Capítulo III

2767 Words
O vento cortava os ossos. A pedra sob os dedos de Isadora parecia um lábio frio que a puxava para fora do corpo. Lá embaixo, o vilarejo era um mapa de luzes minúsculas e indiferentes. Tudo que restava, naquele segundo, era o peso do passado e a promessa do esquecimento logo além da beira. Alguém falou por trás dela, sem anúncio, sem gentileza — como um comando. A voz não pediu; impôs. — Não é lugar para virar lenda. — A frase veio baixa, com um sorriso que não precisava ser visto para ser percebido como ameaça. Ela não se virou. Sabia que não se podia confiar em vozes que apareciam de repente. Pessoas desconhecidas falam sem se explicar. Pessoas que te tiram da beira não têm boas intenções, ou têm intenções que você não imagina. — Quem está aí? — A sua voz era fina, cortada. O rosto queimava, os olhos secos. — Alguém que não está a fim de catar restos. — Respondeu ele, próximo agora, a respiração de um estranho nos cabelos dela, o calor de um corpo que não pedia permissão. Ela se afastou um passo, um gesto de autopreservação que nada adiantou. A mão dele pousou no seu braço antes que ela conseguisse reagir, firme, prendendo sem apertar. O toque não trouxe alívio; trouxe vigilância. Um toque que dizia: “agora eu controlo”. — Solte-me! — ela cuspiu, como se a saliva pudesse dissolver a mão que a segurava. Ele deixou escapar uma ruga de riso, quase zombeteira, que fez os pelos do braço dela se eriçar. — Soltar parece tão definitivo. Você tem certeza de que quer ser tão direta? Isadora sentiu a boca secar numa raiva tão pura que doeu. — Você não tem esse direito. — Direito? — ele repetiu, arrastando a palavra. — Direito é uma palavra elegante para quem nunca precisou sobreviver a nada. Eu tenho interesse. Interesse vira posse rápido. A acusação ficou no ar; não havia ameaça física ainda, apenas um jogo de olhar e de presença. Ele cheirava a couro e a pólvora de homens acostumados a conseguir o que querem. Ela gostava de pensar que não se deixaria prender pela elegância dos caras. Gostava de pensar. — Quem é você? O que você quer? — perguntou, tentando ganhar distância. Ele não respondeu com nome. Respondeu com hipótese. Tudo que ele dizia era impregnado de conjectura, de provocação. Era mais fácil falar no que deduzia do que no que sabia. — Suponho que você corre. Suponho que tem alguém atrás. Suponho que sua vida é feita de fugas e portas trancadas. Ou então está aqui por tédio, procurando uma história que conte depois nas mesas. Qual é a versão — disse ele, pausando — a romântica ou a verdadeira? Isadora sentiu a garganta fechar. A observação não era acusação nem conforto; era uma lente que deixava claro que ele já lera mais do que deveria. Ela revidou com o que tinha: aspereza. — Suponha à vontade. Mas o que você não pode supor é que eu quero sua atenção. — Não, não posso. — ele murmurou. — Mas posso supor uma coisa: você acha que o salto resolve. Que o vento é amigo. Que o silêncio cura. — A voz era uma lâmina polida. — Eu suporto suposições. Gosto delas. Ensinam mais que a verdade. Ela tentou rir. O som ficou preso entre dentes. — Você é um filósofo? Um i****a com coragem demais? — Sou alguém que não gosta de ver coisas bonitas se desfazerem sem espetáculo. — Ele fez um gesto, pequeno, revelador: a mão dele exibiu uma seringa encaixada num papel de embalagem, discreta na palma escura. Ali, o objeto que ela sempre temera — simples e perigoso — brilhou como algo íntimo entre dois estranhos. — Não que eu ache que você deva ir cedo. Só acho que há modos menos embaraçosos de desaparecer. E nos pensamentos mais profundos dele, o que ele queria é que ela demorasse a desaparecer, para que pudesse sofrer bastante em suas mãos. O corpo dela reagiu antes da razão. Medo percorreu-lhe as pernas; raiva, outra onda. Ela recuou, trocando o equilíbrio por surpresa. A seringa