A floresta e o rapaz de cabelo azulado.

2772 Words
Se um dia dissessem que Emilly, a garota mais paranóica e sistemática do mundo, acabaria em tamanha enrascada, ela teria encarado a pessoa com deboche e gargalhado até cair. No entanto, lá estava ela largada no chão frio de um ambiente totalmente desconhecido, sem celular, agasalho ou comida. — Meus parabéns, Emilly... Um à zero para a sua falta de atenção... — Resmungou irritada, lembrando-se dos últimos acontecimentos e piscando algumas vezes para se acostumar a escuridão. Desde o momento em que despertara, tudo o que avistou foi o pretume. Nenhuma luz ou alma viva lhe faziam companhia, ela estava só em meio ao manto obscuro. Emilly era uma pessoa negativa, tinha que concordar. Sendo assim, não poderiam culpá-la por sua mente ansiosa estar calculando resultados para probabilidades que sequer chegariam a acontecer, como — por exemplo — a possibilidade de ela ter despencado de um abismo sem fim ou desintegrado e ido parar no purgatório. Apesar de tudo, se não estivesse tão perturbada psicologicamente devido a todo o estresse passado e por estar frente a frente com o seu maior pesadelo, certamente a Smith estaria comemorando a dádiva de ainda estar viva. Se apoiando na parede a qual estava encostada, Emilly respirou fundo se levantou com todo o cuidado para não tropeçar, forçando suas pernas a se manterem firmes. Fechou os olhos por um momento, balbuciando frases de conforto embora soubesse que elas não surtiriam efeito e passou a tatear cegamente em busca de algum interruptor que pudesse acender a luz ou, com sorte, invocar outro vórtice. Não obteve resultados. A medida que caminhava, a garota percebeu que o local onde estava era largo o suficiente para construir um quarto, talvez até uma casinha pequena. Continuou com a sua busca, apalpando a parede rochosa e após alguns passos, uma de suas mãos alcançou um mecanismo diferente, girando-o para a esquerda. Bom... Não havia lâmpadas ou portais para serem acionados, mas as dezenas de tochas que se acenderam sobre as paredes do que ela descobriu ser uma caverna, revelando uma trilha, foram de grande ajuda. Emilly quase chorou quando as labaredas alaranjadas passaram a iluminar o local. O alívio era palpável e a respiração aos poucos voltava ao normal, enquanto a visão se adaptava ao novo ambiente. Ela limpou a poeira de suas vestes, ajeitou o óculos na ponte entre os olhos, refez o r**o-de-cavalo nos cabelos e se virou uma última vez para o passagem fechada atrás de si, se encorajando a prosseguir. A Smith inspirou e expirou profundamente, repetindo o processo cinco vezes seguidas e o vigor tomou conta de seu corpo. Caminhou com tranquilidade pela trilha recém iluminada, seguindo as chamas, contudo manteve-se em alerta para o caso de alguma armadilha surgir em seu trajeto. Alguns minutos depois, um feixe de luz branquicento foi avistado e a jovem se encheu de esperanças, correndo em direção ao ponto luminoso. A cada passo, cores e formas tomavam vida e um sorriso largo se formava no rosto miúdo. Emilly diminuiu o ritmo de suas passadas a medida que se aproximava da entrada e parou de imediato ao vislumbrar a bela floresta que a rodeava... A relva oscilando conforme o curso do vento; as árvores robustas e colossais abarrotadas de flores e frutos exuberantes; o verde vibrante em cada canto do ambiente e o som acolhedor da água se chocando com as pedras. Evidentemente, dezenas de cores pintavam o local, fosse através das flores de aparência singular, dos animais que transitavam de um lado para o outro ou dos frutos suculentos e apetitosos. Todavia, nenhuma cor sobressaía o tom verdejante da selva. Não só as árvores eram deveras maiores que às de seu país, mas também as ervas e raízes que se expandiam pelos arredores. Emilly chegou a se equiparar à uma formiga, analisando com afinco a mata vicejante e as libélulas que planavam por ali. Alcançando as folhas e pétalas que se espalhavam pelo gramado, a menina observou os pássaros que contornavam o local. Se concentrou nos diferentes sons emitidos pelo ambiente natural e se permitiu