A noite caiu na Vila Kennedy como uma cortina pesada. Lá embaixo, o som de motos, conversas cortadas e rádios chiando se misturava ao vento quente que entrava pela janela da laje de Dona Nilva. Catarina tentava se acostumar à nova rotina, mas seu corpo ainda parecia não pertencer totalmente àquele lugar — como se tivesse deixado algo para trás e estivesse recebendo algo que ainda não entendia.
Ela arrumava as panelas no armário quando a avó comentou, do nada:
— O morro tá diferente hoje.
— Diferente como? — Catarina perguntou, concentrada nas tampas.
— Mais alerta.
— É sempre assim?
— Não.
— Então por quê?
— Porque tu chegou.
Catarina riu, achando graça da superstição.
— Vó, eu não sou tão importante assim.
— É sim. Quando pessoa chega com destino pesado, o morro sente.
— E eu tenho destino pesado?
— Não sei ainda. Mas tu mexeu com quem manda.
— Eu não fiz nada.
— Às vezes só existir é o suficiente.
Catarina não respondeu.
Guardou a panela, fechou o armário e respirou fundo.
Não queria pensar em V.K.
Mas pensar era inevitável.
O jeito que ele a olhou.
O jeito que ele não recuou.
O jeito que ele pareceu… intrigado.
Quase irritado por estar intrigado.
Ela não entendia.
E não queria entender.
— Vou até a bica buscar mais água. — disse, pegando o balde.
— Vai não.
— Por quê?
— Porque já tá tarde.
— É só ali embaixo.
— É tarde.
Catarina hesitou.
— Por que tarde aqui parece mais perigoso do que tarde em qualquer lugar?
— Porque aqui noite é de quem manda.
— E quem manda é ele, né?
— É.
Aquela palavra ecoou dentro dela de um jeito incômodo.
Ainda assim, Catarina desceu a escada com o balde vazio.
Precisava de alguns minutos sozinha — minutos em que não fosse “a neta da Dona Nilva” e não fosse “a menina nova que chamou atenção do Don”.
Precisava respirar.
A bica ficava três vielas abaixo. O caminho não era bonito, mas tinha vida.
Luzes improvisadas nos postes, paredes grafitadas, crianças brincando de pega-pega antes do toque de recolher tácito que todos respeitavam.
Quando Catarina chegou, só havia duas mulheres enchendo baldes.
Elas a cumprimentaram com um aceno tímido.
— É nova aqui? — perguntou uma delas.
— Sou.
— Mora onde?
— Na laje da Dona Nilva.
— Ahhh… a avó da menina gordinha.
Catarina franziu o cenho.
— Eu sou a gordinha.
— Tu é bonita.
— Obrigada.
Duas crianças passaram correndo, rindo.
Um cachorro latiu ao longe.
A cena era tão comum, tão simples, que Catarina relaxou.
Mas apenas por vinte segundos.
Porque o rádio de um soldado na esquina chiou:
—“Chef, passou visão? O carro branco tá voltando.”
Catarina olhou para trás.
Três soldados se moveram rápido.
Dois fecharam a viela.
Um subiu o beco correndo.
A outra mulher murmurou:
— Melhor tu encher esse balde rápido.
— Por quê?
— Porque quando eles correm… a gente para.
Catarina engoliu seco.
Encheu o balde.
Mas, quando virou para subir, deu de cara com um grupo de soldados posicionados estrategicamente.
No centro deles, como se fosse o núcleo gravitacional do morro inteiro, estava ele.
V.K.
Mais uma vez.
Só que dessa vez, ele não estava curioso.
Não estava analisando.
Não estava intrigado.
Ele estava perigoso.
O olhar varreu a viela inteira até parar nela.
E quando parou…ficou.
Ela não soube se se sentia presa ou observada.
Talvez as duas coisas.
Ele desceu dois degraus da escada lateral, aproximando-se dela com passos lentos — não de ameaça, mas de domínio.
Tigrão resmungou:
— Chefia… deixa a menina ir.
— Cala a boca, Tigrão.
O Don se aproximou até ficar a pouco mais de um metro.
Catarina segurou firme o balde, mas não fugiu.
— O que tu tá fazendo aqui embaixo essa hora? — ele perguntou.
— Pegando água.
— Tu não sabe que o morro muda de dono depois das oito?
— Eu pensei que fosse sempre seu.
— É.
— Então eu tô segura.
— Não disse isso.
— Então por que você tá perguntando?
Ele respirou fundo.
Era irritante o quanto ela não recuava.
— Tu devia ter ficado na tua laje.
— Eu precisava de água.
— Pedia pra tua avó.
— Ela tava ocupada.
— Pedia pra qualquer morador.
— Eu não sou inválida.
