Massageando a têmpora na esperança de amenizar as pontadas na cabeça, Simon ouvia entediado o que a morena, de olhos negros, cabelo marrom, vestindo um microvestido azul dizia. A voz dela era irritante, o cruzar e descruzar de pernas eram irritantes e as caras e bocas eram irritantes. Tudo naquela mulher o irritava, mas o principal era que ela o obrigava a perder seu precioso tempo para entrevistá-la quando era óbvio que desejava muito mais que ser sua governanta. Era evidente no modo de sorrir, de fingir ter pudor ao puxar devagar a barra do vestido ultrajusto para cobrir — obviamente sem sucesso — as coxas grossas e no modo como se inclinava por qualquer motivo oferecendo ao Salvatore uma bela visão dos s***s fartos.
Cerrou os olhos por um instante após a oitava vez que ela cruzou e descruzou vagarosamente as pernas desde que começara a entrevistá-la. Presumia que ela assistira Instinto Selvagem [1]demais.
Não era a primeira entrevistada a se insinuar descaradamente para ele. E em outro dia, em outro local ou até mesmo ali, após uma noite produtiva na balada, Simon aceitaria com satisfação o convite. Só que, por uma questão de bom senso, não seria louco de contratar uma mulher que faria hora-extra em sua cama. Jamais teria sexo casual com alguém que possuísse total acesso a sua casa e que em um impulso de raiva colocasse fogo em tudo.
No momento, a única coisa que desejava era contratar alguém para deixar seu apartamento em ordem, suas roupas limpas e perfeitamente alinhadas no guarda-roupa, e garantir que quando chegasse, da balada ou do trabalho, tivesse algo para comer. Um desejo simples e prático, mas pelo jeito impossível de se obter.
— O senhor pode ter certeza que realizarei cada uma de suas fantasias — a morena insinuou passando a língua pelos lábios de modo sugestivo.
Certo! Instinto Selvagem era um filme muito cabeça para aquela mulher, que com certeza vira a cruzada de pernas e o gesto libidinoso em algum filme pornô de quinta categoria.
— Senhorita Moraes, procuro uma governanta, não uma... — freou a vontade de dizer transa e se levantou. — Agradeço sua presença e, caso a escolha, irei lhe telefonar ainda essa semana. — “O que nunca vai ocorrer”, completou mentalmente enquanto andava decidido até a porta do apartamento e a escancarava. — Tenha um bom dia, senhorita Moraes.
— Aguardo ansiosa o seu telefonema, Simon.
Simon se perguntou em que ponto da entrevista dera tamanha i********e àquela mulher para que ronronasse seu primeiro nome e o beijasse na face - e isso porque virara o rosto.
— Nova namorada, filho? — A distinta voz feminina às suas costas causou-lhe um leve tremor de apreensão.
Virou-se e observou sua mãe, Mirela Salvatore, elegante em uma combinação de saia lápis de listras brancas e pretas, camisa de manga longa branca e scarpin, caminhar na direção deles, os perspicazes olhos negros fitando com interesse a morena ao seu lado.
— Não, mãe — respondeu temendo as consequências da interpretação errônea. — Acabei de entrevista-la para a vaga de governanta.
— Mesmo? — Mirela olhou a mulher de cima a baixo, sorriu e comentou com ironia: — Na minha época as governantas vestiam mais roupa e não deixavam marcas de batom no rosto do futuro patrão. — Ignorando o palavrão que Simon soltou após passar a mão na bochecha e ver os dedos tingidos de vermelho, completou sarcástica: — Novo tempo, novas atitudes, certo...? Qual seu nome, minha jovem?
— Fernanda Moraes.
— Fernanda... Belo nome...
Mirela supôs que deixara evidente seu desagrado, pois a mulher se despediu rapidamente deixando-a sozinha com seu filho metido a conquistador. Assim que Simon fechou a porta, perguntou:
— Pensa em contratar aquela mulher, Simon? Não falo nada da sua vida... Digamos incorreta. Mas contratar uma mulher que deseja ser mais que uma funcionária é um perigo — avisou seguindo-o pela sala. — Logo ela vai querer um anel de diamantes no dedo e um polpudo acordo de divórcio.