aproveitar como há muito não fazia. Correu sorridente pela grama lustrosa, rodopiou sobre uma pedra achatada na beira do ribeiro e saltou feito uma criança feliz, acima de alguns cogumelos de tamanho mediano. A cacheada soltou uma lufada de ar, após deitar-se sobre a relva úmida e apoio os braços abaixo da cabeça de forma relaxante. — No fim das contas, acho que eu realmente morri e cheguei ao paraíso... — Comentou consigo mesma, olhando para o céu ausente de nuvens. Emilly cobriu os olhos com o antebraço para se proteger dos raios de sol e cantarolou uma melodia antiga, condizendo com o seu bom humor repentino. Flexionou os joelhos adquirindo uma postura mais relaxada e batucou às pernas com os dedos no ritmo da música até ter a atenção chamada pelo som de galopes há poucos metros de distância. A adolescente se encantou ao ver o belo pégaso de pelugem clara e asas imponentes, sentando-se vagarosamente para não assustar o animal. Levantou-se no mesmo compasso, trocando um olhar com a criatura e depois de compartilharem um momento de conexão, o pégaso balançou a cabeça dando meia volta e partindo pelo mesmo caminho a qual veio. Maravilhada, Emilly deixou para trás a caverna sombria e o seguiu à uma distância segura. [...] Após um longo período de caminhada, a Smith bufou retirando o óculos do rosto e com o dorço da mão, limpou o suor que lhe escorria pela face. O tempo que levou para se recompor não chegou a dez segundos, mas esse tempo foi o suficiente para que o animal que perseguia desaparecesse sem deixar vestígios. Emilly verificou ao redor do local onde o viu pela última vez atrás de rastros e foi nesse momento que seus sentidos voltaram a trabalhar. — Aí não... — Resmungou, levando uma das mãos até os cabelos. — Não, não, não... Como pude ser tão burra?! — Praguejou desesperada, perambulando de um lado para o outro. Ela deveria ter pensado melhor antes de sair por aí bancando a aventureira. O território onde estava era desconhecido e perigoso, não deveria ter deixado a única zona ao qual ela sabia ser segura. Olhou para os lados tentando encontrar algo com o que se familiarizasse, porém os troncos similares e espessos, confundiram a sua memória já desequilibrada. Não conseguia refazer o trajeto sem se atrapalhar com a rota. Se situar através do sol também estava fora de questão, afinal os galhos longos e entrelaçados bloqueavam a visão do céu. Cansada, Emilly sentou-se em uma pedra arredondada para organizar os pensamentos e tomar uma decisão, mas os resultados não foram muito satisfatórios. Estava longe demais para voltar a caverna e não sabia o que encontraria, caso continuasse. Puxou os cabelos com força, bagunçando-os ainda mais e se conteve ao máximo para não estapear a si própria devido a atitude imprudente. Infelizmente, não tinha tempo para autopiedade. Como um lembrete de sua nova situação, o som de passos se aproximando e o leve tremor abaixo dos pés, colocaram a menina em estado de alerta. Com medo de se tratar de algum animal feroz, a Smith correu até a árvore mais próxima e a escalou o mais rápido possível, com o intuito de se esconder. O que surgiu em sua frente , porém, não tinha nada de feroz, mas ainda assim, foi o bastante para assombrá-la. Emilly nunca havia visto uma aranha tão grande quanto aquela. Os pêlos das patas pareciam veludo de tão felpudos. Os olhos eram como bolas de gudes escuras e brilhantes em meio ao monte de pelagem e, sem sombra de dúvidas, o comprimento do cefálotorax e abdome do aracnídeo ultrapassavam a estatura mediana de seu corpo delgado. — Agora eu entendo o porquê dos frutos serem tão grandes... — Pontuou a menina, observando o animal de forma minuciosa. Parando para analisar... A maior parte dos seres vivos daquela dimensão eram imensos. Desde as árvores e as flores até as aranhas felpudas... Após um momento de reflexão enquanto aguardava as aranhas se distanciassem, Emilly desceu sorrateiramente da árvore frutífera e olhou para cima, formando um sombreiro com as mãos. A considerar o fato dos raios solares ainda estarem fortes por entre os galhos, a garota supôs ter tempo