Capítulo I

1982 Words
Isadora Vescani acordou com o coração disparado, como se tivesse corrido quilômetros. A respiração entrecortada fazia o peito subir e descer em desespero, e por alguns segundos ela não soube dizer se ainda estava naquele corredor tomado por chamas ou se já havia voltado para a realidade fria de seu quarto. O teto baixo e manchado de umidade do chalé era a prova de que estava acordada. Mas o cheiro — aquele cheiro de fumaça e papel queimado — ainda se agarrava a ela como uma segunda pele. Seus sonhos nunca a deixavam em paz. Seis anos depois, ainda acordava no meio da noite, a garganta seca, os ouvidos zumbindo, os olhos marejados. Seis anos desde que vira a mãe desaparecer para sempre em um labirinto de fogo e gritos. Seis anos desde que incendiara não apenas uma mansão, mas a própria infância. Ela esfregou os olhos, forçando-se a sentar. A cabeça latejava. O relógio de pulso barato em sua mesinha de cabeceira marcava 6h12 da manhã. Mais um dia. O chalé onde vivia era pequeno, herdado da madrinha falecida. As paredes eram frias no inverno, abafadas no verão, e a cama onde dormia tinha o colchão fino e gasto. Ainda assim, era o único lugar onde se sentia relativamente segura. Depois que a mãe morreu, Isadora não voltara para o lugar onde haviam morado antes. Aquela casa era um fantasma cheio de lembranças que não suportava enfrentar. Nos primeiros meses, tentou se agarrar à esperança de que alguém a ouviria. Ligara para a polícia em busca de ajuda, repetindo a história em voz trêmula. Mas as respostas foram sempre vazias. — "Vamos investigar, senhorita Vescani. Pode ficar tranquila." Só que tranquilidade era impossível quando se percebia que nada estava sendo feito. O silêncio da lei era ensurdecedor. Até que um dia, chamaram-na para prestar depoimento. Isadora, então com dezesseis anos, vestira sua melhor roupa e respirara fundo diante do espelho, decidida a lutar pela memória da mãe. Pegara o ônibus para a delegacia mais próxima, o coração acelerado, mas esperançoso. Só que, ao se aproximar do prédio cinza e impessoal, algo a fez congelar. Um carro preto, parado ao lado da entrada. Ela o reconheceu imediatamente. Um dos mesmos veículos que vira na noite do incêndio, estacionado diante da mansão. Homens com ombros largos e olhares impiedosos fumavam ao lado, conversando como quem não tinha pressa. Foi como cair de volta ao pesadelo. A intuição gritou em seu peito: corra. Ela não entrou. Não pediu ajuda. Virou as costas e fugiu antes que alguém a notasse. Naquela noite, empacotou o pouco que tinha. Vendeu alguns objetos da casa da mãe — o rádio antigo, o colar de bijuteria guardado na gaveta, até os livros que tanto amava. Com o dinheiro contado, comprou uma passagem de trem e viajou até Winchcombe, no interior dos Cotswolds. Ali morava sua madrinha, que a recebeu de braços abertos e lágrimas nos olhos. Durante quatro anos, Isadora encontrou abrigo na presença dela. Mas a vida, implacável como sempre, levou a única figura que lhe restava. A madrinha adoeceu e faleceu dois anos antes, deixando-lhe apenas o chalé e a solidão. E agora, ali estava ela. Vinte e um anos. Sozinha. Tentando sobreviver. A rotina de Isadora era um ciclo de exaustão. Pela manhã, trabalhava em um pequeno restaurante que servia turistas curiosos pelo charme da vila. À tarde, fazia b***s em fazendas próximas ou em pousadas que precisavam de alguém para limpar quartos. À noite, tentava estudar sozinha no velho notebook de segunda mão, presente da madrinha antes de morrer. O teclado falhava, as letras “N” e “S” exigiam força para aparecer na tela, e a bateria não durava mais do que meia hora sem estar conectada. Ainda assim, aquele aparelho era seu portal para um mundo maior. Isadora sonhava em aprender, em conquistar algo que a tirasse daquela rotina de trabalho braçal e invisibilidade. Mas o cansaço era tanto que, muitas vezes, adormecia