— Não se preocupe. Não pretendo contratá-la, e nem me casar com quem quer que seja — apressou-se a acrescentar.
Mirela franziu o cenho.
— Fico feliz que ainda tenha uma parcela de bom senso, mas espero que mude de ideia quanto a casar.
— Hum... — Simon massageou a têmpora com mais força. Quando Mirela enveredava pelo assunto casamento a conversa demorava horas para ter um fim.
— Logo fará trinta anos, precisa começar a pensar em casamento, filhos, um lar — Mirela repetiu para desagrado do filho, completando taxativa: — Preciso de netos.
— Faltam três aniversários para meus trinta anos — resmungou. — E o Alessandro já te deu dois netos.
— Simon Salvatore, só porque seu irmão tem filhos não quer dizer que não espere que você também os tenha — Mirela retrucou sentando no sofá macio, arrumando em seguida às roupas e o cabelo liso e perfeitamente tingido de preto, antes de cravar seu olhar reprovador novamente no filho caçula. — Precisa procurar uma moça para constituir algo mais duradouro que relações relâmpagos.
Simon revirou os olhos, odiando ser representado, pela enésima vez, como o filho desnaturado que não pensava no futuro e morreria sem deixar descendência.
Por um lado entendia sua mãe. Orfã aos dez anos, Mirela passara longos anos em um orfanato. Sempre que falava desse tempo era com a tristeza da perda dos laços familiares e das sucessivas rejeições devido à idade. A alegria só retornava ao recordar como conhecera o marido e juntos formaram a família de seus sonhos. Ou quase, ressaltava olhando para Simon.
Ela prezava a família. Prático, Simon prezava a si próprio.
— Sabe o que realmente preciso? — questionou jogando-se no sofá de frente para sua mãe. — Preciso de uma governanta discreta, confiável, com senso de organização e que possa morar no meu apartamento sem me atacar durante a noite — disse, deslizando a mão pela face esgotada devido às dezenas de mulheres que entrevistara. — Mas tudo indica que essa pessoa não existe.
— Conheço a mulher perfeita, querido — ouviu da matriarca.
Ignorando o enorme sorriso na face de Mirela, o que normalmente representava uma ideia carregada de segundas intenções, Simon não pensou duas vezes antes de pedir:
— Contrate-a.
Era tudo o que Mirela necessitava para entrar em ação. Levantou e marchou em passos rápidos até a porta.
— Aonde vai?
— Vou falar para Carlos preparar o contrato da sua futura governanta. À noite virei apresentá-la, querido — comunicou alegremente antes de sumir porta afora.
Alarmado ao ouvir o nome do advogado da família, Simon levantou e seguiu ao encontro dela, mas não deu tempo, só viu as portas do elevador se fecharem enquanto sua mãe acenava em despedida.
~*S2*~
Paulina chegou ao seu quarto, jogou a pasta de couro sobre a cama e caminhou até o espelho a procura de alguma imperfeição em seu traje. Não que fosse sofisticado, longe disso, se tratava de uma camisa branca de manga cumprida, uma saia longa e um terninho discreto, ambos na cor azul escuro. Queria parecer responsável e mais velha do que realmente era e o traje, em teoria, fornecia essa imagem, na prática não conseguira o efeito desejado.
O dia começara bem, mas foi anuviado no momento em que o selecionador do hotel, no qual desejava trabalhar como governanta, olhou-a de cima a baixo e torceu o nariz. Fora questão de minutos para ouvir o tão conhecido “a senhorita não corresponde ao perfil desejado”. Era a terceira entrevista só naquela semana que tivera de ouvir “não corresponde ao perfil” e começava a se perguntar que maldito “perfil” era esse que todos diziam que ela não possuía.
O problema estava nela porque, em sua opinião, seu currículo era impecável. Desde a infância teve contato com essa profissão, acompanhando e ajudando sua mãe na administração da mansão Salvatore dia e noite. Quando Soraia Perez falecera, passara a acompanhar Núbia Santos, governanta que fora contratada para substituir sua mãe. Assim que saiu do colegial fez um curso para se aperfeiçoar na profissão, e durante os últimos dois anos trabalhou e morou na casa de uma senhora que falecera há três meses. Experiência não faltava.