suficiente até o anoitecer para encontrar um abrigo seguro. Abriu caminho por entre as árvores, rumando em direção ao oeste e a cada mínimo ruído, seu corpo reagia de maneira involuntária. Não queria encontrar mais nenhum amiguinho gigante. Perdida no tempo, Emilly vagou por três horas consecutivas, sem direito a pausas. A sede e a fome se tornaram insuportáveis e suas pernas começaram a tremer. A julgar pela hora em que despertara e o quanto caminhou por ali, o tempo corria de forma diferente ao de seu mundo. Para comprovar a sua teoria, o sol continuava vívido no céu, mesmo depois da longa viagem. A cacheada não aguentava mais se manter de pé, estava exausta! Os músculos doíam e os olhos pesavam! Tendo isso em mente, ela se achegou a árvore mais próxima e se sentou encostada a ela. As mãos ágeis e pequenas não tardaram em retirar os tênis apertados e massagear as panturrilhas doloridas, fazendo-a gemer em alívio. Emilly umedeceu os lábios para tapear a sede, se esticou o máximo que conseguia para estralar as juntas das costas e se acomodou novamente contra o tronco escurecido, suspirando desanimada. O dia não estava sendo nada fácil. A garota passara a manhã inteira desembaraçando pisca- piscas, a tarde toda cuidando de crianças, viu cada um de seus familiares se transformarem em estátuas, foi abduzida por um portal maluco, caminhou por pelo menos três horas sem comida ou bebida e no momento, estava perdida em um mundo estranho e desconhecido sem companhia. Tudo o que ela queria era ver sua família bem de novo, aproveitar o Natal, comer tudo o que tivesse vontade e abraçá-los no fim da noite. Ali, nem mesmo comer ela poderia. Os frutos ficavam altos demais para que ela alcançasse e por serem muito grandes, o peso poderia não ser condizente com a sua força — isso sem contar o fato de ela não saber quais deles eram comestíveis ou não. Desviando o olhar para um ponto qualquer, a menina suspirou e apoiou a testa contra os joelhos dobrados. Fechou os olhos por um momento, sentindo a retina agradecer pelo descanso e se acomodou de forma confortável. Sua intenção era descansar um pouco o corpo sedentário para repôr as energias e prosseguir com a busca assim que acordasse, no entanto, estava tão exausta e perdida com o novo fuso-horário quê, o que era para ser apenas uma soneca, acabou se transformando em um sono profundo e pesado. [...] O som de passos quebrando os gravetos espalhados pelo chão, despertaram Emilly de seu merecido descanso. Ela sentou-se, esfregando os olhos sonolentos e apanhou o óculos que havia caído ao seu lado, limpando-o antes de colocá-lo. A imagem a sua frente tomou foco e agindo involuntariamente, seu corpo se arrastou pela grama úmida até chocar-se contra a madeira da árvore atrás de si. Se a aranha gigantesca já foi o suficiente para surpreendê-la, a serpente morta e nada amigável a fez agir por impulso e afastar-se como um criminoso que fugia da polícia. Com as presas expostas e três flechas cravadas na cabeça, parte da cobra ainda se movia, anunciando a quantidade de veneno. A menina engoliu a seco, ignorando a poça de sangue que se formava abaixo do animal e olhou para o céu, agora pintado pelo violeta do crepúsculo. — Por quanto tempo eu dormi?! — Indagou preocupada, se levantando e massageando os braços. A temperatura começava a cair e ela estava sem agasalhos. Precisava encontrar um abrigo rápido, antes que a noite atingisse o pique. Afastou-se alguns passos com os olhos fixos na serpente de pele esverdeada e preparou-se para correr, chocando-se contra o torso firme de alguém no processo. — Ai... — Resmungou pelo o impacto, tocando a testa com a ponta dos dedos — Olha por onde anda! — Repreendeu irritada, empurrando de leve o desconhecido. A garota estava tão desorientada tentando focar-se em encontrar um local seguro para repousar sob o efeito do sono, que sequer percebeu a oportunidade que bateu em sua porta. Distanciou-se, prestes a contorná-lo e seguir seu caminho quando uma mão forte e calejada agarrou seu pulso, a impedindo de fugir. Ela ergueu o olhar até encontrar com o semelhante do