significava uma escala de possibilidades que ela não escolhera. Ele poderia ser um médico, poderia ser um criminoso, poderia ser um homem com raiva de tudo que respira. Mas ver a agulha trouxe ao rosto o gosto do pânico. — Você não vai — disse ela, a voz falhando. — Não com isso. Ele inclinou-se, o rosto perto do ouvido dela, voz tão baixa que o vento não ousou levar. — Propofol — afirmou, simples, como se nomear resolvesse dúvidas. — Rápido, profundo. Dá sono e apaga a janela que é a consciência. Vai te abrir uma porta que não é memória. — Ele deixou as palavras caírem como pedras. — Funciona em menos de um minuto quando entra na veia. — NCBI+1 Isadora conhecia o nome. O nome vinha dos pesadelos, dos registros, de coisas que se gritam em delegacias e nunca se dizem nos cafés. Mesmo assim, ouvir aquilo dito por um homem com uma seringa fez algo dentro dela querer recuar para além da torre. — Não — cuspiu. — Não com isso. — Não se preocupe. — Ele sorriu, sem humor. — Não sou eu quem vai te m***r. Só vou dopar você até a sua vida parar de doer tanto. Ela tentou puxar o braço. O movimento foi pequeno; a reação dele foi maior. Ele segurou firme, virou-lhe a mão, a pele raspando na pedra. A pressão não era um espasmo de violência gratuita — era precisão. Ele procurou uma veia com olhos que haviam visto muitos braços antes. “Não posso me render a isso”, ela pensou, como quem tenta segurar uma chama com a mão. “Não posso ser apaziguada por uma faca de mentira.” Mas o mundo — o vento, a vertigem, as vozes lá embaixo — cifrava as arestas de sua resistência. Ele falou novamente, com um tom que não admitia espera. — Você não tem ideia do quanto quer descansar, Isadora. Não é vergonha. Às vezes a gente só se cansa de gritar. Ela mordeu a língua, trancou o medo em dentes. Não deu o benefício da surpresa quando ele aproximou a seringa. A agulha encontrou a pele; o frio da ponta parecia a única certeza. Havia, naquele gesto, uma escolha que não passava por ela — ou já passava: alguém a tirara do jogo. O sedativo entrou sem espetáculo, sem dor que valesse nota. Ele não falou mais. Havia nos olhos dele um brilho seco que não era piedade, nem ódio: era interesse. Um interesse prático, como se observasse uma máquina antiga que precisava ser parada antes de desabar. A consciência de Isadora tornou-se um tremor. O ar parecia mais espesso. O rosto dele mergulhou em seu campo de visão como um farol e, por baixo da névoa que subia, ela percebeu a dureza da mandíbula, a linha do nariz, o nada do sorriso que se formava. — Feche os olhos — ele disse, como se não pedisse. — E não se assuste com o escuro. Eu garanto que vai ser curto. Ela acreditou nele por um segundo porque não havia energia para negar. A queda foi rápida: primeiro um calor que parecia florir no braço, depois o peso que a fazia ceder, até que tudo se dissolveu numa espécie de bruma confortável e traiçoeira. O corpo reagiu instintivamente ao peso sobre os ombros. Um choque, um ruído de tecido, e a sensação de estar suspensa como se fosse um saco de roupas. Isadora tentou gritar, mas a boca não obedeceu; a garganta era um funil seco. Pescoço torto, um cheiro de couro e gasolina misturado com suor masculinos, o som distante de vozes rindo sem cerimônia. Ela foi jogada sobre o ombro dele como algo que se leva para descarregar. A dor nas costelas acordou em fagulhas, o estômago revirou. Havia pressa — passos largos descendo a colina, o cranco do salto das pedras contra botas que sabiam terreno. O ar era um chicote, as ruas do vilarejo passaram em borrões: portas, latas, o frio metálico do carro. Quando a porta do veículo bateu, a sujeira das palmas na sua roupa deixou marcas. Mãos ásperas a empurraram para dentro do banco traseiro; a unha de alguém lambeu o pano do casaco como quem se certifica de que o objeto está preso. A janela deu um estalo; o motor