Talvez fosse o cabelo, imaginou analisando o cabelo abaixo da cintura parcialmente preso por um laço. Devia ter feito um penteado mais elaborado, sofisticado... Um coque talvez. Levou as mãos aos fios pretos para fazer um coque improvisado, mas os soltou logo em seguida ao ouvir batidinhas na porta.
Apressou-se a abri-la, não se surpreendendo com a figura de Mirela Salvatore — dona da mansão em que Paulina voltara a residir juntamente com seu pai e sua irmã caçula — parada à sua frente. A matriarca Salvatore tratava seus funcionários e os filhos deles como se fossem parte da família, principalmente ela e sua irmã. Sua mãe e Mirela tinham sido melhores amigas desde a infância em um orfanato.
— Bom dia, querida, como foi à entrevista? — Mirela perguntou, entrando sem cerimônia no pequeno quarto.
— Não muito bem — confessou entre triste, pela perda da oportunidade de trabalho, e compadecida pela consideração da bondosa Salvatore, isso até ouvi-la exclamar satisfeita:
— Ótimo!
— Perdão?
— Desculpe querida, deixe-me explicar. — Mirela segurou suas mãos entre as dela. — Encontrei o trabalho perfeito para você. Paga bem e se aceitar, considere-se contratada.
— Que tipo de trabalho? — perguntou curiosa. Até onde sabia a mansão não necessitava de novos funcionários.
— Simon está à procura de uma governanta que possa trabalhar e dormir no apartamento dele. O salário é praticamente o mesmo que pago ao seu pai e tem vários benefícios.
O salário alto e todos os possíveis benefícios desapareceram.
— Trabalhar no apartamento do senhor Simon... Dormir lá... Eu?
Não que Simon Salvatore, filho mais novo de Mirela, fosse uma pessoa r**m — não totalmente —, porém, se havia alguém no mundo que representava muito bem tudo que Paulina abominava era ele. Simon era arrogante, prepotente e durante muito tempo fizera piada da vida s****l dela, ou, como ele adorava ressaltar, a falta de vida s****l.
— Querida, será ótimo ter alguém da minha confiança cuidando do meu bebê, zelando pelo bem estar dele.
Bebê? Simon podia ser denominado de várias coisas, menos de bebê.
— Não posso dona Mirela... Simon não gosta de mim... — “Nem eu dele”, completou em pensamento. — Será um desastre.
— Ah, vocês eram amigos quando pequenos. — Mirela soltou uma risada baixa. — Soraia e eu passávamos longas horas fazendo planos... Podem retomar a antiga amizade — disse com um sorriso carregado de esperança.
Paulina não se lembrava de ter sido amiga do Salvatore, mas não via motivos para Mirela mentir àquele respeito e ainda envolver sua mãe. Não que o passado pudesse modificar o presente.
— Pelo menos tente, Lina — pediu Mirela apertando suas mãos entre as dela. — Caso não goste é só pedir demissão, não haverá multas nem nada do tipo. Por favor, tente, por mim.
Às vezes, como naquele momento, Paulina se condenava por ter um coração mole. Era fácil dobrá-la.
— Tudo bem, dona Mirela, mas é por você que aceito.
Mirela a envolveu em um abraço apertado.
— Obrigada, filha. Tenho certeza que não se arrependerá.
Paulina duvidou, porém nada disse, limitando-se a aceitar o abraço caloroso da Salvatore que, de certa forma, lembrava o abraço de sua falecida mãe.
~*S2*~
As portas do elevador se abriram no nono andar, e Simon Salvatore saiu com o semblante carregado, o estresse perceptível nos passos fortes e apressados em direção ao seu escritório. Ignorou todos à sua volta, principalmente sua secretária Cherry Martins. Não que adiantasse, assim que passou pela porta do escritório Cherry apareceu em seguida, a agenda aberta em uma mão e uma caneta na outra.
