OS SERTÕES – VOLUME 1 Euclides da Cunha
Nota Preliminar
Escrito nos raros intervalos de folga de uma carreira fatigante, este livro, que a princípio se resumia à história da
Campanha de Canudos, perdeu toda a atualidade, remorada a sua publicação em virtude de causas que temos por
escusado apontar.
Demos-lhe, por isto, outra feição, tornando apenas variante de assunto geral o tema, a princípio dominante, que
o sugeriu.
Intentamos esboçar, palidamente embora, ante o olhar de futuros historiadores, os traços atuais mais expressivos
das sub-ra-ças sertanejas do Brasil. E fazemo-lo porque a sua instabilidade de complexos de fatores múltiplos e
diversamente combinados, aliada às vicissitudes históricas e deplorável situação mental em que jazem, as tornam
talvez efêmeras, destinadas a próximo desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização e a concorrência
material intensiva das correntes migratórias que começam a invadir profundamente a nossa terra.
O jagunço destemeroso, o tabaréu ingênuo e o caipira simplório serão em breve tipos relegados às tradições
evanescentes, ou extintas.
Primeiros efeitos de variados cruzamentos, destinavam-se talvez à formação dos princípios imediatos de uma
grande raça. Faltou-lhes, porém, uma situação de parada ou equilíbrio, que lhes não permite a velocidade adquirida
pela marcha dos povos neste século. Retardatários hoje, amanhã se extinguirão de todo.
A civilização avançará nos sertões impelida por essa implacável “força motriz da História” que Gumplowicz,
maior do que Hobbes, lobrigou, num lance genial, no esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes.
A campanha de Canudos tem por isto a significação inegável de um primeiro assalto, em luta talvez longa. Nem
enfraquece o asserto o termo-la realizado nós, filhos do mesmo solo, porque, etnologicamente indefinidos, sem
tradições nacionais uniformes, vivendo parasitariamente à beira do Atlântico dos princípios civilizadores elaborados
na Europa, e armados pela indústria alemã — tivemos na ação um papel singular de mercenários inconscientes. Além
disso, m*l unidos àqueles extraordinários patrícios pelo solo em parte desconhecido, deles de todo nos separa uma
coordenada histórica — o tempo.
Aquela campanha lembra um refluxo para o passado.
E foi, na significação integral da palavra, um crime.
Denunciemo-lo.
E tanto quanto o permitir a firmeza do nosso espírito, façamos jus ao admirável conceito de Taine sobre o
narrador sincero que encara a história como ela o merece:
...“Il s’irrite contre les demi-verités qui sont des demi-faussetés, contre les auteurs qui n’altèrent ni une
date, ni une généalogie, mais dénaturent les sentiments et les moeurs, qui gardent le dessin des événements et en
changent la couleur, qui copient les faits et défigurent l’âme; il veut sentir en barbare, parmi les barbares, et
parmi les anciens, en ancien.”
A TERRA
I . PRELIMINARES. A entrada do sertão. Terra ignota.
Em caminho para Monte Santo. Primeiras impressões.
Um sonho de geólogo.
II . Golpe de vista do alto de Monte Santo. Do alto da Favela.
III . O clima. Higrômetros singulares.
IV . As secas. Hipóteses sobre a sua gênese. As caatingas.
V . Uma categoria geográfica que Hegel não citou. Como se faz um deserto. Como se extingue o deserto. O
martírio secular da terra.
I
O planalto central do Brasil desce, nos litorais do Sul, em escarpas inteiriças, altas e abruptas. Assoberba os
mares; e desata-se em chapadões nivelados pelos visos das cordilheiras marítimas, distendidas do Rio Grande a
Minas. Mas ao derivar para as terras setentrionais diminui gradualmente de altitude, ao mesmo tempo que descamba
para a costa oriental em andares, ou repetidos socalcos, que o despem da primitiva grandeza afastando-o
consideravelmente para o interior.
