O Olhar que Desarmou o Don

1478 Words
A noite caiu na Vila Kennedy como uma cortina pesada. Lá embaixo, o som de motos, conversas cortadas e rádios chiando se misturava ao vento quente que entrava pela janela da laje de Dona Nilva. Catarina tentava se acostumar à nova rotina, mas seu corpo ainda parecia não pertencer totalmente àquele lugar — como se tivesse deixado algo para trás e estivesse recebendo algo que ainda não entendia. Ela arrumava as panelas no armário quando a avó comentou, do nada: — O morro tá diferente hoje. — Diferente como? — Catarina perguntou, concentrada nas tampas. — Mais alerta. — É sempre assim? — Não. — Então por quê? — Porque tu chegou. Catarina riu, achando graça da superstição. — Vó, eu não sou tão importante assim. — É sim. Quando pessoa chega com destino pesado, o morro sente. — E eu tenho destino pesado? — Não sei ainda. Mas tu mexeu com quem manda. — Eu não fiz nada. — Às vezes só existir é o suficiente. Catarina não respondeu. Guardou a panela, fechou o armário e respirou fundo. Não queria pensar em V.K. Mas pensar era inevitável. O jeito que ele a olhou. O jeito que ele não recuou. O jeito que ele pareceu… intrigado. Quase irritado por estar intrigado. Ela não entendia. E não queria entender. — Vou até a bica buscar mais água. — disse, pegando o balde. — Vai não. — Por quê? — Porque já tá tarde. — É só ali embaixo. — É tarde. Catarina hesitou. — Por que tarde aqui parece mais perigoso do que tarde em qualquer lugar? — Porque aqui noite é de quem manda. — E quem manda é ele, né? — É. Aquela palavra ecoou dentro dela de um jeito incômodo. Ainda assim, Catarina desceu a escada com o balde vazio. Precisava de alguns minutos sozinha — minutos em que não fosse “a neta da Dona Nilva” e não fosse “a menina nova que chamou atenção do Don”. Precisava respirar. A bica ficava três vielas abaixo. O caminho não era bonito, mas tinha vida. Luzes improvisadas nos postes, paredes grafitadas, crianças brincando de pega-pega antes do toque de recolher tácito que todos respeitavam. Quando Catarina chegou, só havia duas mulheres enchendo baldes. Elas a cumprimentaram com um aceno tímido. — É nova aqui? — perguntou uma delas. — Sou. — Mora onde? — Na laje da Dona Nilva. — Ahhh… a avó da menina gordinha. Catarina franziu o cenho. — Eu sou a gordinha. — Tu é bonita. — Obrigada. Duas crianças passaram correndo, rindo. Um cachorro latiu ao longe. A cena era tão comum, tão simples, que Catarina relaxou. Mas apenas por vinte segundos. Porque o rádio de um soldado na esquina chiou: —“Chef, passou visão? O carro branco tá voltando.” Catarina olhou para trás. Três soldados se moveram rápido. Dois fecharam a viela. Um subiu o beco correndo. A outra mulher murmurou: — Melhor tu encher esse balde rápido. — Por quê? — Porque quando eles correm… a gente para. Catarina engoliu seco. Encheu o balde. Mas, quando virou para subir, deu de cara com um grupo de soldados posicionados estrategicamente. No centro deles, como se fosse o núcleo gravitacional do morro inteiro, estava ele. V.K. Mais uma vez. Só que dessa vez, ele não estava curioso. Não estava analisando. Não estava intrigado. Ele estava perigoso. O olhar varreu a viela inteira até parar nela. E quando parou…ficou. Ela não soube se se sentia presa ou observada. Talvez as duas coisas. Ele desceu dois degraus da escada lateral, aproximando-se dela com passos lentos — não de ameaça, mas de domínio. Tigrão resmungou: — Chefia… deixa a menina ir. — Cala a boca, Tigrão. O Don se aproximou até ficar a pouco mais de um metro. Catarina segurou firme o balde, mas não fugiu. — O que tu tá fazendo aqui embaixo essa hora? — ele perguntou. — Pegando água. — Tu não sabe que o morro muda de dono depois das oito? — Eu pensei que fosse sempre seu. — É. — Então eu tô segura. — Não disse isso. — Então por que você tá perguntando? Ele respirou fundo. Era irritante o quanto ela não recuava. — Tu devia ter ficado na