O ranger da porta quebrou o silêncio denso do quarto. Isadora ergueu a cabeça, o coração acelerado, e prendeu a respiração ao vê-lo entrar. Ele não carregava correntes, não vinha com ameaças explícitas. Mas trazia algo que, naquele momento, parecia ainda mais perigoso: uma bandeja de comida fumegante. O cheiro de pão quente e carne assada preencheu o quarto, fazendo o estômago dela se revirar de fome.
Ela odiou o próprio corpo por reagir. Odiou o nó que se formou na garganta e o vazio doloroso no abdômen. Três dias de recusas tinham deixado o cheiro da comida quase insuportável.
Ele se aproximou devagar, passos firmes, e pousou a bandeja na mesa baixa ao lado da cama. Depois, arrastou uma cadeira e se sentou, cruzando os braços. O olhar escuro não deixava escapar nada.
— Está com fome. — Não era uma pergunta.
Isadora desviou o rosto, apertando os punhos contra os joelhos.
— Não quero nada de você.
Ele riu baixo, sem humor, inclinando-se na cadeira.
— Não é sobre querer, Isadora. É sobre precisar. O corpo pede, e você obedece. É simples.
Ela mordeu o lábio com força, tentando se manter firme.
— Então me deixe morrer de fome. Talvez seja melhor.
— Não. — Ele falou como quem fecha uma porta. — Você não vai morrer. Vai comer. Mas não de graça.
Isadora o encarou, os olhos faiscando de raiva.
— O que você quer?
— Respostas. — Ele se recostou na cadeira, tranquilo. — Você estava naquela casa. Com sua mãe. Por quê?
O coração dela disparou. A pergunta parecia um soco no estômago.
— Eu não sei do que está falando.
Ele pegou um pedaço de pão da bandeja, ergueu entre os dedos e partiu devagar, como se não tivesse pressa. Depois, deixou cair de volta no prato.
— Sua mãe trabalhava lá. Certo?
— Não. — respondeu rápido, mas a voz tremeu.
Ele arqueou uma sobrancelha, como se apreciasse a contradição.
— Então ela não ia lá todos os dias? Não passava horas dentro daquela casa?
Isadora respirou fundo, tentando se recompor.
— Não sei, ela trabalhava como doméstica lá, não sei com qual regularidade.
Ele se inclinou para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos.
— Um trabalho que durou quanto tempo? Semanas? Meses?
O silêncio dela foi a confirmação que ele queria. Ele puxou a bandeja um pouco para perto de si, afastando-a dela.
— Beba. — Ele ergueu o copo d’água e o aproximou, mas não entregou. — Diga quanto tempo.
Ela olhou para o copo, a garganta seca queimando, mas desviou os olhos.
— Eu não preciso disso.
Ele sorriu, paciente.
— Três dias sem água suficiente. Seus lábios estão rachados, sua voz já falha. Você precisa.
Ela fechou os olhos, lutando contra o corpo. Mas quando a gota escorreu pela borda do copo, ela sentiu a boca salivar contra a vontade.
— Sem truques. — sussurrou. — Eu não vou responder nada.
Ele encostou o copo nos lábios dela de repente. O choque da água fria quase a fez gemer. Ela bebeu antes que pudesse pensar, engolindo com desespero. Quando tentou tomar mais, ele afastou o copo.
— Quanto tempo? — repetiu.
— Cinco anos ou mais… — escapou, rouco.
Ela se amaldiçoou no mesmo instante.
O olhar dele brilhou, satisfeito. Ele encostou o copo na boca dela mais uma vez, permitindo mais alguns goles.
— Viu? Não é difícil. Você responde, eu alimento.
— Vá para o inferno. — murmurou ela, limpando a boca com o ombro.
Ele riu baixo, mas não recuou. Pegou outro pedaço de pão e o colocou diante dela.
— Por que ela foi se demitir naquele dia?
Isadora congelou. O coração pareceu parar por um instante.
— Ela não…
— Não minta. — Ele cortou, firme. — Eu sei que ela foi até a casa para isso. Você estava com ela. Por quê?
