Capítulo 1: O Retorno do filho Pródigo
As nuvens cinzentas e sombrias faziam jus a estação do Outono, quando a chuva era ainda mais penetrante e frequente pelas ruas de Liverpool.
Mas para Kiera, era somente mais um dia comum. Ela levantou cedo, como de costume, preparou o café e foi ajudar sua tia a sentar na cadeira de banho. Jasmine levantava quase sempre disposta, mas havia dias como aquele em que dores se espalhavam pelo seu corpo como a chuva caía sobre a terra e ela tinha de lidar com cada gota jorrada a seus pés.
— Vai se atrasar se continuar me vigiando.
Disse a tia, enquanto saía com cuidado do banheiro, depois de recusar a ajuda da sobrinha. Kiera logo deduziu que as dores vieram, acompanhada do mau humor.
— Não faz m*l. A Elena me cobre.
— Não abuse da sorte, Kiera.
— Não fui eu quem escapei da morte.
Ela deixou sair, as palavras um pouco mais acusadoras do que ela gostara.
— E isso me trouxe um grande fardo.
Jasmine olhou para sua sobrinha, depois para suas pernas. Kiera apenas abaixou a cabeça, balançou-a e saiu do quarto.
Aquele assunto vivia circulando mais do que ela conseguia suportar. A dor ainda dilacerava seu peito e sua mente não permitia que ela se esquecesse nem por um dia o destino daqueles que mais amava. E sua língua sem filtro não permitia que o fato realmente ficasse no passado.
Depois do café da manhã, em um silêncio quase mortal, Kiera ajeitou-se depois do banho e saiu para o trabalho. Jasmine faria o mesmo logo após.
Ela pegou o ônibus no horário de sempre até o centro, onde o grande prédio da Bishop's Alimentos se encontrava.
— Quase perdeu a hora. O que houve? Ficou assistindo série de investigação criminal até tarde de novo?
Kiera deu um meio sorriso, sabendo o quanto Elena odiava esse tipo de seriado.
— Não. Jasmine. Não sei porque, mas fiquei um pouco preocupada hoje. Acho que as dores dela estão muito frequentes. E o humor...
— Deixa eu adivinhar, tão ácido quanto o seu?
— Precisei puxar a alguém, não acha?
Elena deu de ombros e entraram juntas no prédio, pela porta dos fundos. Deixaram suas respectivas bolsas na área dos funcionários e colocaram o restante da roupa de faxineiras.
O trabalho começou como outro dia qualquer, ainda sem sinal de chuva. Até a rotineira entrada dos chefes não passou despercebida.
— Com uma funcionária dessas, eu não sairia daqui tão cedo...
Comentou um dos arrogantes advogados local. Nathan Bishop parou em frente ao elevador para olhar para as duas moças ajoelhadas que limpavam o chão de mármore preta.
— Sinceramente? Só consigo pensar em como devem ser sem uniformes..
— E eu com a visão delas peladas achei que era o único!
Um outro comentou, e todos entraram rindo.
Kiera ergueu o tronco, olhando-os com um misto de nojo e raiva contida.
— Sorte a deles que preciso aturar isso. Mas ainda vai chegar o dia em que...
— Kiera!
Davin Bishop entrou no prédio, o cabelo grisalho e as feições esbranquiçadas. A pele flácida parecia ainda mais velha do que de costume. Ele passou direto pelas moças e aguardou o elevador.
— Davin...
Ela sussurrou, com ódio e vingança correndo em suas veias. Elena tinha medo do olhar de Kiera quando direcionada para ele. Ela sabia o que a amiga tinha realmente ido fazer ali e duvidava que fosse capaz de descansar até o objetivo ser alcançado.
— Devia esquecer essa ideia.
— Que ideia?
— Você sabe, a vingança.
Nessa hora Davin entrou no elevador e apertou o botão do último andar. Kiera segurou o pano em suas mãos ainda mais firme.
— Não é vingança, é justiça. Ele precisa pagar. Precisam saber o que ele fez...
— Não se tem nenhuma prova contra ele.
— Quer prova maior? Ele encheu meu pai de dívida e quando...
Ela abaixou a voz, percebendo que atraía alguns olhares, e depois suspirou.