De sorte que quem o contorna, seguindo para o norte, observa notáveis mudanças de relevos: a princípio o traço
contínuo e dominante das montanhas, precintando-o, com destaque saliente, sobre a linha projetante das praias,
depois, no segmento de orla marítima entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, um aparelho litoral revolto, feito da
envergadura desarticulada das serras, riçado de cumeadas e corroído de angras, e escancelando-se em baías, e
repartindo-se em ilhas, e desagregando-se em recifes desnudos, à maneira de escombros do conflito secular que ali se
trava entre os mares e a terra; em seguida, transposto o 15º paralelo, a atenuação de todos os acidentes — serranias
que se arredondam e suavizam as linhas dos taludes, fracionadas em morros de encostas indistintas no horizonte que
se amplia; até que em plena faixa costeira da Bahia, o olhar, livre dos anteparos de serras que até lá o repulsam e
abreviam, se dilata em cheio para o ocidente, mergulhando no âmago da terra amplíssima lentamente emergindo num
ondear longínquo de chapadas...
Este facies geográfico resume a morfogenia do grande maciço continental.
Demonstra-o análise mais íntima feita por um corte meridiano qualquer, acompanhando a bacia do S. Francisco.
Vê-se, de fato, que três formações geognósticas díspares, de idades m*l determinadas, aí se substituem, ou se
entrelaçam, em estratificações discordantes, formando o predomínio exclusivo de umas, ou a combinação de todas,
os traços variáveis da fisionomia da terra. Surgem primeiro as possantes massas gnaissegraníticas, que a partir do
extremo sul se encurvam em desmedido anfiteatro, alteando as paisagens admiráveis que tanto encantam e iludem as
vistas inexpertas dos forasteiros. A princípio abeiradas do mar progridem em sucessivas cadeias, sem rebentos
laterais, até às raias do litoral paulista, feito dilatado muro de arrimo sustentando as formações sedimentares do
interior. A terra sobranceia o oceano, dominante, do fastígio das escarpas; e quem a alcança, como quem vinga a rampa de um majestoso palco, justifica os exageros descritivos — do gongorismo de Rocha Pita às extravagâncias
geniais de Buckle — que fazem deste país região privilegiada, onde a natureza armou a sua mais portentosa oficina.
É que, de feito, sob o tríplice aspecto astronômico, topográfico e geológico — nenhuma se afigura tão afeiçoada
à Vida.
Transmontadas as serras, sob a linha fulgurante do trópico, vêem-se estirados para o ocidente e norte, extensos
chapadões cuja urdidura de camadas horizontais de grés argiloso, intercaladas de emersões calcárias, ou diques de
rochas eruptivas básicas, do mesmo passo lhes explica a exuberância sem par e as áreas complanadas e vastas. A
terra atrai irresistivelmente o homem, arrebatando-o na própria correnteza dos rios que, do Iguaçu ao Tietê, traçando
originalíssima rede hidrográfica, correm da costa para os sertões, como se nascessem nos mares e canalizassem as
suas energias eternas para os recessos das matas opulentas. Rasgam facilmente aqueles estratos em traçados
uniformes, sem talvegues deprimidos, e dão ao conjunto dos terrenos até além do Paraná a feição de largos plainos
ondulados, desmedidos.
Entretanto, para leste a natureza é diversa.
Estereografa-se, duramente, nas placas rígidas dos afloramentos gnáissicos; e o talude dos planaltos dobra-se no
socalco da Mantiqueira, onde se encaixa o Paraíba, ou desfaz-se em rebentos que, após apontarem as alturas de
píncaros centralizados pelo Itatiaia, levam até ao âmago de Minas as paisagens alpestres do litoral. Mas ao penetrarse este estado nota-se, malgrado o tumultuar das serranias, lenta descensão geral para o norte. Como nos altos
chapadões de São Paulo e do Paraná, todas as caudais revelam este pendor insensível com derivarem em leitos
contorcidos e vencendo, contrafeitas, o antagonismo permanente das montanhas: o Rio Grande rompe, rasgando-a
com a força viva da corrente, a Serra da Canastra, e, norteados pela meridiana, abrem-se adiante os fundos vales de
erosão do Rio das Velhas e do S. Francisco. Ao mesmo tempo, transpostas as sublevações que vão de Barbacena a
Ouro Preto, as formações primitivas desaparecem, mesmo nas maiores eminências, e jazem sotopostas a complexas
séries de xistos metamórficos, infiltrados de veeiros fartos, nas paragens lendárias do ouro.