Isadora fechou os olhos, lembrando-se do cheiro de fumaça, do desespero, da mão da mãe puxando a dela pelo corredor.
— Eu só fui porque ela pedi, eu estava com ela, acompanhando ela, estávamos na rua e ela passou na casa. — confessou em um fio de voz.
Ele deixou o pão cair no colo dela.
— Melhor. Continue.
— Eu não queria ir. Eu nunca fui lá. Foi a primeira vez... Era… diferente. Frio. Como se ninguém morasse de verdade.
Ele a observava como um predador paciente.
— E então?
Ela engoliu em seco.
— E então ela me disse para esperar. Eu fiquei na sala, me trancaram... Ela foi falar com alguém.
— Com quem?
Isadora desviou o olhar.
— Eu não sei.
Ele pegou o pão de volta, afastando-o.
— Quem estava na sala?
— Ninguém. Eu fiquei sozinha.
Ele inclinou a cabeça.
— Sozinha? Em uma mansão daquele tamanho?
O estômago dela roncou alto, denunciando a fome. Ele ergueu o pão de novo, mas não ofereceu.
— Com quem sua mãe falava, Isadora?
— Eu não sei! — gritou, finalmente. — Eu só ouvi vozes. Eu não vi quem era.
Ele se recostou na cadeira, avaliando. Depois de alguns segundos, jogou o pão de volta no prato e empurrou para ela.
— Beba. — ordenou, passando o copo.
Ela hesitou, mas a fome venceu. Mordeu o pão com fúria, engolindo rápido, como se cada pedaço fosse uma derrota.
Ele deixou que comesse em silêncio por alguns minutos, observando cada gesto. Depois, abriu a pasta de couro que havia trazido.
De dentro, tirou uma fotografia dobrada, anexa à uma filha de papel. Alisou com os dedos e colocou sobre a mesa, virada para ela.
— Reconhece?
Isadora arregalou os olhos. Era a mãe. Na cozinha da mansão. O avental claro, o cabelo preso, os olhos cansados. Embaixo, numa folha de papel amarelada um contrato de prestação de serviços em troca do abatimento de uma dívida de...
— Não… — a voz dela falhou. — Isso não pode…
Ele se aproximou, baixando a voz até quase um sussurro.
— Ela trabalhou lá. Não como uma empregada normal, ela estava pagando um empréstimo. Você sabia disso.
As lágrimas queimaram nos olhos de Isadora, mas ela desviou o rosto, mordendo o lábio até sentir o gosto de sangue.
— Você não entende.
— Então me faça entender. — Ele se inclinou ainda mais. — Ou eu vou concluir sozinho.
Ela permaneceu em silêncio, a respiração trêmula, os olhos fixos no chão.
Ele recolheu a foto devagar, guardando de volta na pasta.
— Está começando. — disse, com um sorriso frio. — Você pode mentir. Pode negar. Mas seu corpo fala mais do que sua boca.
Ele se levantou, levando a bandeja quase vazia.
— Amanhã, voltamos. E você vai me dizer mais.
A porta se fechou atrás dele com um estalo seco. Isadora permaneceu imóvel, o gosto do pão ainda na boca, a imagem da mãe queimada nos olhos. E, pela primeira vez, percebeu que negar não a protegeria. Só a tornaria mais fraca.
O quarto estava mergulhado na penumbra quando a chave girou na fechadura novamente. Isadora estremeceu, as unhas cravadas na pele dos braços, como se quisesse segurar-se a si mesma. Não tinha dormido; o sono era impossível. A cada estalo da madeira, cada ruído do vento contra a janela, ela imaginava os passos dele.
E agora ele estava de volta.
Ele entrou sem pressa, como se fosse dono do tempo. Os ombros largos projetavam sombras contra a parede, e nas mãos trazia outra bandeja. O cheiro de caldo quente fez o estômago dela se retorcer de imediato. A fome era como uma lâmina girando dentro dela, mas ainda assim, quando os olhos dele se ergueram, ela se forçou a parecer indiferente.
— Ainda viva. — Ele comentou, quase em tom de avaliação, como se fosse apenas constatar um resultado.
Isadora não respondeu.