sobre o teclado, com o corpo curvado e os olhos pesados. Naquela manhã, vestiu a calça jeans gasta e a blusa azul-marinho de mangas curtas. O tecido já desbotara, mas ainda era apresentável para o trabalho. Penteou os cabelos longos com pressa, prendeu-os em um r**o de cavalo e se olhou no espelho estreito do corredor. Olhar cansado. Olheiras profundas. A expressão de alguém que vivia mais no passado do que no presente. Pegou a bolsa surrada e saiu, sentindo o ar frio da manhã bater em seu rosto. As ruas estreitas de Winchcombe ainda estavam silenciosas, exceto por alguns carros passando devagar e o sino da igreja ao longe. O restaurante ficava a dez minutos de caminhada. Era um lugar simples, mas aconchegante, com mesas de madeira e cortinas de renda. A dona, uma senhora chamada Mrs. Clarke, sempre a recebia com um sorriso curto e um olhar que misturava simpatia com desconfiança. — Bom dia, Isadora. — disse ela, assim que a viu entrar. — Já atrasada de novo? — Dois minutos só. — respondeu, colocando a bolsa no armário dos funcionários. — Dois minutos que podem custar clientes. — retrucou Mrs. Clarke, mas sem dureza real na voz. Isadora engoliu em seco, acostumada a ouvir pequenos sermões. Pelo menos, ali tinha trabalho. E trabalho significava dinheiro, mesmo que pouco. Vestiu o avental branco, amarrou-o na cintura e foi até o salão. As primeiras horas foram tranquilas. Serviu cafés, torradas, ovos mexidos. Atendeu turistas que perguntavam sobre pontos históricos da vila, respondendo o pouco que sabia com um sorriso forçado. — Você mora aqui há muito tempo? — perguntou uma mulher loira, turista americana, enquanto mexia no celular. — Alguns anos. — respondeu Isadora, colocando o café sobre a mesa. — Deve ser maravilhoso viver em um lugar tão charmoso. — comentou a mulher, sem notar a sombra que cruzou os olhos de Isadora. Maravilhoso. A palavra parecia uma ironia c***l. Viver ali era sobreviver. E sobreviver estava longe de ser maravilhoso. Por volta do meio-dia, o restaurante encheu. Um grupo de jovens turistas riu alto em uma mesa do canto, pedindo cervejas e sanduíches. Isadora se aproximou para anotar os pedidos, tentando ignorar a sensação desconfortável dos olhares que percorriam seu corpo. — Você é daqui mesmo? — perguntou um deles, um rapaz alto de cabelo castanho. — Sim. — mentiu. — A gente podia sair depois do expediente. — disse ele, com um sorriso sugestivo. Isadora apertou os lábios, firme. — Não. — respondeu simplesmente, antes de se afastar. Ouviu as risadas abafadas atrás de si, mas não olhou para trás. Já estava acostumada com abordagens daquele tipo. Ser mulher sozinha em uma cidade pequena tinha seu preço. Às vezes, vinham com palavras doces. Outras, com ameaças veladas. Houve noites em que homens a seguiram até a porta do chalé, e ela precisou se esconder no escuro até eles irem embora. Já fora roubada mais de uma vez, mas nunca denunciou. A polícia era um abismo do qual não ousava se aproximar. Melhor suportar em silêncio do que se expor. À noite, quando finalmente chegou em casa, o corpo de Isadora doía. Jogou a bolsa sobre a cadeira, tirou os sapatos e foi direto ao quarto. O notebook a esperava sobre a mesa, a tela manchada de poeira. Ligou-o, esperando os minutos eternos até que iniciasse. Abriu um arquivo de anotações, tentando estudar um pouco de inglês e matemática. Mas, enquanto lia as palavras, os olhos se fechavam. E, como sempre, os sonhos voltaram. Chamas. Gritos. O olhar da mãe, perdido entre dor e amor. E o carro preto, estacionado diante da delegacia. O passado nunca a deixava. O cursor piscava na tela do notebook, insistente, como se zombasse dela. Cada linha que tentava escrever — uma anotação em inglês, uma conta de matemática simples — acabava sendo apagada segundos depois. Sua mente não conseguia se fixar. Isadora passou a mão pelos cabelos, soltando o r**o de cavalo e deixando