A noite caiu, mas ninguém no morro descansou.
O ar tinha gosto de ferro.
Cada passo ecoava como alerta.
Cada olhar parecia carregar medo ou fome — ou os dois.
Catarina tentou dormir, mas era impossível.
A mente dela ainda estava no momento em que V.K encostou a testa na dela.
Ainda estava no toque das mãos dele.
Ainda estava no “traficante também sente”.
E agora, ao fundo, os rádios dos soldados subiam e desciam como batimentos cardíacos:
—“Movimento na entrada dois.”
—“Carro sem placa descendo a principal.”
—“Informante viu tropa se reunir perto da UPP.”
Ela levantou e caminhou até a varanda.
Dona Nilva estava acordada, sentada na cadeira de balanço, rezando baixo.
— Não consegue dormir, vó?
— Quem dorme com a guerra à porta?
— Eles vão atacar?
— Tua intuição já não te disse?
— Disse.
A avó a encarou por longos segundos.
— Tu gosta dele.
— Não começa.
— Gosta sim.
— Não gosto.
— Então por que tu treme toda vez que alguém fala o nome dele?
Catarina sentiu o rosto esquentar.
— Eu não sei o que eu sinto.
— Tu sabe.
— Vó… ele é perigoso.
— Todo mundo é perigoso quando ama errado.
— Ele não ama.
— Ama sim, só não sabe lidar.
— Não fala isso.
— E tu ama também.
— Eu não amo!
— Ama sim.
Catarina apertou o corrimão.
O pior é que, no fundo, havia algo nela que reconhecia.
Algo que ela tentava negar, mas crescia como chama.
Um barulho de rádio cortou o ar.
—“CHEF! TROPA SE MOVIMENTANDO. REPITO: TROPA SE MOVIMENTANDO.”
Catarina congelou.
A avó levantou-se imediatamente.
— Entra, menina.
— Eu preciso ver.
— Entra agora!
— Eu preciso ver se ele—
— TU NÃO VAI DESCER A LAJE!
A porta bateu.
Mas era tarde demais.
Catarina já tinha saído pela lateral, descendo a escada escondida que a avó raramente usava.
V.K estava no beco central, cercado de seus homens.
Ele parecia pronto para guerra.
Camisa preta grudada no corpo.
Corrente brilhando no pescoço.
Arma presa na cintura.
Olhos alertas — olhos que tinham perdido o brilho macio de antes.
Ele ouviu o rádio de novo.
—“Quatro carros descendo a ladeira lateral.”
— BOPE? — perguntou Tigrão.
— Ou Rival querendo brincar. — outro soldado respondeu.
V.K ergueu a mão.
Silêncio imediato.
— Continua o monitoramento.
— Já tamo olhando tudo, chefia.
— Quero todo mundo posicionado.
— Fechando.
Ele olhou em volta.
— E ninguém atira primeiro.
— Chefia… mas se for—
— NÃO ATIRA.
— Mas se for emboscada—
— NÃO ATIRA.
Tigrão arregalou os olhos.
— Por quê?
— Porque tem uma pessoa no caminho.
— Quem?
— Ela.
Todos entenderam.
Todos olharam discretamente em direção à laje da Dona Nilva.
Mas V.K percebeu algo.
Ela não estava lá.
— Cadê ela? — ele perguntou, baixo.
— Quem? — Tigrão respondeu.
— A Catarina.
— Ué… deve tá na laje.
— Não tá.
Tigrão olhou rapidamente.
— p**a que pariu.
V.K apertou o rádio.
— “Vigia a laje dela agora!”
—“Chef! Ela não tá.”
— Óbvio, c*****o!
— Chefia…
— Ela desceu.
Tigrão arregalou os olhos.
— Por quê?
— Porque ela é teimosa.
— Teimosa é pouco… ela é maluca!
Um soldado apontou para a viela à esquerda.
— CHEF! OLHA!
Catarina surgiu.
Correndo.
Assustada.
E linda.
Sempre linda nos piores momentos.
V.K sentiu o coração bater como tiro.
— Catarina! — ele gritou. — VOLTA PRA LAJE!
— Eu preciso falar com você!
— AGORA NÃO!
— É urgente!
Tigrão segurou a cabeça.