A mudança estrutural origina quadros naturais mais imponentes que os da borda marítima. A região continua
alpestre. O caráter das rochas, exposto nas abas dos cerros de quartzito, ou nas grimpas em que se empilham as
placas de itacolomito avassalando as alturas, aviva todos os acidentes, desde os maciços que vão de Ouro Branco a
Sabará, à zona diamantina expandindo-se para nordeste nas chapadas que se desenrolam nivelando-se às cimas da
Serra do Espinhaço; e esta, apesar da sugestiva denominação de Eschwege, m*l sobressai, entre aquelas lombadas
definidoras de uma situação dominante. Dali descem, acachoantes, para o levante, tombando em catadupas ou
saltando travessões sucessivos, todos os rios que do Jequitinhonha ao Doce procuram os terraços inferiores do
planalto arrimados à Serra dos Aimorés; e volvem águas remansadas para o poente os que se destinam à bacia de
captação do S. Francisco, em cujo vale, depois de percorridas ao sul as interessantes formações calcárias do Rio das
Velhas, salpintadas de lagos, solapadas de sumidouros e ribeirões subterrâneos, onde se abrem as cavernas do
homem pré-histórico de Lund, se acentuam outras transições na contextura superficial do solo.
De fato, as camadas anteriores, que vimos superpostas às rochas graníticas, decaem, por sua vez, sotopondo-se a
outras, mais modernas, de espessos estratos de grés.
Novo horizonte geológico reponta com um traço original e interessante. m*l estudado embora, caracteriza-o
notável significação orográfica, porque as cordilheiras dominantes do Sul ali se extinguem, soterradas, numa
inumação estupenda, pelos possantes estratos mais recentes, que as circundam. A terra, porém, permanece elevada,
alongando-se em planuras amplas, ou avultando em falsas montanhas, de denudação, descendo em aclives fortes,
mas tendo os dorsos alargados em plainos inscritos num horizonte de nível, apenas apontoado a leste pelos vértices
dos albardões distantes, que perlongam a costa.
Verifica-se, assim, a tendência para um aplainamento geral.
Porque neste coincidir das terras altas do interior e a depressão das formações arqueanas, a região montanhosa
de Minas se vai prendendo, sem ressaltos, à extensa zona dos tabuleiros do norte.
A Serra do Grão-Mogol, raiando as lindes da Bahia, é o primeiro espécimen dessas esplêndidas chapadas
imitando cordilheiras, que tanto perturbam aos geógrafos descuidados; e as demais que a convizinham, da do Cabral 5
mais próxima, à da Mata da Corda alongando-se para Goiás, modelam-se de maneira idêntica. Os sulcos de erosão
que as retalham são cortes geológicos expressivos. Ostentam em plano vertical, sucedendo-se a partir da base, as
mesmas rochas que vimos se substituírem em alongado roteiro pela superfície: embaixo os rebentos graníticos
decaídos pelo fundo dos vales, em cômoros esparsos; à meia encosta, inclinadas, as placas xistosas mais recentes; no
alto, sobrepujando-as, ou circuitando-lhes os flancos em vales monoclínicos, os lençóis de grés, predominantes e
oferecendo aos agentes meteóricos plasticidade admirável aos mais caprichosos modelos. Sem linhas de cumeadas,
as maiores serranias nada mais são que planuras altas, extensas rechãs terminando de chofre em encostas abruptas, na
molduragem golpeante do regime torrencial sobre o terreno permeável e móvel. Caindo por ali há séculos as fortes
enxurradas, derivando a princípio em linhas divagantes de drenagem, foram pouco a pouco reprofundando-as,
talhando-as em quebradas que se fizeram canyons, e se fizeram vales em declive, até orlarem de escarpamentos e
despenhadeiros aqueles plainos soerguidos. E consoante a resistência dos materiais trabalhados variaram nos
aspectos: aqui apontam, rijamente, sobre as áreas de nível, os últimos fragmentos das rochas enterradas,
desvendando-se, em fraguedos que m*l relembram, na altura, o antiqüíssimo “Himalaia brasileiro”, desbarrancado
em desintegração contínua, por todo o curso das idades; adiante, mais caprichosos, se escalonam em alinhamentos
incorretos de menires colossais, ou em círculos enormes, recordando na disposição dos grandes blocos superpostos,
em rimas, muramentos desmantelados de ciclópicos coliseus em ruínas; ou então, pelos visos das escarpas, oblíquos
e sobranceando as planuras que, interpostos, ladeiam, lembram aduelas desconformes, restos da monstruosa abóbada
da antiga cordilheira, desabada...
