Um quarto sem quase nenhuma decoração, a cor predominante era algo entre o creme e o bege. Máquinas soavam constantemente com seu bipe e delas saiam fios que encontravam seu fim em uma doce garotinha adormecida. Ao lado dela, segurando sua mão, um lindo menino de cabelos pretos com o que parecia ser oito anos.
— Você vai ficar bem logo, eu sei que vai, eu prometo. — ele dizia para a menina na cama.
— Sabe, Derek, você não devia fazer promessas que não sabe se será capaz de cumprir.
— Ah, dá um tempo, Angeline. — disparou Derek — Sua função é me proteger, não dar sermão.
No outro lado da cama da garotinha estava sentada Angeline.
— Como sua anja da guarda, minha função é ambas. — ela retrucou com um sorriso brilhante e um farfalhar das asas.
Angeline cuidava de Derek desde que eles tinham 3 anos. Ela explicou que sua mente e alma eram mais velhas do que sua aparência, mas ele não se importou, achava legal uma anjinha com a mesma idade e logo a condecorou como melhor amiga.
O único problema, ao menos na visão do garoto, era que mais ninguém podia ver a protetora, então achavam que era apenas uma amiga imaginária.
Angeline tinha longos cabelos loiros, sua cor era como a do trigo pronto para ser colhido. Seus olhos eram azuis turquesa e o rosto de um formato triangular que deixava evidente os lábios com formato de coração.
— Tanto faz. — ele respondeu irritado.
— Rory não teve nenhuma melhora desde o transplante de coração? — perguntou Angeline ao se aproximar da garotinha na cama.
— Não, parece que ela está rejeitando e eles vão ter que procurar um novo, eu ouvi os médicos dizendo isso para meus pais. — a voz dele era pouco mais alta que um sussurro.
Aurora era a irmã mais nova de Derek. Ele tinha quase quatro anos quando ela nasceu. Logo ao nascer, ela foi levada para a UTI neonatal por uma cardiopatia congênita que tentaram corrigir com cirurgia, mas não conseguiram. m*l tinha dias de vida e já recebeu o primeiro transplante. Agora aos quatro precisava de um novo, mas seu corpo não parecia aceitar.
Angeline se aproximava da garotinha adormecida e acariciava seus cabelos em um gesto dócil e carinhoso, tinha visto ela nascer e crescer enquanto acompanhava Derek.
— Angie, eu andei lendo algumas coisas nos livros da biblioteca da escola, nas histórias os anjos podem curar quem está doente e precisa. Você pode curar a Rory, n******e?
A voz de esperança dele era o suficiente para partir o coração de Angeline enquanto ela encarava seu protegido e melhor amigo.
— Alguns anjos de fato podem, mas eu não sou uma delas, Der. Eu posso tentar falar com alguém do conselho, algum superior meu… — ela ofereceu com cuidado e gentileza.
— Mas você me curou quando eu fiquei todo ralado depois de cair da bicicleta! — ele retrucou irritado.
— E foi completamente diferente, era mais fácil, apenas alguns machucados superficiais. Sua irmã é outro caso, Der, o coração dela não está funcionando, é como se o corpo dela recebesse um presente que ele não quer e com isso ele tentasse tirar pra fora. É muito mais complicado do que eu simplesmente curar alguns arranhões. — ela argumentava na defensiva, sua voz tinha um tom de quem se desculpava por não poder ajudar.
Assim que terminava de falar se sentia arrependida, a expressão dele de raiva se desmoronou pouco a pouco como se a informação dada estivesse sendo processada em pedaços. Ao ser completamente processada, a face dele se transformou em tristeza profunda e as lágrimas aos poucos começaram a cair uma por uma enquanto ele se debruçava sobre a pequena menina na cama.
Aurora tinha cabelos pretos como o do irmão, mas seu rosto era mais arredondado e com olhos maiores, enquanto os dele eram azuis, os dela eram verdes e sua pele normalmente já um pouco pálida, corada nas bochechas, estava um branco vazio e doente. A imagem se tornava pior ao ver a quantidade de aparelhos conectados a ela.
— Eu não quero que ela morra. — ele lamentou.
— Eu sei. — ela confirmou antes de completar — Continue orando por ela Der, eu já volto.
A pequena anja deixou um beijo em ambos os irmãos antes de desaparecer da sala, ela tinha que fazer alguma coisa, ao menos tentar. E só havia um lugar onde os problemas seriam resolvidos, no céu.
***
O lugar era enorme, um perfeito quadrado de 2.200 quilômetros de comprimento e largura. Angeline passava por uma das grandes portas da muralha que cercava a cidade, havia três em cada uma das direções e anjos a guardavam observando quem entrava e quem saia. Ela gostava de observar que cada uma das passagens parecia ser realmente esculpida em uma pérola.
Balançou suavemente a cabeça, não havia tempo para se distrair, mesmo que a muralha brilhasse por conta do sol batendo nas várias pedras preciosas incrustadas nela. A anja bateu suas asas, seu tempo era curto e precisava achar Evangeline, ela era sua superior e talvez soubesse o que fazer para ajudar.