as mechas caírem em desalinho sobre os ombros. O cansaço era tanto que sua visão se embaralhava. As letras na tela se desfaziam, transformando-se em sombras que lembravam as chamas de seis anos atrás. Fechou o notebook com força, como se o ato pudesse calar também os gritos da memória. O estalo ecoou pelo pequeno chalé, seguido pelo silêncio absoluto. Silêncio. Era isso o que mais a sufocava. Durante os anos em que vivera com a madrinha, sempre havia uma voz doce preenchendo os espaços. A madrinha falava pelos cotovelos, contava histórias antigas, rezava alto pela casa, ria com facilidade. Até o simples barulho das panelas batendo ou da chaleira apitando dava à casa uma alma. Agora, só havia o silêncio. Lembrou-se da primeira noite após o enterro da madrinha. Ficara sentada na sala, o casaco da falecida ainda pendurado na poltrona. A casa parecia um corpo morto, frio e vazio. O cheiro de lavanda que sempre pairava havia sumido, substituído por poeira. Naquela noite, Isadora chorou como não chorava desde a morte da mãe. Chorou até soluçar, até as lágrimas secarem e o corpo ficar dormente. Desde então, o choro se tornara raro. Como se o corpo tivesse se cansado de sofrer em voz alta. Agora, sua dor era silenciosa. Ela se levantou da cadeira e foi até a pequena cozinha. Pegou uma caneca lascada, encheu com água e bebeu em goles longos. A torneira pingava devagar, cada gota ecoando como uma agulha em seus ouvidos. Encostou-se na pia, respirando fundo, e olhou para a janela. Lá fora, o vilarejo dormia. Algumas luzes ainda brilhavam em casas distantes, mas a rua diante do chalé estava deserta. Esse era o momento mais perigoso do dia: quando o silêncio se misturava à escuridão, e os pensamentos vinham como espectros. A morte parecia uma saída simples. Bastava parar de lutar. Bastava deixar-se levar. Às vezes, imaginava subir ao topo da colina próxima, onde o vento soprava forte, e se deixar cair. Outras vezes, pensava em deixar o gás aberto e se deitar no sofá, adormecer para nunca mais acordar. Mas sempre havia algo que a prendia. Uma lembrança da mãe, o sorriso da madrinha, o instinto de sobrevivência que ainda ardia em algum canto escondido dela. Como se uma voz sussurrasse: “não ainda”. Um barulho lá fora a fez estremecer. O coração disparou, os músculos se enrijeceram. Aproximou-se devagar da janela e espiou pelas cortinas. Nada. A rua permanecia deserta, iluminada apenas pelo poste solitário. Ainda assim, o medo não diminuiu. Estava acostumada a ser perseguida, abordada, observada. Turistas curiosos demais, homens que confundiam solidão com disponibilidade. Já aprendera a não confiar em passos na calçada ou olhares demorados. Fechou a cortina com força e se afastou, tentando se convencer de que era apenas o vento. Deitou-se na cama, mas o sono não veio. A mente insistia em repassar cada detalhe de sua vida como se fosse um filme interminável. A lembrança da mãe, sorrindo enquanto cozinhava. O rosto marcado pela fadiga, mas ainda assim iluminado pelo amor. O momento em que a vira pela última vez, na tela de uma câmera de segurança, antes que o fogo engolisse tudo. Depois, a madrinha. A figura terna que a ajudou a se recompor, que lhe deu teto e afeto. O abraço quente, as mãos calejadas preparando chá, os conselhos simples mas cheios de sabedoria. Agora, só restava ela. A morte sempre rondava sua vida como um animal faminto. Levara a mãe. Levara a madrinha. E agora parecia rondar a própria Isadora, esperando o momento certo para dar o bote. Ela fechou os olhos, permitindo-se imaginar, apenas por um instante, como seria deixar de existir. Talvez fosse como apagar uma vela. Talvez fosse como cair em um sono sem sonhos. Uma parte dela ansiava por isso. Mas outra parte — teimosa, obstinada, quase c***l — a mantinha ali, respirando, suportando mais um dia. Author's notification:
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