tua laje. — Eu precisava de água. — Pedia pra tua avó. — Ela tava ocupada. — Pedia pra qualquer morador. — Eu não sou inválida. Ele aproximou o rosto só um pouco. — Tu não anda sozinha aqui à noite. — Eu ando onde eu quiser. Tigrão apertou o olho como quem pensava ela vai morrer hoje. V.K inclinou o corpo, analisando o balde cheio. — Tu não tem medo de nada, né? — Tenho sim. — De quê? — De gente que acha que manda em mim. Ele arqueou a sobrancelha. — Tá falando de mim? — Se servir. — Tu é abusada. — E tu é mandão. Um dos soldados tossiu para disfarçar o riso. V.K virou a cabeça devagar. — Ri de novo e tu fica sem dente. — Foi m*l, chefia. Catarina engoliu a risada. Mas o olhar dela continuava firme. E era esse olhar que estava dando problema. Porque ninguém olhava para o Don assim. Ninguém tinha luz no olhar diante dele. Ninguém dizia “não” para ele. Ninguém dizia “tu é mandão”. Aquele olhar…aquele olhar desarmava. Não porque era doce. Não porque era ousado. Mas porque era sincero. Era olhar de mulher que ainda não sabia quem ele era — e, talvez, justamente por isso, não o temia. — Me dá esse balde. — V.K disse. — Pra quê? — Vou subir contigo. — Eu posso subir sozinha. — Não pedi tua opinião. — E eu não pedi sua ajuda. Ele tirou o balde da mão dela. Simples assim. Sem dar chance. — Ei! — Cala a boca e sobe. — Não fala assim comigo. — Falo sim. — Não fala. — Falo. — Não fala! — Cala e sobe. Ela subiu. Morrendo de ódio e, ao mesmo tempo, com um frio na barriga inexplicável. V.K seguia atrás, carregando o balde como se fosse leve. Os soldados observavam com a expressão confusa de quem estava vendo um fenômeno inexplicável: O Don…carregando o balde de uma mulher. Aquilo nunca tinha acontecido. Nunca. Na metade da escada, ele falou: — Se tu vai morar aqui… — Eu vou. — Então aprende uma coisa. — Fala. — Esse morro tem regra. — Qual? — Não andar sozinha de noite. — Eu não sou criança. — f**a-se. — Eu não vou seguir regra só porque você mandou. — Vai. — Não vai mandar em mim. — Já tô mandando. Eles pararam um na frente do outro. — Tu acha que eu tenho medo de você? — ela perguntou. — Não acho. — Ótimo. — Mas tu devia. Ele deu mais um passo. Quase encostando. — Por quê? — ela perguntou, firme. — Porque eu não sou homem normal. O silêncio pesou. O ar ficou quente. Os olhos dos dois se prenderam um no outro como se algo estivesse sendo puxado — não físico, não consciente, mas inevitável. E naquele breve segundo… um entendimento silencioso aconteceu. Um entendimento que nenhum dos dois admitiria tão cedo. — V.K? — Tigrão chamou lá de baixo. — Carro suspeito voltando! — Tô indo. — ele respondeu, sem quebrar o olhar com Catarina. Mas então ele disse, baixo, quase íntimo: — Da próxima vez… Ele encostou o balde no chão, perto dela. — …me chama. — Eu não preciso— — Chama. Ele virou e desceu sem esperar resposta. Catarina ficou parada, tentando entender o que tinha acontecido. A avó apareceu na porta. — Menina… — Oi, vó. — Tu deixou o Don te seguir? — Eu deixei nada. — Então ele foi atrás porque quis? — É. — Hummm… Catarina franziu a testa. — O que foi, vó? — Ele olhou pra tu como homem olha pra perigo. — Isso é bom? — É r**m. — Por quê? — Porque homem assim não olha duas vezes pra mulher nenhuma… Ela apontou para a neta. — …e olhou duas vezes pra tu. Catarina respirou fundo. A verdade era essa: O olhar dele atingiu ela. O olhar dela atingiu ele.  E nenhum dos dois estava preparado. Na rua de baixo, Tigrão caminhava ao lado de V.K, balançando a cabeça. — Chefia… tu tava estranho lá em cima. — Cala a boca. — Tava sim. — Falei pra calar a boca. — Tu carregou balde, chefia. — Tigrão… — Chefia, o senhor CARREGOU balde de mulher. — Última vez que falo… cala a boca. Mas V.K também sabia. Aquele olhar dela não era normal. Aquele olhar tinha desarmado ele. Por dentro. E isso era mais perigoso que qualquer operação do BOPE.
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