— Pensei que o senhor não viria hoje — ela comentou empurrando uma mecha acobreada para trás da orelha.
— Pensou errado — respondeu ainda sob o efeito da dor de cabeça. Não que fosse gentil com a espiã de sua mãe.
— Já contratou a governanta?
Olhou irritado para a secretária.
— A senhorita nem ao menos se dignou a entrevistá-las antes de mandá-las ao meu apartamento, não é?
— A agência para a qual telefonei disse que mandaria as melhores de acordo com perfil do senhor — defendeu-se Cherry, imaginando que o mau humor daquela vez tinha sido por causa das entrevistadas. Não que ele fosse gentil com ela.
— Que perfil?
Cherry procurou lembrar o que dissera ao telefone.
— Solteiro; vinte sete anos; empresário renomado, presidente da empresa de publicidade SaaTore, herdeiro das empresas Salvatore...
— Não pensou em contar quanto tenho no banco? — resmungou, imaginando que as funcionárias da tal agência fizeram fila para encontrá-lo, sedentas pela oportunidade de botar as mãozinhas em sua fortuna.
— Isso ajudaria? — quis saber com interesse.
— Claro que não! — quase gritou, encarando os olhos verdes da Martins com raiva. — Da próxima vez diga a minha personalidade, não minhas qualidades financeiras.
Mentalmente Cherry se perguntou quantas pessoas aceitariam trabalhar para ele quando o descrevesse como: Grosseiro, m*l-humorado e exigente ao limite. Provavelmente nenhuma. Por fim ofereceu:
— Posso telefonar para a agência e refazer o perfil.
— Não é preciso, minha mãe já escolheu uma governanta.
— Dona Mirela? O senhor tem certeza que não quer refazer o perfil?
— Não é preciso — repetiu com irritação.
Cherry se perguntou qual seria o interesse da Salvatore agora. Afinal, fora contratada por Mirela para informar tudo que Simon fazia dentro da empresa que ele montara com um amigo a cerca de dois anos. Será que agora queria uma espiã dentro do apartamento? Mas se queria por que não a contratara para o cargo? Mesmo tendo milhões de defeitos, alguns que se sobressaíam quando era contrariado, Cherry achava o patrão o melhor partido do mundo, além de ser lindo e atraente. Não seria nenhum sacrifício largar o cargo de secretária para morar debaixo do mesmo teto que o Salvatore, ao contrário, seria maravilhoso poder vê-lo desfilar com o peito nu pela casa, entrar no quarto dele...
— Martins, escutou algo do que acabei de dizer? — perguntou Simon, estranhando o sorriso enorme, a face corada e o fato dela não ter se retirado. Ela piscou rapidamente, o semblante confuso. — Quero comprimidos para dor de cabeça — repetiu com o desagrado vibrando em sua voz.
— Ah, me desculpe — pediu tensa com o rumo que seus pensamentos tomaram. — Volto em um instante, senhor.
Cherry saiu apressada do escritório quase se chocando contra o sócio e diretor da empresa, Gabriel Saadi. Lançou um rápido pedido de desculpas para o homem alto de cabelo avermelhado e continuou seu percurso.
— O que fez com a garota agora? — Gabriel perguntou ao fechar a porta.
— Nada. E olha que fiquei tentado — resmungou antes de sentar em sua poltrona giratória de couro preto. — Acredita que ela deixou que enviassem várias ninfomaníacas para o meu apartamento?
— Com o seu histórico deveria estar feliz — gracejou o Saadi se sentando de frente para o Salvatore.
— Meu histórico não é diferente do seu, então me diga, ficaria feliz?
— Não. — Gabriel fixou os olhos verde-água no amigo. Simon parecia prestes a explodir. — Pelo jeito foi muito r**m.
— Pior, se soubesse que seria assim teria deixado nas mãos da minha mãe antes.
— Mirela?! Deixou que ela contratasse alguém para trabalhar para você de novo? — Gabriel o encarou com um pequeno sorriso descrente. — Vive reclamando que tem de aguentar a Cherry e repetiu a dose?
— Cherry é uma secretária eficiente, mesmo ajudando a minha mãe a controlar meus passos.