— Ele agora está ainda mais rico e pouco se fodendo pro que aconteceu pro resto da minha família. Eu não consigo enxergar ninguém mais.
— Kiera...
— Chega Elena, vamos trabalhar. A última coisa da qual preciso é ser demitida.
Por mais que a necessidade de acalmá-la e fazê-la mudar de ideia fosse forte, Elena se calou e voltou ao trabalho. Certamente não havia nada mais humilhante para Kiera do que trabalhar na empresa onde seu pai fora sócio.
Lá em cima, na segunda parte mais alta do prédio, Davin sentava em sua cadeira e permitia a entrada de seu filho mais velho, Nathan.
— Está mesmo se sentindo bem?
— Seu irmão chega hoje à noite. Quero que vá recebê-lo.
Nathan cruzou os braços diante do peito, enrijeceu o maxilar e deu um sorriso sarcástico.
— O filho pródigo retorna.
— Ele vai ser o diretor de gestão e Marketing.
— Mas e o Drake?
— Demita-o.
Nathan não conseguiu nem imaginar dando essa notícia para seu amigo. Eles se conheciam há muito tempo, apesar de saírem muito pouco pela vida familiar que Drake levava.
— Não pode simplesmente demiti-lo assim. Ele é um funcionário excelente há anos e...
Davin ergueu os olhos para seu filho, herdeiro de seus traços originais. O cabelo louro encaracolado e os olhos castanhos esverdeados, assim como o queixo mais afinado e os ombros largos. Nathan era quase sua cópia há 30 anos.
— Eu posso e vou. Ainda sou o dono disso tudo. Eu criei a Bishop's...
— O senhor criou? É mesmo?
— Basta. Ordens são ordens, Nathan. As cumpra imediatamente. Aqui dentro, você é apenas o vice presidente dessa empresa.
A fúria subiu-lhe a garganta. Ele não escutaria nada calado. Não depois de tudo.
— E o homem que o tirou da lama. Lembre-se disso, papai. Se lembre, quando todos estiverem felizes ao seu lado, sorrindo como se não quisessem esfaqueá-lo pelas costas, lembre-se de quem realmente fez tudo pelo senhor.
E assim, Nathan deixou a sala de seu pai, com os olhos mergulhados em uma raiva extensa e uma dor pulsante em sua cabeça.
Aquela era uma verdade universal. Muitas pessoas próximas de nós anseiam apenas por isso, por essa oportunidade quente de enfiar-lhe uma faca no peito ou no meio da coluna. Davin era esse tipo de pessoa. E sendo assim, conhece este tipo mais do que qualquer outro. E sabia que seu filho não era assim.
Podia ser orgulhoso, arrogante, um babaca completo, mas não era covarde. Se tivesse de fazer, seria dando a cara tapa.
Kiera passou o resto do dia ouvindo o mesmo de sempre. Sabia o quanto aquele comportamento era inapropriado, imoral e um crime, mas não ligava, não seria daquela forma que ela arruinaria tudo aquilo e nem descobriria a verdade.
Em sua mente, ela também não compreendia os olhares exagerados. Kiera tinha um corpo mais curvilíneo e sensual para a maioria das inglesas, mas olhos verdes comuns e cabelo louro platinado. Nada que nenhum deles nunca tivesse visto em alguma das inúmeras festas que a empresa dá, onde muitas mulheres da alta sociedade comparecem.
Entretanto, muitos deles enxergavam a fúria e a sensualidade de seus olhos, o poder e o controle em cada movimento de enlouquecer os homens, e sua cintura fina e os glúteos bem arredondados, capazes de tirar a concentração de qualquer ser humano atraído por aquilo. Mesmo sob as vestes simples de faxineira, que m*l escondiam sua beleza escultural.
Porém, ela quase não tinha consciência da beleza que tinha, e isso a deixava infinitamente mais atraente para aqueles homens.
Naquela noite, quando a chuva desabou fortemente sobre Liverpool, Nathan fora com um guarda-chuva observar seu irmão mais novo descer do jatinho.
Julian Bishop não era tão parecido com seu pai há alguns anos. Tinha olhos azuis e frios, cabelo preto encaracolado e um corpo mais magro do que o de seu irmão, apesar de definido. Sua mão também era mais grossa e firme do que Nathan se lembrava.