Vários anjos e também humanos a cumprimentavam conforme ela passava, afinal, ali era o céu, todos a conheciam conforme chegavam no lugar e acabavam se conhecendo também.
Ela voava pelas ruas douradas, aquele lugar era tão cheio de vida, cheio de árvores e flores por todos os cantos que se olhasse, tão diferente da terra que pareciam estar sempre tentando eliminar qualquer sinal de verde.
Finalmente avistou a anja que procurava, Evangeline estava sentada em um dos coretos do enorme jardim que havia ali, aconselhava um dos anjos que recentemente havia começado como anjo da guarda de um recém nascido. Não achava prudente interromper a conversa, então Angeline sentou-se em um dos bancos com vista para o coreto. Apoiou seu queixo em suas mãos, os braços apoiados nas coxas forneciam o suporte necessário. Ela se encontrava um tanto curvada e extremamente preocupada.
Só conseguia pensar em Derek e Aurora, claramente ela havia se apegado aquela família, mas talvez fosse normal, cuidava do garoto desde que ele nasceu, acabou acompanhando quando a mais nova se juntou a família.
— Parece que algo te incomoda.
— Céus, você me assustou. — Angeline respondeu sobressaltada.
Ambas as mãos dela estavam em seu peito onde o coração se localizava e a expressão era um misto de surpresa e irritação. Encarava agora os olhos azuis e o cabelo louro do anjo ao seu lado.
— Eu não pude evitar. — confessou com uma leve risada — Mas, de verdade, o que a incomoda, Angeline?
Ela analisava o anjo, suas feições, postura, expressão corporal, procurava por qualquer coisa que demonstrasse que ele não se importava de verdade, mas tudo apontava para o contrário. Por fim, a anja suspirou e deixou que as preocupações saíssem por seus lábios.
— A irmã do garoto que eu sou a anja, ela nasceu com um problema cardíaco e logo precisou de transplante. E apesar de ela ter crescido, o coração não cresceu tanto assim com ela. Recentemente fez uma nova cirurgia, mas o corpo parece rejeitar o novo transplante. Eu adoraria, mas não tenho poderes para curá-la. Então vim buscar a orientação de Evangeline para descobrir o que eu poderia fazer, se há alguém para ajudar.
Ele ouvia com atenção, ao notar que ela havia terminado, tamborilou os dedos no espaço do banco de madeira entre eles e sorriu.
— Vocês deveriam falar com Rafael, ele é o anjo da cura, talvez possa fazer algo pela criança. — aconselhou voltando os olhos para Angeline.
— Você acha que ele nos ajudaria, Gabriel? — seus olhos brilhavam diante da esperança com a nova possibilidade.
— Bom, eu sou o mensageiro. Não posso garantir que ele o fará, mas tenho certeza de que ao menos vai ouvir a causa. — seus olhos se voltaram para o coreto — E pelo visto sua chefe terminou ali, boa sorte com a conversa. — ele desejou antes de levantar voo.
Angeline levantou do banco com um pulo e tomou fôlego para se acalmar antes de ela mesma voar.
— Evangeline! — chamou a anja.
Evangeline, a anja que coordenava e aconselhava todos os anjos da guarda. Uma linda anja de pele cor de ébano, estatura alta e um rosto redondo que era emoldurado pelos lindos cachos castanhos que naquele momento estavam presos em uma trança.
— Angel, não a esperava hoje, nossa sessão não é só sexta-feira? — perguntou a mais velha de fato curiosa.
Sua voz era bondosa e Angeline sempre se sentia acariciada pelas palavras de tão sedosa que era a voz de sua mentora. Mas também ficava receosa quando Evangeline estava brava.
— Eu preciso de sua ajuda. Gostaria de falar com Rafael a respeito da irmã do meu menino, ela precisa de um milagre e Gabriel sugeriu que ele talvez pudesse ajudar. — ela começou cautelosa.
Todos os anjos, quando estavam com tempo, costumavam ser muito receptivos, mas também perdiam a paciência rapidamente quando estavam diante de tolices e enrolações.
— Bem, me conte a história primeiro e então veremos se é necessário que Rafael interfira.
Angeline sentou-se e iniciou a história como pedido pela mentora.
***
Derek estranhava o fato de que sua anja da guarda não estar ali com ele como sempre estava. “Continue orando por ela Der, eu já volto” foi o que ela falou antes de simplesmente desaparecer. Ele continua pedindo para que a irmã fosse curada, mas infelizmente já estava no final do horário de visitas.
O garoto olhava pela janela no caminho de volta para casa, seu pai ficaria aquela noite com a irmã e na manhã seguinte iria a mãe, depois que o deixasse na escola. Ele definitivamente não queria ir para a escola, queria ficar o máximo de tempo possível ao lado de Aurora, mas os pais foram categóricos, ele iria continuar indo pra escola mesmo se o mundo acabasse. E para ele, de certa forma, era como se o mundo estivesse acabando.
— Não fique triste, amanhã depois da aula você poderá vir ver sua irmã e quem sabe ela já não esteja melhor até lá. — disse a mãe em tentativa de animá-lo.