cintura, o cordão balançando no pescoço, os olhos escuros como noite sem lua. Ele subiu os últimos escalões e parou em frente à laje da avó. Catarina cruzou os braços. Ele ergueu uma sobrancelha. — Tá brava? — Não. — Tá sim. — Não tô. — Tá. — Não tô! — Tá, p***a. Ela bufou. — O que você quer? — ela perguntou. — Te ver. A resposta veio rápida, sincera, impulsiva demais para alguém como ele. Catarina piscou. — Me ver… por quê? — Porque tu não dormiu. — Como você sabe? — Eu sei tudo que acontece aqui. — Isso não é resposta. — É sim. — Não é. — É. Ela pressionou os lábios, irritada com o jeito dele de cortar conversa quando queria. — Tu comeu? — ele perguntou. — Não. — Vai comer. — Não tô com fome. — Tu vai comer. — Não vou— — Vai. Catarina sentiu a irritação crescer. — Eu não sou uma das suas mulheres. — Eu sei. — Então para de mandar em mim. — Não tô mandando. — Tá sim! — Tô cuidando. — Eu não pedi que cuidasse. Ele se aproximou. Um passo. Mais um. Outro. Agora ela sentia a respiração dele. — Tu não precisa pedir. — ele disse. Ela arregalou os olhos. — Preciso sim. — Não precisa. — Preciso, porque eu não sou carga sua. — Eu não falei que é. — Então por que você age como se fosse? — Porque tu anda como se fosse invencível. Catarina piscou, surpresa com a sinceridade. — E isso incomoda você? — Incomoda. — Por quê? — Porque tu tá num lugar onde até homem grande morre se vacilar. — Eu não vou vacilar. — Já vacilou ontem. Ela respirou fundo, sem saber se queria socar ou abraçar ele. — Você não tem que me proteger. — ela disse. — Tenho sim. — Não tem. — Tenho. Ela cruzou os braços. — Por quê? Ele hesitou. E essa hesitação parecia mais íntima que um beijo. — Porque eu quero. — ele respondeu por fim. Catarina sentiu o coração bater forte. — Eu não sou responsabilidade sua. — Eu sei. — Então por que— — Porque tu mexe comigo. Ela abriu a boca, chocada. — O quê? — Tu mexe. — Eu… não sei o que dizer. — Não precisa dizer nada. Ele passou a mão pela nuca, irritado consigo mesmo. — Eu nem devia tá aqui. — ele murmurou. — Então por quê veio? — Porque acordei pensando se tu tava bem. As palavras bateram nela com força. — Isso não é certo. — ela disse. — Não é. — Então por que— — Catarina. — ele interrompeu, com voz baixa. — Eu não perco homem por causa de sentimento. — E você tá com sentimento? — Não sei. — Sabe sim. Ele aproximou mais, encostando o braço na parede ao lado do rosto dela. Era uma semi-prisão, mas não de força — de sinceridade. — Tu entrou aqui ontem como se fosse dona da p***a toda. — Não entrei. — Entrou. — Você que veio atrás. — Porque tu tava na beira do tiro. — Eu tava ajudando alguém. — Tu tava morrendo. Ela engoliu seco. — E você não queria que eu morresse. — ela disse. Ele fechou os olhos um segundo. — Não. — Por quê? — Porque não. — Isso não é resposta. — É a única que eu tenho. A voz dele estava rouca, pesada. Ela abaixou o rosto, mas ele levantou o queixo dela com um dedo. — Catarina. — O quê? — Tu não entende… Ele buscava palavras que nunca teve que usar. — Eu não tenho coração pra sentir essas coisas. — Tem sim. — Não tenho. — Tem. — Catarina… — Se não tivesse, você não estaria aqui. — Eu tô aqui porque sou teimoso. — Não. — Sou sim. — Você tá aqui porque se importa. Ele apertou o maxilar, irritado com a verdade que ela jogava sem medo. — Tu não pode ficar falando assim. — ele disse. — Assim como? — Como se fosse normal alguém olhar pra mim e enxergar homem. — Você é homem. — Eu sou monstro. — Não é. — Tu não sabe. — Eu sei. — Não sabe do que eu já fiz. — Eu sei o que você fez ontem. — Ontem eu matei. — E salvei. Ele piscou como se aquela palavra tivesse acertado o peito. — Você salvou seu soldado. Salvou gente da vila. Salvou eu e minha avó, mesmo sem admitir. Ele virou o rosto, respirando fundo. — Eu não salvei ninguém. — Salvou sim. — Não fala isso. — Por quê? — Porque eu não posso me ver assim. — E por que não? — Porque o dia que eu achar que tenho coração… eu morro. Catarina sentiu uma dor inesperada. — Você não precisa morrer pra sentir. — Eu não posso sentir. — Pode. — Não posso, c*****o! Ele bateu a mão na parede ao lado dela — não de raiva dela, mas de conflito interno. O impacto fez poeira cair. Catarina não recuou. — O que você tá tentando evitar? — ela perguntou. — Tu. — Eu? — É. — Por quê? — Porque tu quebra minhas regras. — Quais regras? — A de não olhar pra ninguém. — A de não sentir nada. — A de não proteger quem não é do morro. — A de não querer alguém perto. Ela ficou sem ar. Ele completou: — E tu tá quebrando tudo. Ela abaixou o olhar, sem saber onde colocar as mãos. — Eu não tô tentando fazer nada disso. — Eu sei. — Então por que acontece? — Porque tu é doida. — Eu não sou doida. — É sim. — Não sou. — É. Ela riu pela primeira vez no dia. Ele não riu, mas sua expressão suavizou — só um pouco. Um soldado subiu correndo a viela. — Chefia! V.K virou rápido. — Que foi? — Teu informante chamou. — O Vasila? — É. — E aí? — Disse que o capitão tá preparando outra batida. — Quando? — Hoje. O corpo de V.K endureceu. — Fala pra todo mundo fechar de novo. — Fechando. O soldado desceu correndo. V.K fechou os olhos por um segundo — e quando abriu, a expressão era totalmente diferente. Era de guerra. Era de comando. Era de Don. Ele olhou para Catarina. — Fica dentro da p***a dessa laje. — Eu— — Eu tô mandando. — E se— — SE TU SAIR, EU TE BUSCO NOS INFERNOS. Ela engoliu seco. Era proteção. Mas era proteção que vinha com medo. Medo dele. Medo por ela. Ele deu um passo para trás, a respiração pesada. — Eu não tenho coração. — ele disse, como se quisesse acreditar nisso. — Tem sim. — ela sussurrou. Ele virou o rosto — porque se olhasse mais um segundo, não iria conseguir ir embora. Desceu a escada rápido. Catarina ficou na varanda, abraçando a si mesma. E percebeu algo: Ele tentava negar o próprio coração. Mas era tarde demais. Porque ela já tinha visto. Já tinha sentido. Já tinha entendido. E aquilo colocaria os dois no centro de uma guerra muito maior do que o BOPE. Uma guerra dentro dele. E uma guerra dentro dela.
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