— Olá irmão. Bom vê-lo de novo.
Nathan o abraçou rapidamente e lhe estendeu outro guarda-chuva.
— Não precisa fingir, Nat. Nós dois sabemos que me preferia nos Estados Unidos.
— Que bom que continua um cara inteligente.
Os dois seguiram para o carro. Lá dentro, Julian olhou para as gotas de chuva que batiam contra a janela de vidro.
— Se pegasse um voo um pouco mais tarde não chegaria tão cedo.
— É, o tempo aqui parece não ter mudado quase nada.
— Poucas são as coisas que realmente mudaram por aqui, irmãozinho.
Julian enrijeceu o maxilar, pensando na única coisa que mais fazia seu coração acelerar desde que seu pai ligou pedindo que retornasse de seus estudos finais e concluísse na Inglaterra, enquanto trabalhasse.
Como será que ela estaria? Teria mudado? Depois do que acontecera, com certeza não seria mais a mesma.
O que faria caso conseguisse reencontrá-la? Como seu corpo corresponderia a saudade massacrada e subjugada em seu peito? Será que ainda...?
Ele fechou os olhos e se obrigou a esquecer. A parar de lembrar e idealizar aquele momento. Fora covarde demais. Não a merecia. Não tinha o direito de procurá-la, de atrapalhar sua vida. Julian não tinha direito algum depois do que fizera.
Quando o carro parou em frente a mansão de sua família, ele saiu do carro, sem abrir o guarda-chuva, e olhou para o céu. Coberto de nuvens cinzentas carregadas e sombrias, não pôde ver o que tanto queria. Aquela sensação, de estar olhando para o meu céu que ela, não poderia ser sentida naquele momento. Talvez o destino esteja avisando-o de que ele não merece ter qualquer vestígio de lembranças boas sobre ela. Era uma forma de castigá-lo por ter sido tão covarde e negligente.
Ele deu os passos que separavam a rua da entrada coberta da mansão. Seu irmão logo o alcançou, sem se importar se ele estava molhado ou não.
— Quando a Dayse chega?
— Depois de amanhã, acho. Ela quer resolver mais algumas pendências.
— Ótimo. Vai chegar a tempo da festa.
— Que festa?
— Uma que estou organizando na empresa. Daqui a três dias. Você vai gostar. É divertido.
Julian resolveu que responder àquilo era perda de tempo. Sua concepção de diversão era bem diferente da de Nathan e tinha certeza de que seu irmão riria se o escutasse.
Davin estava sentado a sua poltrona, com um copo de whisky em mãos e uma caixa de charutos sobre a mesa.
— Julian?
— Sim, papai.
O homem se levantou, indo ao encontro do filho.
— Veja só como cresceu! Está um homão! E está molhado? Nathan, deixou seu irmão se molhar?
Nathan revirou os olhos, de braços cruzados. Como se fosse babá de alguém.
— Eu quis me molhar um pouco pai, não o culpe. Venha aqui.
Os dois homens se abraçaram. O velho não se importou tanto com a água, só depois, e pediu para que seu empregado trouxesse uma manta para seu filho.
— Não é necessário pai...
— Eu insisto. Ande, se sente. Preciso falar com vocês.
Nathan sentou em uma poltrona mais afastada da lareira, de couro vermelho rubro. Julian ficou ao lado do irmão, um pouco mais aquecido pelo fogo que crepitava.
— Agora que meus herdeiros estão aqui, preciso revelar uma coisa. Algo que vai me deixar fora dos negócios um tempo. E vou precisar que sejam muito maduros e responsáveis.
Até Nathan se inclinou para ouvi-lo. Seu pai quase nunca era sério e emotivo ao mesmo tempo. Na verdade, quase nunca demonstrava sentir qualquer coisa, muito menos medo e amor.
Julian sabia, no fundo, que o chamado de seu pai não era aleatório. Que havia algo por trás daquele repentino pedido.
Houve um tempo de silêncio, enquanto Julian se agasalhava com o manto e Nathan era servido com o whisky. Davin respirou fundo, limpou a garganta e encarou sua prole, atentos.
— Eu estou doente, meus filhos. Gravemente doente. E irei sair da presidência da Bishop's Alimentos.