— E qual é o nome dela?
— Não sei. Ela disse que conhecia a pessoa certa e saiu antes que pudesse perguntar nomes.
— Pelo menos sabe quando conhecerá a sua futura governanta?
— Hoje à noite.
— Se fosse você, telefonava e exigia nome. Nunca se sabe que tipo de pessoa é “certa” na mente de Mirela Salvatore. Além disso, o que ela fazia em seu apartamento hoje?
— É provável que Cherry tenha lhe informado.
— Nesse caso, creio que Mirela já tinha alguém em mente para o cargo.
— Será?
Simon sentiu um frio na espinha. Desconfiara que Mirela tinha planos mais ousados que lhe fornecer uma governanta adequada, mas ouvir outra pessoa dizer o mesmo tornava tudo pior. Não que sua mãe fosse fazer uma escolha ruim... Esperava que não fizesse.
~*S2*~
Paulina olhava aturdida para cada canto da sala do advogado dos Salvatore, Carlos Ramos. Não pela elegância do local e sim por estar prestes a assinar um contrato para trabalhar para a pessoa que mais abominava no mundo. Tudo bem, não chegava a tanto, mas havia somente uma linha tênue para que isso ocorresse. Imaginava que debaixo do mesmo teto essa linha seria passada em questão de minutos, assim que o Salvatore insistisse em tirar sarro de sua vida “sem sal”.
Tinha péssimas lembranças da época em que moravam na mansão e das vezes que visitara seu pai. Praticamente se sentira pisando em ovos, temendo encontrá-lo pelos corredores, ver o sorriso cínico e ouvir um comentário desagradável.
Paulina não era uma pessoa que arranjava briga, nunca sequer levantara a voz para alguém, por isso em todas as vezes que Simon fizera um comentário i****a sobre a vida que ela levava ou sobre seu namorado, Nathaniel Muller, somente respirava bem fundo, abaixava a cabeça — mais por vergonha do que raiva — e se limitava a ouvir em silêncio. Mas uma coisa era aguentar a implicância do Salvatore de vez em quando e outra era tolerar todo dia.
— A senhorita só tem de ler e assinar nesses locais em ambas as vias — informou Carlos apontando as linhas pontilhadas.
Paulina pegou a folha e deslizou os olhos pelas palavras, às vezes tendo de voltar ao princípio, sua angustia era tamanha que não processava nada do que estava escrito.
Tamanha hesitação para somente ler e assinar algumas linhas fez Mirela preocupar-se:
— Lina, se sente bem? Está tremendo.
— Sim... É que... — engoliu em seco. — Dona Mirela, tem certeza de que Simon me aceitará como governanta?
— Claro que vai, meu amor — ela garantiu confiante. — Ele concordou na hora quando disse que conhecia a pessoa perfeita para o cargo. Essa pessoa é você.
— Concordou?!
— Sim. Jamais contrataria alguém sem antes perguntar se ele aceitaria.
Do outro lado da mesa, Carlos evitava que um sorriso de entendimento adornasse seus lábios.
No momento em que a Salvatore lhe pedira por telefone para redigir aquele contrato, havia imaginado que havia uma intenção oculta por trás daquilo. Primeiro por conhecer a antipatia entre Simon e Paulina. Era impossível não notar visto que o Salvatore mais novo fazia questão de dizer na frente da jovem que não entendia a mania de santa dela, entre outros comentários que faziam a Perez corar e desviar os olhos para um ponto entre os próprios pés. Segundo, Mirela nunca dava um passo sem imaginar como lucraria com isso.
Observando a jovem assinar apressada todas as folhas, deixou o sorriso se libertar ao imaginar que era uma questão de tempo para saber se o plano da matriarca Salvatore era o que suspeitava.
~*S2*~
Com o celular contra a orelha, Simon sentia que teria uma nova dor de cabeça. Telefonara para a mansão e fora informado que Mirela não se encontrava, então passara as últimas quatro horas ligando para o número de celular dela e nada.
— Senhor Simon, há uma ligação na linha três... — Cherry começou a dizer ao entrar na sala do presidente, sendo interrompida pelo ansioso chefe antes de completar o recado.