rugiu e, por um segundo, Isadora ouviu a música distorcida de jornais e pneus. O carro — grande, preto, com cheiro de grosseria — era uma caixa que se fechava sobre ela. Havia vozes. Vozes masculinas, graves, sem gentilezas. Aquelas que nomeiam o mundo em levas rápidas e resolutas. Um deles bateu a porta com força. Os pneus engoliram a noite. Dentro do carro, havia uma coreografia de olhares e sussurros. Alguém falou o nome do homem que a carregara, mas o clima era de negócio. Ela era a mercadoria que chegara sem que pedissem. Ninguém fazia perguntas. Alguém tocou seu rosto; dedos frios, talvez conferindo se ainda existia calor humano naquele corpo. Não havia ruído de preocupação, apenas checagem. Os olhos que a observavam eram ferramentas que imaginavam lucro, p******o, vantagem — ou diversão. — Ela valeu a viagem? — alguém perguntou, e o riso estalou. — Ainda não sabemos — disse a voz do homem que a trouxera. — Vamos a um lugar onde se pode conversar em silêncio. O carro acelerou. As luzes da vila sumiram, sobrepus as árvores, e o mundo tornou-se uma linha de luz e sombra. Isadora sentiu o balanço do veículo e, por debaixo da venda que o homem lhe colocara nos olhos, a escuridão era total. Não se via nada; percebia-se tudo: cheiros, vibrações, a pulsação dos corpos próximos. Cada detalhe era aumentado pela ausência da visão. Quando a escuridão deixou de ser anônima, ela percebeu que havia sido movida de novo. O corpo doeu nas articulações; os músculos queimavam como se tivessem sido contraídos demais. Alguém a colocou numa cama — não o conforto habitual do chalé, mas uma base dura e forrada por tecido áspero. Havia a sensação de cordas se apertando nas minhas extremidades. Vendada, amarrada, deitada — o mundo foi reduzido a pequenos territórios: o cheiro de **, o gosto metálico na boca, o som distante de água pingando. Uma lâmpada rebatida parecia brilhar em sua cabeça, mas era fruto de imaginação; ela via luz com os olhos fechados, uma auréola de cor que doía. Os minutos não tinham nomes; o tempo desfiava. Primeiro veio a confusão: onde eu estou? Depois, a tentativa de mapear o corpo: mãos imobilizadas, coração acelerado, cabeça latejando, lábios ressecados, garganta cheia de sede. A roupa estava encharcada na lateral; talvez suada. Uma pressão nas costas, porque tivera sido arrastada, empurrada, jogada. Um nó no estômago que não era fome, era medo. Isadora tentou mover os dedos. As cordas — grossas, ásperas — prenderam os pulsos com técnica que não permitia folga. Havia nó de marinheiro, preso em posição que forçava a pele, criando choque elétrico em cada pulso. Ela roçou os dedos na boca, buscando algo que a fizesse voltar a si; o gosto metálico predominava. O mais c***l foi o espaço entre os sons: o eco de passos em outro cômodo, uma porta que rangeu, vozes que se apagavam. Um som de chave girando. Peças de metal batendo, um tinido de cadeia. O corpo parecia ácido por dentro. A respiração vinha rápida, irregular; cada inspiração fazia o peito bater em lembretes do que acontecera: fogo, gritos, câmeras, o carro, o toque da seringa. Tentar pensar foi um exercício de nadar com pedras amarradas aos pés. A mente recortava imagens curtas: a torre, o precipício, a mão na sua, a seringa, o nome do remédio, o carregador que a jogou no ombro. Em algum lugar, um nome próprio havia sido pronunciado; ela tentava agarrá-lo como réstia de madeira numa tempestade. As cordas mordiam. O sangue latejava nas artérias, pequeno e temeroso. O corpo tremia com calafrios que nada tinham a ver com frio; eram ecos do sedativo que ainda se desfazia e do terror puro de não saber onde se estava. Cada ruído — um passo, um suspiro, o zumbido distante de um motor, o tilintar de metal — a fazia esticar o ouvido. Mas o mundo era uma recompensa c***l: sons sem rosto, vozes sem intenção clara. Às vezes, um cheiro