nativo e a tensão aos poucos foi deixando seus ombros. Emilly não tivera contato com muitos garotos em sua vida, mas definitivamente, aquele era o mais bonito que ela conheceria. A pele alva, os cabelos longos e bem penteados, os músculos tonificados na medida certa e o olhar penetrante, entorpeciam a sua mente. Ele não aparentava ter uma idade avançada, muito pelo contrário, a menina chutaria três ou quatro anos a mais que ela, no máximo. Os detalhes que complementavam o físico do jovem guerreiro o tornava ainda mais belo. O gris de seus olhos, contrastando com as orelhas pontudas e o tom azulado de seu cabelo, fora os pequenos sinais que adornavam-lhe o rosto. — Q-Quem é você? — Perguntou atordoada, sentido o aperto em seu pulso se afrouxar, mas o desconhecido a ignorou, desviando o olhar para algo atrás de si. Alcançou rapidamente uma flecha em sua aljava e atirou com precisão sem ao menos mirar. Emilly fechou os olhos, se assustando com o ato repentino, mas ficou aliviada ao ouvir o zunido da flecha bem longe de si. Alívio esse que desapareceu instantaneamente ao escutar o grunhido aterrorizante que ecoou às suas costas, deixando sua nuca toda arrepiada. A garota abriu os olhos sentindo as pernas fraquejarem, girou-se lentamente com a respiração ofegante e soltou um grito apavorado ao notar a criatura bizarra, largada ao lado da cobra malhada. O ser esguio de traços humanóides possuía braços longos e pernas tortas, com garras finas e pontiagudas. A boca era larga e cheia de dentes, semelhante à um tubarão sanguinário. Dois grandes riscos marcavam a face acinzentada, dilatando a cada segundo e o cheiro de sangue e enxofre preenchia todo o ambiente, deixando-o ainda mais macabro. O susto foi tanto que Emilly sentiu as pernas cederem, entrando em contato com o chão frio. Tentou se levantar, tendo em mente a noite e o frio que se aproximavam, mas seu corpo não a obedecia. Os olhos se mantiveram fixos na criatura desengonçada, estirada no chão até o instante em que outra dela surgiu por trás da companheira, marchando cambaleante em sua direção. A Smith fincou as unhas curtas sobre as coxas cobertas e estava disposta a se render, quando escutou a voz grave e aveludada do guerreiro ao seu lado. — O que está esperando? Corra! O olhar confiante que ele lhe oferecia, passou a cumplicidade necessária para que suas pernas recuperassem a força e ela pudesse fugir em disparada. O rapaz a seguia de perto com o arco em riste, pronto para atirar e a criatura também não perdia tempo, avançando desesperadamente em busca de sua presa. Os passos pesados causavam tremores acima do solo e o ganido agudo que escapava da garganta da criatura sem face, era amedrontador. O medo era o maior aliado de Emilly em sua fuga, motiva suas pernas a superarem um maratonista mesmo ainda estando cansadas e doloridas por conta do esforço anterior. Em dado ponto, o som dos passos atrás da menor cessaram, deixando-a ao mesmo tempo, nervosa, preocupada e apavorada. Ela virou-se ainda correndo para ver se o seu salvador estava consigo, mas não foi uma idéia muito inteligente. Emilly tropeçou em uma raíz alta, rolando alguns metros depois de cair e bateu com a cabeça em uma rocha pontiaguda. Sua visão começou a falhar e sangue escorreu-lhe pela lateral da testa, manchando a mão que ela havia levado para checar o ferimento. A tontura se fez presente e ela piscou algumas vezes, no intuito de espantá-la, mas às árvores só giraram ainda mais. — Senhorita? Senhorita, consegue me ouvir? — A voz grave do arqueiro soou distante e segundos depois, uma mancha azulada tomou conta de sua visão já turva. A Smith tentou se comunicar, abrindo e fechando a boca diversas vezes, mas a vertigem causada pela queda desorientava os seus sentidos. Emilly fechou os olhos, sentindo seu corpo ser erguido com gentileza e mesmo sem conseguir se pronunciar, agarrou o couro escuro do colete que o rapaz de madeixas azuladas vestia. Acalentada pelos braços fortes e o perfume agradável que a rodeava, mais uma vez, a inconsciência a abraçou...
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