— Da minha mãe?
Cherry o encarou tensa, estava ciente do estado de nervos de Simon por não conseguir contato com Mirela.
— É do senhor Nathaniel Muller da empresa Muller — respondeu devagar, colocando um pé para trás para facilitar a fuga caso o chefe tivesse algum acesso de raiva. — Solicita falar diretamente com o senhor.
— Sobre o quê? — perguntou. A raiva relampejando em seu rosto aumentando o medo da funcionária.
— Ele não disse...
— Porque passou uma ligação sem saber o que querem falar comigo?
— Eu perguntei, mas...
— Esquece, pode sair que atendo a porcaria dessa ligação.
— Sim, senhor! — Cherry praticamente correu porta afora.
Simon voltou sua atenção para o telefone sobre a escrivaninha, observando o número três piscando. Depois da seção de sedução barata, de esquecer que sua mãe nunca tinha ideias inocentes e de não conseguir saber a droga do nome da nova espiã de Mirela, agora seria obrigado a ouvir a voz insuportável do sedutor de empregadas alheias.
Pegou o fone e apertou com força o botão três.
— Simon Salvatore, com quem falo?
— Oi, Simon, sou eu, o Nathaniel. Há quanto tempo não nos falamos?
“Não o suficiente”, respondeu em pensamento.
— Desde o Natal — informou afundando o corpo na poltrona. Por ironia do destino, apesar de evitar ficar no mesmo ambiente que o Muller, seu irmão casará com a viúva do primo de Nathaniel unindo as famílias. Em todo evento que sua mãe desejava a família reunida – incluindo agregados - era obrigado a suportar a presença odiosa do ex-amigo. — Não ligou para isso, correto? — Se fosse Paulina podia se considerar viúva antes de casar. Se é que ela pretendia casar com aquela mula em forma humana.
— Não! — respondeu o Muller, transbordando alegria pela voz, o que só fez aumentar a irritação do Salvatore. — A empresa Muller pretende lançar uma nova linha de perfumes e maquilagem, então pensei... — “Mula pensa?”, Simon se perguntou sorrindo com cinismo enquanto o ouvia sem o menor interesse. —... em contratar os serviços da empresa SaaTore.
— Hum, estamos com a agenda cheia para esse mês, não sei se poderemos conciliar. — Em parte era verdade, a agenda da empresa estava lotada, mas recusava simplesmente porque não gostava de se imaginar trabalhando para aquele i****a.
— Será lançada em dois ou três meses, até lá...
— Não sei, tenho que falar com meu sócio — interrompeu-o para evitar se estender no assunto. Não aceitaria e ponto final.
— Posso falar com o Gabriel e...
— Não se preocupe, avaliarei pessoalmente a possibilidade, não precisa incomodar o Gabriel — mentiu para evitar que Nathaniel falasse com o sócio, que com certeza aceitaria.
— Ótimo. — Simon achava impressionante o quanto era fácil enganar o Muller. — Seremos como nos velhos tempos, três amigos trabalhando juntos...
— Nunca trabalhamos juntos, só estudamos, é bem diferente — Simon recordou querendo acrescentar que não eram amigos.
— Eram ótimos tempos, lembra?
Não, ele não lembrava.
— Foi graças a você que conheci a Lina, o meu anjinho. — Nathaniel riu com felicidade, enquanto Simon sentia uma vontade enorme de perguntar quando o i*****l pararia de dizer baboseiras e encerraria a ligação. — Sabe, agora que me estabilizei na minha empresa penso em pedi-la em casamento e gostaria que fosse meu padrinho...
— Estou ocupado no momento, conversaremos a esse respeito outra hora. — “De preferência nunca, que é quando vou aceitar suas propostas”, acrescentou em pensamento.
— Sim, claro. E quando poderemos falar do contrato?
— Te ligo assim que resolver com o Gabriel — respondeu encerrando ele mesmo a ligação. Apostava que Nathaniel ficaria pendurado na linha durante horas se deixasse. — Só mesmo a virtuosa Paulina para aturar essa anta — disse com desdém após virar sua poltrona para fixar os olhos negros em um ponto qualquer da vista que a janela de seu escritório fornecia. — Se merecem.