que se tornava pista: óleo, um perfume de homem, café velho, uísque. Às vezes, o chão rangia e ela achava que talvez fosse dia, talvez fosse madrugada. Tudo era hipótese. A escuridão física transformou-se num labirinto sensorial. Ela tentou reunir forças para puxar os nós, para encolher o corpo e se esgueirar para fora das amarras. A cada tentativa, as cordas fariam com que a pele ardente cedesse em pequenos cortes, deixando trilha de sangue minúsculo. A dor oferecia um fio de realidade: estava viva. Estar viva parecia ao mesmo tempo, bênção e condenação. Quando uma sombra atravessou o limiar do quarto, a atenção de Isadora virou-se com ferocidade. Não via, mas identificava pela acústica o modo de andar, o volume de passos que não eram de quem estava acostumado com o lugar. Alguém falava num tom baixo e ríspido com outro; respostas curtas, ordens. Vozes calculando. Ela puxou o ar com força e deixou que a fúria a enchesse. Se não podia enxergar, faria o mundo ouvir. Gritou — um som alto, rouco, preguiçoso de surpresa e de ódio. A garganta falhou um pouco, como se o sedativo ainda estivesse em rastro. — Acordou? — A voz que respondeu era a dele. Perto. A presença que a trouxera estava ali, mas agora não havia o jogo de gato e rato nos olhos dele, porque não havia olhos visíveis — havia apenas uma voz que mudara de tom: de provocador para avaliador. — Quem é você? — a tentativa de identificar um rosto, uma linha que ela prendia à memória do restaurante. Aquelas palavras trouxeram tudo de volta: as provocações, a seringa, o carro, os outros homens. O estômago dela contraiu-se com a lembrança de ter sido carregada como cadáver. Havia, por baixo do pânico, uma ardente pergunta: por quê? Que direito tinham esses homens? Que interesse ele nutria por alguém que sequer conhecia? — Onde estou? — ela perguntou, a voz fina. — Em um lugar onde você pode responder perguntas sem que a vila escute — respondeu ele. A resposta era seca, eficiente, e, ainda assim, continha algo que a deixou mais alerta: uma promessa velada de conversa. O silêncio maior que se seguiu foi combustível para a mente dela. Tentar imaginar o quarto — a textura do lençol, a sensação da venda, o nó no pulso — tudo intensificava a confusão. Ela apercebeu-se de que a roupa estava amassada, o cabelo grudado na testa; a pele fria onde fora tocada. A boca estava seca; sua língua arrastou-se pelo céu da boca e encontrou um gosto de metal ácido. — Você não tem o direito — ela murmurou, com raiva rachada. — Não tem direito algum. — Direito é uma palavra de quem tem arbítrio — disse ele, sem tentar amenizar. — Eu tenho interesse. Quero confirmar a sua identidade, porque não pretendo perder tempo com alguma impostora novamente. A porta rangeu. Som de passos afastando-se. Os outros homens se moveram em sombras. Ficou só o eco. A venda em seus olhos abafou o resto. Isadora ficou sozinha no escuro com seu coração, com os nós nas mãos, e com a certeza de que a noite havia trocado de dono. O corpo doía; a mente flamejava; o medo era uma tela branca onde todos os piores filmes se projetavam. Ela respirou, contando — um, dois, três — como se cada número fosse martelo assentando alicerce. Precisava organizar o pensamento. Precisava lembrar do que a trouxera até ali. Precisava, acima de tudo, esperar. Porque a única coisa que poderia transformar o medo em vantagem era entender o jogo daquele homem que a roubara do penhasco: Um jogador frio, com seringa e carro. E, no fundo do quarto, algures, alguém batia um copo numa mesa. O som era a sentença: a conversa teria que esperar. O jogo continuaria no escuro, e Isadora, vendada e amarrada, preparou o que lhe sobrava: punhos cerrados e um plano pequeno, minúsculo, mas seu. Um fio de resistência para segurar a si mesma quando as luzes acendessem de novo.
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