Mas desaparecem de todo em vários pontos.
Estiram-se então planuras vastas. Galgando-as pelos taludes, que as soerguem dando-lhes a aparência exata de
tabuleiros suspensos, topam-se, a centenas de metros, extensas áreas ampliando-se, boleadas, pelos quadrantes, numa
prolongação indefinida, de mares. É a paragem formosíssima dos campos gerais, expandida em chapadões
ondulantes — grandes tablados onde campeia a sociedade rude dos vaqueiros...
Atravessemo-la.
Adiante, a partir de Monte Alto, estas conformações naturais se bipartem: do rumo firme do norte a série do grés
figura-se progredir até ao platô atenoso do Açuruá, associando-se ao calcário que aviva as paisagens na orla do
grande rio, prendendo-as às linhas dos cerros talhados em diáclase, tão bem expressos no perfil fantástico do Bom
Jesus da Lapa; enquanto para nordeste, graças a degradações intensas (porque a Serra Geral segue por ali como
anteparo aos alísios, condensando-os em diluvianos aguaceiros) se desvendam, ressurgindo, as formações antigas.
Desenterram-se as montanhas.
Reponta a região diamantina, na Bahia, revivendo inteiramente a de Minas, como um desdobramento ou antes
um prolongamento, porque é a mesma formação mineira rasgando, afinal, os lençóis de grés, e alteando-se com os
mesmos contornos alpestres e perturbados, nos alcantis que irradiam da Tromba ou avultam para o norte nos xistos
huronianos das cadeias paralelas de Sincorá.
Deste ponto em diante, porém, o eixo da Serra Geral se fragmenta, indefinido. Desfaz-se. A cordilheira eriça-se
de contrafortes e talhados de onde saltam, acachoando, em despenhos, para o levante, as nascentes do Paraguaçu, e
um dédalo de serranias tortuosas, pouco elevadas mas inúmeras, cruza-se embaralhadamente sobre o largo dos
gerais, cobrindo-os. Transmuda-se o caráter topográfico, retratando o desapoderado embater dos elementos, que ali
reagem há milênios entre montanhas derruídas, e a queda, até então gradativa, dos planaltos começa a derivar em
desnivelamentos consideráveis. Revela-os o S. Francisco, no vivo infletir com que torce para o levante, indicando do
mesmo passo a transformação geral da região.
Esta é mais deprimida e mais revolta.
Cai para os terraços inferiores, entre um tumultuar de morros, incoerentemente esparsos. Último rebento da serra
principal, a da Itiúba reúne-lhe alguns galhos indecisos, fundindo as expansões setentrionais das da Furna, Cocais e
Sincorá. Alteia-se um momento, mas descai logo para todos os rumos: para o norte, originando a corredeira de
quatrocentos quilômetros a jusante do Sobradinho; para o sul, em segmentos dispersos que vão até além do Monte
Santo; e para leste, passando sob as chapadas de Jeremoabo, até se desvendar no salto prodigioso de Paulo Afonso.
E o observador que seguindo este itinerário deixa as paragens em que se revezam, em contraste belíssimo, a
amplitude dos gerais e o fastígio das montanhas, ao atingir aquele ponto estaca surpreendido...