Ele aproximou o rosto só um pouco.
— Tu não anda sozinha aqui à noite.
— Eu ando onde eu quiser.
Tigrão apertou o olho como quem pensava ela vai morrer hoje.
V.K inclinou o corpo, analisando o balde cheio.
— Tu não tem medo de nada, né?
— Tenho sim.
— De quê?
— De gente que acha que manda em mim.
Ele arqueou a sobrancelha.
— Tá falando de mim?
— Se servir.
— Tu é abusada.
— E tu é mandão.
Um dos soldados tossiu para disfarçar o riso.
V.K virou a cabeça devagar.
— Ri de novo e tu fica sem dente.
— Foi m*l, chefia.
Catarina engoliu a risada.
Mas o olhar dela continuava firme.
E era esse olhar que estava dando problema.
Porque ninguém olhava para o Don assim.
Ninguém tinha luz no olhar diante dele.
Ninguém dizia “não” para ele.
Ninguém dizia “tu é mandão”.
Aquele olhar…aquele olhar desarmava.
Não porque era doce.
Não porque era ousado.
Mas porque era sincero.
Era olhar de mulher que ainda não sabia quem ele era — e, talvez, justamente por isso, não o temia.
— Me dá esse balde. — V.K disse.
— Pra quê?
— Vou subir contigo.
— Eu posso subir sozinha.
— Não pedi tua opinião.
— E eu não pedi sua ajuda.
Ele tirou o balde da mão dela.
Simples assim.
Sem dar chance.
— Ei!
— Cala a boca e sobe.
— Não fala assim comigo.
— Falo sim.
— Não fala.
— Falo.
— Não fala!
— Cala e sobe.
Ela subiu.
Morrendo de ódio e, ao mesmo tempo, com um frio na barriga inexplicável.
V.K seguia atrás, carregando o balde como se fosse leve.
Os soldados observavam com a expressão confusa de quem estava vendo um fenômeno inexplicável:
O Don…carregando o balde de uma mulher.
Aquilo nunca tinha acontecido.
Nunca.
Na metade da escada, ele falou:
— Se tu vai morar aqui…
— Eu vou.
— Então aprende uma coisa.
— Fala.
— Esse morro tem regra.
— Qual?
— Não andar sozinha de noite.
— Eu não sou criança.
— f**a-se.
— Eu não vou seguir regra só porque você mandou.
— Vai.
— Não vai mandar em mim.
— Já tô mandando.
Eles pararam um na frente do outro.
— Tu acha que eu tenho medo de você? — ela perguntou.
— Não acho.
— Ótimo.
— Mas tu devia.
Ele deu mais um passo.
Quase encostando.
— Por quê? — ela perguntou, firme.
— Porque eu não sou homem normal.
O silêncio pesou.
O ar ficou quente.
Os olhos dos dois se prenderam um no outro como se algo estivesse sendo puxado — não físico, não consciente, mas inevitável.
E naquele breve segundo… um entendimento silencioso aconteceu.
Um entendimento que nenhum dos dois admitiria tão cedo.
— V.K? — Tigrão chamou lá de baixo. — Carro suspeito voltando!
— Tô indo. — ele respondeu, sem quebrar o olhar com Catarina.
Mas então ele disse, baixo, quase íntimo:
— Da próxima vez…
Ele encostou o balde no chão, perto dela.
— …me chama.
— Eu não preciso—
— Chama.
Ele virou e desceu sem esperar resposta.
Catarina ficou parada, tentando entender o que tinha acontecido.
A avó apareceu na porta.
— Menina…
— Oi, vó.
— Tu deixou o Don te seguir?
— Eu deixei nada.
— Então ele foi atrás porque quis?
— É.
— Hummm…
Catarina franziu a testa.
— O que foi, vó?
— Ele olhou pra tu como homem olha pra perigo.
— Isso é bom?
— É r**m.
— Por quê?
— Porque homem assim não olha duas vezes pra mulher nenhuma…
Ela apontou para a neta.
— …e olhou duas vezes pra tu.
Catarina respirou fundo.
A verdade era essa:
O olhar dele atingiu ela.
O olhar dela atingiu ele.
E nenhum dos dois estava preparado.
Na rua de baixo, Tigrão caminhava ao lado de V.K, balançando a cabeça.
— Chefia… tu tava estranho lá em cima.
— Cala a boca.
— Tava sim.
— Falei pra calar a boca.
— Tu carregou balde, chefia.
— Tigrão…
— Chefia, o senhor CARREGOU balde de mulher.
— Última vez que falo… cala a boca.
Mas V.K também sabia.
Aquele olhar dela não era normal.
Aquele olhar tinha desarmado ele.
Por dentro.
E isso era mais perigoso que qualquer operação do BOPE.