— Meu Deus do céu…
Catarina parou na frente dele, ofegante.
— Eles vão subir.
— Eu sei.
— Eles não tão vindo por causa de você.
— Eu sei também.
— Eles tão vindo por causa de mim.
— Eu SEI!
Ela tentou respirar fundo.
— Então por que você tá aqui?
— Porque…
Ela engoliu seco.
— Porque eu tô com medo por você.
Os olhos dele mudaram.
Perigosamente.
Mas ele segurou o queixo dela.
— Eu já falei…
— O quê?
— Medo por mim, não.
— Mas eu—
— Não sente por mim.
Ela tirou a mão dele do rosto.
— Eu vou sentir o que eu quiser.
— AQUI NÃO.
— Aqui também.
— Tu tá me deixando fraco.
— E você tá me deixando louca.
Tigrão quase riu.
— Vocês dois tão fodidos. — murmurou.
V.K apagou o olhar por um segundo, respirando fundo.
— Catarina… vai embora.
— Não.
— Vai.
— Eu não vou te deixar aqui.
— Eu tô sempre aqui.
— É isso que me assusta.
— Então some.
Ela encarou ele como se recebesse um tapa.
— Você quer que eu vá?
— Agora, sim.
— Você tá me expulsando?
— Tô mandando pro teu bem.
— Você não manda em mim.
— Mando sim.
— Não manda!
— MANDO!
— ENTÃO EU DESOBEÇO!
As palavras dela ecoaram no beco.
Silêncio tenso.
V.K respirou fundo, por três segundos longos, antes de dizer:
— Tu vai me matar, menina.
Mas antes que ela pudesse responder, o rádio gritou:
—“CHEF! TROPA CONFIRMADA. REPITO: BOPE SUBINDO!”
Todos gelaram.
Tigrão arregalou os olhos.
— Chefia… tá vindo pesado.
— Quantos? — V.K perguntou.
— Uns vinte.
— Armamento?
— Forte.
— E posição?
— Lado direito.
— Pior lado.
V.K virou-se para Catarina.
— SAI DAQUI.
— Eu não—
— SAI.
Ela hesitou.
Ele pegou o braço dela, firme mas sem machucar, e puxou.
— Escuta…
— Tô escutando.
— Se tu ficar aqui, tu morre.
— E você também pode morrer!
— A diferença é que eu nasci sabendo disso. Tu não.
Ela abriu a boca, mas ele colocou a mão atrás da nuca dela.
— Catarina…
— O quê?
— Vai. Pelo amor de Deus.
Ela piscou rapidamente.
Aquela foi a primeira vez que ele disse algo assim:
“Pelo amor de Deus.”
Ele nunca falava isso.
— Eu volto. — ela sussurrou.
— Não volta até eu chamar.
— Tá.
— Vai.
— Você promete?
— Eu prometo.
Ela deu três passos para trás.
Mas antes de ir, disse:
— Cuidado.
— Eu sempre tenho.
— Mentiroso.
— Sai daqui antes que eu te beije pra te calar.
Ela congelou.
Ele também.
E foi ele quem desviou o olhar primeiro.
— Vai, p***a.
Ela correu.
Tigrão veio ao lado de V.K.
— Chefia… ela te desmonta.
— Cala a boca.
— Mas desmonta bonito.
— Cala.
— Tá apaixonado.
— Tigrão…
— O que foi?
— Arruma um colete extra.
— Pra quem?
— Pra mim.
Ele sorriu de lado.
— Hoje…
Ele encaixou a arma.
— …eu não posso morrer.
Tigrão piscou.
— Por causa dela?
— Por causa de mim. Eu ainda não decidi o que eu sinto.
O rádio gritou de novo:
—“BOPE NA ENTRADA!”
V.K ergueu o braço.
— FECHA O MORRO!
— FECHANDO!
— TODO MUNDO POSICIONADO!
— POSICIONADO!
— E NINGUÉM ATIRA ATÉ EU MANDAR!
Ele respirou fundo.
E murmurou, baixo, para si mesmo:
— Catarina… não olha daqui de cima. Não hoje.
Porque naquela noite, o morro ia gritar.
E ele sabia:
A guerra tinha começado.
E o pior inimigo estava dentro dele.