Ele pousou a bandeja sobre a mesa, mas desta vez não se sentou de imediato. Andou devagar pelo quarto, examinando as paredes como se buscasse algo invisível. Depois, parou diante dela, a sombra projetando-se sobre a cama.
— Hoje não vou perder tempo. — a voz era firme, sem elevar-se. — Você responde, come. Você mente, fica sem nada.
O coração dela acelerou. Engoliu seco, os lábios rachados queimando.
— Eu não… — começou, mas a voz falhou.
Ele ergueu um dedo, cortando qualquer desculpa. — Não quero rodeios. Ontem falamos da sua mãe. Hoje, falamos de você.
Isadora sentiu o estômago gelar.
— Eu não sei o que você pensa que vai encontrar em mim.
— Verdade. — disse, como se fosse óbvio. — Você estava naquela casa por mais de um motivo. Não apenas para acompanhar sua mãe. — Puxou uma cadeira e se sentou diante dela, apoiando o queixo sobre a mão fechada. — Então… por que estava lá?
Ela fechou os olhos por um segundo. O cheiro da comida estava insuportável. Queria gritar que não sabia, que não lembrava, mas o vazio no estômago a fazia querer falar qualquer coisa.
— Eu já disse. — sussurrou. — Ela me levou. Foi a primeira vez.
Ele inclinou a cabeça, observando cada tremor do rosto dela.
— Primeira vez… e, mesmo assim, você descreveu os corredores como se conhecesse cada fresta. — A pasta de couro apareceu novamente. Ele abriu com calma, tirando um papel. — Reconhecimento visual, câmeras internas. Você andou sozinha por ali, Isadora.
O ar sumiu dos pulmões dela.
— Não. — murmurou, sacudindo a cabeça. — Eu só… olhei ao redor. Não sabia para onde ir.
Ele ergueu o copo d’água, mas não aproximou.
— Então me conte. O que viu?
Isadora fixou os olhos no copo, e a garganta se fechou de sede. A mente gritava para não falar, mas a boca ardeu com a necessidade.
— Pessoas. — disse enfim, num fio de voz. — Pessoas estranhas. Elas não olhavam para mim… mas eu sabia. Sabia que estavam me vigiando.
O olhar dele escureceu.
— Quem?
Ela apertou os punhos, as unhas marcando a pele. — Gente da casa. Eu não sei os nomes. — respirou fundo, a voz falhando. — Eles não pareciam empregados. Pareciam… carcereiros.
Ele se manteve imóvel por um momento, depois aproximou o copo. Mas antes que ela pudesse beber, recuou alguns centímetros.
— Carcereiros? — repetiu, testando a palavra. — Interessante escolha.
O peito dela subia e descia rápido. — Era isso. Eu senti. Minha mãe também sentia. Ela estava sempre… sempre com medo.
O copo finalmente tocou os lábios dela. Isadora bebeu com avidez, engolindo como se fosse a última vez. A água escorreu pelo queixo, mas ela não ligou.
Ele deixou que bebesse por alguns segundos, depois afastou.
— Continue. — ordenou.
Isadora fechou os olhos, tentando segurar o tremor das mãos. A lembrança da mãe surgia como uma sombra sufocante. O cheiro de cigarro no avental, as mãos feridas, os olhos cansados demais para uma mulher tão nova.
— Ela queria sair. — sussurrou. — Disse que não aguentava mais. Eu não entendia… eu tinha quinze anos, não entendia tudo. Mas sabia que tinha algo errado. — A respiração dela ficou descompassada, o peito apertado. — Ela não era tratada como gente.
As imagens surgiam com violência, e com elas veio a onda de pânico. O quarto começou a girar, o ar rareando.
— Ela… — Isadora tentou, mas a garganta travou. A visão ficou turva, o coração disparando.
Ele percebeu. Por um instante, apenas observou. O corpo dela encolhido, os olhos arregalados, a respiração curta. Era como se estivesse diante de uma lembrança que a esmagava.
E então, pela primeira vez, ele não pressionou. Largou o papel de volta à pasta, recostou-se na cadeira e esperou. Não havia pressa.
— Respire. — disse baixo, sem ironia. — Não vai morrer agora...