— Quem merece o quê?
Voltou sua poltrona para o lugar e observou o sócio se aproximar.
— Ninguém em especial.
— Acabei de falar com Cherry que me disse que o Nathaniel telefonou. O que ele queria?
— Relembrar os velhos tempos — respondeu desejando que a secretária mantivesse a língua grande dentro da boca. — Veio aqui só para saber disso?
— Não. — Gabriel tinha vontade de perguntar mais sobre a ligação, mas conhecendo o estranho ódio que o Salvatore adquirira pelo Muller resolveu abordar o assunto que o levara até ali. — Tamara nos convidou a uma festa de uma de suas amigas. É em uma danceteria aqui perto. — Estendeu o convite.
— Sinceramente, não terei cabeça pra festas enquanto não souber quem minha mãe contratou — disse, pegando o convite por educação e guardando-o no bolso do paletó.
— Ainda não conseguiu arrancar a informação?
— Quando Mirela quer ninguém consegue falar com ela — resmungou olhando de esguelha para o celular sobre a escrivaninha. — Daqui vou direto para casa esperar minha mãe aparecer com a bendita governanta.
~*S2*~
No fim de tarde, enquanto arrumava o que levaria, Paulina se perguntava se havia tomado à decisão certa. Seu pai dissera que sim; Mirela e seu marido, Fabrício, pareciam tranquilos com a possibilidade do filho ter alguém “ajuizada” por perto; até sua irmã, Paola, suspirou ao imaginar a convivência com Simon.
— Você arrumando a cama dele, de repente ele aparece só de toalha e...
Balançou a cabeça diante das lembranças do que a mais nova dissera que conseguia fazer com que suas bochechas ficassem quentes. Nunca imaginara que Paola, cinco anos mais nova, pudesse ter pensamentos tão... Nem conseguia descrever.
— Pronta, Lina?
— Sim, dona Mirela — respondeu fechando a pequena valise.
Mirela olhou para a valise e franziu a testa.
— Só isso?
— Sim... — gaguejou constrangida. Decidira levar poucas roupas, era possível que pedisse demissão naquele dia.
Sem dizer nada, Mirela a levou até o carro onde Paulo aguardava para levá-las ao prédio em que o Salvatore morava, cerca de uma hora da mansão. Mesmo assim o caminho foi rápido, até demais em sua opinião.
— Pode se despedir do seu pai, Lina. É provável que só o veja nos fins de semana.
Paulina abraçou seu pai, que se surpreendeu com a atitude. Desde que a esposa falecera, talvez até antes, não demonstrava carinho por nenhuma das filhas e nem esperava tal atitude delas. Isso o preocupou, principalmente em perceber que Paulina se segurava para não chorar. Podia ler nos olhos dela que queria desistir, o que jamais permitiria. Apesar de não gostar da ideia de sua filha próxima do caçula dos Salvatore – devido à fama de conquistador de Simon -, confiava no discernimento e profissionalismo da filha, fruto da educação exemplar e rígida que transmitira.
— Sei que irá honrar o sobrenome Perez. — Aquilo era tudo que precisava dizer para que Paulina não cometesse qualquer desatino.
Paulina encarou Paulo em choque. Conseguia ler nas entrelinhas que se não passasse o ano todo como governanta de Simon seria para sempre sinônimo de fracassada para seu pai. A decisão que tomara não tinha volta, era isso que lia nos olhos dele.
— Não o desapontarei... — murmurou insegura, afastando-se de cabeça baixa, a franja espessa cobrindo sua fronte e evitando que seu pai visse seus olhos marejarem.
Como um robô encaminhou-se para o lado de Mirela e a seguiu rumo ao apartamento de Simon. Mentalmente repetia como um mantra: “Papai, Paola, Fabrício e Mirela acreditam que conseguirei, então conseguirei”.
[1] Instinto Selvagem: Suspense erótico de 1992, dirigido por Paul Verhoeven e com roteiro de Joe Eszterhas.